quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Tá lá o corpo estendido no chão

Meia noite de ontem, ouço discussão, ruído e um tiro. Vou à janela. Vêm dois homens correndo, um atrás do outro, revólver em punho. Vestem-se como esses molecões, camiseta, bermudão com sunga por baixo e chinelas. De uma distância muito próxima, um ou dois passos, vem novo tiro e o da frente cai de cara no chão. O baixote, volta, sempre correndo, olhando em volta, assustado, em guarda e vai para a Primeiro de Março. Só então chegam os notívagos para conferir. O pivetão caído de bruços sangra no asfalto. Alguém comenta que ainda está vivo. Respira. Que o assassino pegou a moto e fugiu. E chegam os caras das rondas particulares. Chega uma dessas tartaruguinhas da Polícia. Corro para a janela que dá para a Primeiro de Março. Há uma perseguição. Hoje alguém me disse que pegaram o atirador. Na Riachuelo, após uns 15 minutos, chega o Samu. E há também seis tartaruguinhas da Polícia.
Relembro a sequência dos tiros, sem nenhum glamour ou ângulo privilegiado, como no cinema. O da frente corria desesperado e o de trás também, para não errar o tiro. O ruído é forte, agressivo, rompe o silêncio da madrugada e a carne da vítima, rasgando órgãos, cortando veias. Ficou muito fácil matar em Belém. E muito barato. Os matadores não precisam de nenhum refinamento. Chegam e atiram. Pronto. Deve custar uns R$500? Talvez menos. Muito menos. Nesse retorno de nossa sociedade à selva, há um capítulo para as motos, que são como os cavalos do velho oeste. Para elas não há sinalização de trânsito, mão, contramão, calçadas, nada. O capacete é mais um artefato para esconder o rosto do que para proteger de acidente. E essa facilidade em ter nas mãos uma arma de fogo.
Quanto à Riachuelo e Primeiro de Março, posso falar de tudo. A zona de prostituição que ainda persiste é digna de vala. Técos de crack são vendidos para uma galera desde bacanas até pés de chinelo. O que não entendo é o funcionamento de uma pensão, na Primeiro de Março, miserável, suja, imunda, com prostitutas esfomeadas, arrebentadas pela vida, vendendo drogas, sem nenhum temor, absolutamente tranquila. Quem a protege? Será que paga todos seus impostos em dia? E as drogas? Na Primeiro de Março, próximo à saída dos artistas do Cuíra, são apenas senhoras prostitutas. Barrigudas, folós, tranquilas, aguardam por seus clientes, senhores, também. Algumas têm casa montada, marido, filhos e até empregada. Mas vão até lá para a espera. Há no momento um casal desfeito. Dizem que têm uma casa no Che Guevara, mas preferem morar na rua, naquela esquina. Ele, grisalho, peito de pombo, passa as manhãs fumando seu cigarro e lendo jornal. Dorme sesta, toma banho, põe seu sapato de couro branco e fica por ali. Ela, Bete, recebe, às vezes, correspondência do Cuíra. Foi presa vendendo drogas. Dizem que já foi solta mas não retorna por medo de vingança dos traficantes. Imaginem. E vem esse corpo estendido no chão desarrumar o cenário daquela madrugada de lua cheia, aparentemente tranquila, mas agora, cheia de vingança.

Um comentário:

Luiza Montenegro Duarte disse...

Nem sei o que dizer. Por essas e outras que nosso índice de percepção da violência está lá nas alturas.