quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Helena Beatriz Kup

Ela foi minha primeira professora de Inglês. Adolescente, chegada de colégio interno, se dispôs a me ajudar, por indicação de seus pais, Bolivar e Yara, ele sendo Cônsul da Inglaterra e executivo da Booth Line em Belém. Moravam em um prédio lindo, arquitetura inglesa, três ou quatro andares, corredores largos, piso de tábua corrida, que foi criminosamente derrubado para levantar no local um monstrengo dito moderno, onde está a Caixa Econômica, na subida da Presidente Vargas. 
Linda, animada, feliz e cheia de imaginação, ela facilmente obteve minha atenção e meu amor, mesmo que a tenha decepcionado. Em uma reunião social, chamou o pai para me apresentar. Ele perguntou How are you? Apanhado de surpresa, resmunguei um "ainda não dei isso" e caí fora, para seu desgosto. Que  nada, era uma pessoa leve, de riso fácil. Eu tinha meus oito, nove anos. Talvez tenha ido para férias longas no Rj com minha avó, sei lá. Não falamos mais. Casou, mudou. Parece mentira, mas ficamos 50 anos sem falar. Eu sempre com a lembrança bonita, feliz, de Beatriz, agora, sem que soubesse, chamada apenas por Helena. Casou com militar, morou na Inglaterra, Estados Unidos, França e finalmente no Rio de Janeiro, em um prédio antigo, tombado, elevador clássico, lindo, apartamento gigantesco, móveis deslumbrantes. As filhas casadas, agora com netos. O marido aposentado, mas ainda dando cursos na FGV. Como sei? Incrível.
Escrevi alguma coisa neste blog e a mencionei. Um neto, morando em Paris, pesquisando sobre o bisavô, deu com o artigo. Foi para o facebook e me encontrou. Em seguida, pelo telefone. Imaginem a emoção de ouvir sua voz e lembrar da infância. Logo chegamos ao chat do facebook, com direito a imagem. Agora uma senhora, mas dessas cariocas, de idade impossível de cravar, falante, dando conta de tudo. Leu meus livros. Vamos marcar de nos encontrar quando for aí? Almoçamos em sua casa, bela, ampla, com móveis sensacionais. Havia tanta coisa a dizer! Conversamos, rimos, relembramos e havia muita coisa ainda a dizer. Conversa fluida, como se nos víssemos o tempo todo. Ela descobrindo um amigo mais jovem, podendo conversar sobre qualquer assunto. Eu, admirando a pessoa tão marcante para mim. Continuamos a conversar via facebook. Mas na semana passada, um dia ela me procurou e eu não estava. No outro, procurei e não estava. Puxa, não falei com ela, esta semana! Vem uma mensagem no face, de sua filha Georgiana. Lamento informar, mas minha mãe faleceu repentinamente. Estava com uma embolia pulmonar, nada séria, foi ao hospital, tomou injeções, fez um avc e partiu. Sabe quando se está lendo o facebook, a sala cheia de gente conversando, rindo, você começa a ler, vai dando conta do assunto e termina sem graça, a boca em um esgar, tipo como-assim? Primeiro não quer aceitar, depois fica pensativo, melancólico. Uma pessoa tão viva e tranquila, sem grandes problemas de saúde. Foi um reencontro tão bom! Rezei por ela. Foi uma mulher que me ensinou muito e hoje, já na meia idade, me confortou encontrá-la. Pena que tão rápido. Puxa.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Cracolândia

Agora de tarde, o carro reportagem da RBA TV estacionou na Riachuelo, entre Presidente Vargas e Primeiro de Março. Nesta, estacionou uma viatura da PM, com dois soldados e um comandante. O comandante estava em uma ligação. É impressionante como falam ao celular. Vocês estão aqui para dar segurança ao carro da Tv? É uma reportagem sobre a Cracolândia? - Eles chegaram aos poucos, mas rápido formaram um time consistente. Jovens, pivetões, meia idade, homens e mulheres. Quase não dormem. Passam o dia à mercê de doses de crack. Não sei de onde vieram, expulsos. Adotaram a saída lateral do Cuíra, entrada e saída dos artistas, como seu ponto, meramente porque o recuo até a grade, é espaço suficiente para desviarem do vento e acender o cachimbo. Imagino que o incêndio há poucos dias em uma casa ali no Reduto, tenha como estopim os fósforos que acendem sem parar. A área do portão do Cuíra fica cheia de fósforos queimados. Tratam-nos muito bem, com respeito. Mas entre si, há disputas selvagens, com socos, facadas e tiros. Ficam amontoados feito percevejos, com suas roupas imundas, rostos macilentos. Pedem desculpas por não ter coragem de largar o vício. Disse-me isso um homem feito, seus 28 anos, talvez. Deslocaram de lugar as prostitutas da área, raras, com alguma idade e clientela de aposentados. Uma vez, tive o número e liguei para o Coronel Solano, tipo vice chefe da Polícia, algo assim. Queria pedir-lhe uma solução, um susto, que fosse, para que saíssem dali, por conta do prejuízo nos serviços do Cuíra, na área social e artística. Pra quê. Ouvi um sermão de vários minutos sobre ser um problema social, que estoura nas mãos da Polícia e  escambau. Assim o comandantezinho da patrulha que está lá no Cuíra agora, tarde de quarta feira, 30 de janeiro.
É uma reportagem sobre a Cracolândia? Que Cracolândia? Aqui não tem isso. Não tem? Tem sim, senhor comandante. São apenas umas cinco pessoas consumindo crack. Cinco pessoas? O senhor então não sabe. Trabalho aqui com o Teatro e posso lhe dizer que são uns cinquenta, talvez, tá bom, uns trinta, quem sabe. Olha aqui, esse é um problema social, entende? Nós estamos sempre passando por aqui. Passam e eles saem. Vocês dobram a esquina, eles retornam, vão até a Praça da República e voltam. Pronto, tocou novamente o celular. Ia dizer a ele que do meu prédio, podemos ver até o traficante agindo. Quando aparece a Polícia, certa vez, o guarda o conhecia. O traficante foi até lá, deu abraço e saiu na boa.
Leio que em SP, há discussão a respeito. Paulo Faria, que tem um teatro instalado no centro, região da Luz, é contra a tal internação compulsória. Drauzio Varela acha que precisa internar. Não tenho preparo para responder, mas, mais do que atrapalhar a paisagem, incomodar quem passa, até ameaçar os transeuntes, a sociedade precisa encontrar rápidamente uma saída para esses infelizes viciados.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Vale a pena ler

Rituais de sofrimento
Silvia Viana
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Professora de sociologia na Fundação Getúlio Vargas (FGV) e doutora pela USP, Silvia Viana leva a sério o aparente escárnio da designação “reality show” emRituais de sofrimento, novo livro da coleção Estado de Sítio a ser publicado pela Boitempo.

“Não lidamos aqui com um ritual como outro qualquer, não se trata de uma festa ou do consumo, ambos cerimoniais oferecidos aos deuses do prazer. Trata-se de algo mais perturbador, pois o que se vê nos reality shows é a proliferação de rituais de sofrimento”, afirma a pesquisadora no primeiro capítulo.

Silvia Viana analisa tais rituais e mecanismos de dominação em vários produtos televisivos da indústria cultural brasileira, com especial atenção ao maior deles, o Big Brother Brasil, no ar há treze anos.
O estudo também abrange programas e filmes de Hollywood que perpetuam a mesma lógica brutal. Assim como no BBB, o assassino Jigsaw da franquia Jogos Mortais, por exemplo, não almeja a morte/eliminação de suas vítimas: ele quer que elas sobrevivam. Mais que isso, que sobrevivam a qualquer preço.

Quais são as molas que movem esse lado fake e nem por isso menos real do mundo em que vivemos? Onde estão as roldanas que dirigem as cordas, quem são as figuras que elas agitam, como o conjunto se fecha sobre si mesmo sem deixar lacunas? Silvia reflete sobre essas questões em um relato clínico, com traços firmes e finos, sem poupar nada nem ninguém. Segundo o sociólogo e professor da USP Gabriel Cohn, a fatura desse livro parece seguir uma regra básica: quanto mais o tema se revela repugnante, tanto mais refinada deve ser a sua exposição. O resultado é uma escrita em que não cabe o gesto banal da indignação moral nem a repulsa à má qualidade estética – ambas provocações já programadas no espetáculo –, mas algo mais fundo.

Apesar de permanecer na sociedade o debate em torno de um de seus discursos de origem, o mote do espetáculo da realidade e seu maior apelo junto aos telespectadores é a concorrência, não o voyeurismo. “É esse o fundamento que atrai o nosso olhar, pois é o fundamento de nossa reprodução social”, afirma Silvia.

Para além dos inúmeros recordes acumulados pelo programa Big Brother Brasil, é digno de atenção o espírito que, ao longo de três meses anuais, toma o público. A disputa hipnotiza as cidades como um espectro: sem entender como, sabemos nomes e acontecidos, o programa toma o ar e sufoca. É onipresente; está em todas as mídias e em todas as conversas; suscita contendas nos ônibus e táxis. Mas é na internet que o comprometimento do público toma corpo: sites, grupos de debate, blogs, salas de bate-papo, tuitagens, comunidades virtuais e campanhas inflamadas para a eliminação de fulano ou beltrano proliferam e deixam o rastro do dinheiro, trabalho e tempo oferecidos gratuitamente ao show de horror. Em espaços de reclusão, que pela própria dimensão já inspiram pesquisas acadêmicas, é unânime o desejo do embate feroz entre os aprisionados. Neles, impera o princípio muito bem formulado pelo organizador da rinha: importa muito mais a queda que a salvação.

O princípio violento do BBB não é oculto, pelo contrário, o próprio programa faz questão de afirmá-lo constantemente – e funciona inúmeras vezes como propaganda – ao enfatizar o caráter eliminatório e cruel do jogo. Cada edição impõe a seus participantes situações mais árduas. “Não é um jogo de quem ganha. É um jogo de eliminação. Esse saber generalizado, no entanto, não impede que uns se submetam e outros castiguem, nem que aqueles que se submetem também castiguem. Pelo contrário, a participação é a pedra fundamental do espetáculo. Mais que a aceitação passiva desse princípio nem um pouco subjacente, o programa conquista o engajamento ativo, frequentemente maníaco, nessa engrenagem de fazer sofrer”, afirma Silvia.

Dividido em quatro partes, “Show de horror”, “Das regras”, “Dos jogadores” e “Das provas”, o livro conta também com o posfácio “Breve história da realidade: sofrimento, cultura e dominação”, do professor-adjunto de filosofia da Universidade Federal de Juiz de Fora Pedro Rocha de Oliveira, e com texto de orelha assinado por Gabriel Cohn.
Trecho do livro
“A dificuldade de se escrever a respeito da ideologia hoje é que para o juízo bastaria a descrição, mas essa já não o (co)move. Se uma pessoa se mostra crítica ou mesmo condoída diante do sofrimento que se avoluma nesse tipo de programa de TV, a ela caberá a pecha de idiota (ou invejosa!). A dominação se mostra a céu aberto em dia claro, sem que se renuncie à sua prática. Todo discurso a respeito de justiça, liberdade, igualdade e até mesmo bondade é descartado com virilidade em nome de uma dura realidade. [...] Não são poucas as vezes em que coloco o problema do sofrimento ao qual são submetidos os participantes e a resposta é: “Mas foram eles que se voluntariaram”. Uma das ideias centrais que sustentam o estado de direito é a da inalienabilidade: não se pode abrir mão da dignidade, por exemplo, mesmo que se queira. Em tese, nenhum contrato assinado pelos participantes de reality shows poderia ser válido em qualquer lugar no qual a democracia e os direitos humanos vigoram. E o problema jurídico posto por essas produções não responde sequer ao paradoxo dos direitos humanos colocado por Hannah Arendt, segundo a qual tais direitos só podem ter vigência quando levados a cabo pelos estados nacionais, ou seja, os apátridas não os têm. Os participantes são cidadãos brasileiros, alemães, norte-americanos, holandeses, argentinos e um longo etc. A vida à disposição da produção de entretenimento a que se assiste em reality shows é um índice mais do que transparente de que vivemos em um estado de exceção permanente, pulverizado e onipresente.”
Sobre a autora
Silvia Viana é professora de sociologia na Fundação Getúlio Vargas (FGV), formada em ciências sociais e com mestrado e doutorado em sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Suas áreas de estudos são sociologia, crítica cultural e filosofia, com ênfase em teoria crítica contemporânea, teoria sociológica e sociologia da cultura.
Ficha técnica
Título: Rituais de sofrimento
Autora: Silvia Viana
Posfácio: Pedro Rocha de Oliveira
Orelha: Gabriel Cohn
Páginas: 192
ISBN: 978-85-7559-309-7
Preço: R$ 37,00
Coleção: Estado de Sítio
Editora: Boitempo