sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Q

Convido-os a assistir, na Netflix, um documentário sobre a vida de Quincy Jones. Para quem nunca ouviu falar, acho que são poucos, Q, como é conhecido, é um dos maiores artistas da música em vários gêneros, no mundo. Aos 85 anos, vivendo em Los Angeles, cercado pelos filhos, creio estar aposentado. Nunca se sabe. A pergunta que me faço é de onde vem o talento? Q viveu, com o irmão, a infância, no sul de Chicago, extremamente violento e pobre. Seu pai era operário da construção civil e a mãe, esquizofrênica, esfomeada e sem remédios, acabou por ser internada em um hospício, acontecimento que o marcou para sempre. Mudaram-se para Seattle e lá, em uma casa abandonada, Q encontrou um piano de parede, tocou nas teclas e sua vida mudou. Em uma escola, passou por vários instrumentos até escolher o trompete. Passou a tocar em clubes noturnos, fazendo parte de orquestras que corriam os EUA. Em cidades do sul, racistas, tocavam e saiam pela porta dos fundos, não raro passando por igrejas onde um boneco negro de pano estava pendurado, como que enforcado. Tuff days. E aí fez amizade com figuras como Ray Charles, Miles Davis, Count Basie, Marvin Gaye e começou a assinar arranjos. Empolgado, viajou para Paris onde estudou composição e partitura com a Madame Boulanger. Ali, não havia nenhuma restrição à sua cor. Chamou os amigos, montou big band, correu a Europa. Casou com uma sueca. Voltou e foi ser diretor e arranjador de uma gravadora de música pop. Foi às paradas. Começaram a chover convites. Gravou seus próprios discos. Teve um piripaque. Abriram sua cabeça a primeira vez. Saiu e foi arranjar para Frank Sinatra, que era acompanhado pela orquestra de Count Basie, ile même ao piano. Uma glória. Não se enganem, Sinatra lia partitura. Nelson Riddle dizia que ele chegava ao estúdio com o arranjo na cabeça. De lá saiu para a revolução do bebop com Miles Davis. Não era apenas talento. Era uma dedicação, uma exigência pessoal, fazendo com que cada trabalho fosse considerado o melhor. Simples. Resolve compor e arranjar para o cinema. Na época, negros não entravam nessa linha. Henry Mancini reinava e o apoiou. Ganhou prêmios. Em uma madrugada, no hotel, zapeando a tv, madrugada, encontrou Oprah Winfey, a apresentadora, a quem deu um empurrão que a transformou na milionária famosa de hoje.

Então surgiu Michael Jackson em sua vida. O primeiro trabalho já recebeu prêmios. O segundo, “Thriller”, tornou-se o disco mais vendido no mundo. Fez com que Jacko mostrasse todas as aptidões de gênio que marcaram sua vida. Uma dupla infernal. Q e sua banda criaram tantos toques instrumentais que penso que hoje, se ele voltasse a mexer nos tapes, lançaria outro “Thriller”, com as mesmas músicas, e acompanhamentos diferentes aos quais estamos acostumados a ouvir. Lançou o disco “The Dude” e arrebentou novamente. Criou uma noite especial em Montreux. Lançou um selo pessoal para afilhados. QWest. Uma revista chamada “Vibe”, para falar dos artistas negros, já que os brancos têm a “Rolling Stone”. Voltou para uma apresentação e, no palco, sentiu-se mal. Abriram a cabeça. Tumor. Operou. Descobriram outro para operar três meses depois. Chances de uma em cem. Sobreviveu. O desafio da música. Não consegue fazer menos. Casamentos se foram. Ficaram seis filhos, somente um menino. Produz e compõe a música de “Color Purple”. Sempre a causa negra. Reúne com a turma do hip hop. Tupac Shakur e Puff Daddy foram mortos pouco tempo depois. Veio Obama. Q produziu o show de inauguração do Museu Afro Americano. Em cadeira de rodas, percorre a área da música e vai vendo seus amigos, agora, peças do museu. Q é um gigante, para dizer o mínimo. Um dia, vai até Chicago ver a casa da infância. Momento de maior emoção. É preciso ser realmente grande para ser Quincy Jones. Assistam.

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

ZAZÁ

Nasceu Tomázia e virou Zazá. Infelizmente, quando veio o diagnóstico de nanismo, sua mãe a rejeitou e o pai a deu para uma mulher que ia passando. Esta, não tinha filhos e a adotou. Na medida da necessidade, cresceu e entendeu a profissão da mãe: prostituta. Virou amiga das amigas, mas não tinha amigas de sua idade. As pessoas tinham medo. Ignorancia. Achavam que anã dava azar, feitiço. As colegas da mãe, incluindo as bichas a criaram. Prostituta, também, lidava com os mesmos medos no rosto dos homens. Mas para outros, era um prato raro e bem pago. Vai entender esses idiotas. Todas faziam ponto na Riachuelo mas iam mesmo era na Paraíso Perdido, uma boate na Manoel Barata que abria pouco depois das seis da tarde e pegava os comerciários que precisavam de alguma alegria, cerveja e sexo para disfarçar a vida de merda que levavam. Quando finalmente Zazá chegou à Paraíso Perdido, aquele mundo de luzes, música alta, homens e mulheres dançando e se esfregando, aquele olor de sexo a conquistou. Foi como uma rainha chegando enfim ao seu reino. É claro que chamou a atenção de todos. Não deu bola. Fez seu número, rebolou, jogou cabelão, fez olhar especulativo. Não era sempre que alguém se aproximava. A velha burrice sobre anões. Não a abalava. Quando começava a se sentir tristonha com alguma graça sem graça de algum bêbado, ligava o ouvido da música, discotheque e chutava pra longe a tristeza. O dono era um chinês, chamado Liu. Só isso. Liu. Sabe como é chinês, né? Misterioso. Três homens grandes e maus faziam a segurança. Marinheiro bêbado quer agredir puta no fim da noite. Comerciário com ciúme de puta, enfim. Todos para fora. Foi chegando próximo dele. Conversa besta. Poucas frases. Uma noite, fim da noite, Liu perguntou se ela podia ficar um pouco mais. Até terminar as contas. Que foi, china. Desembucha. Liu não tem ninguém. Liu sozinho. Quer ficar hoje com Liu. Quarto lá em cima. Ninguém quer Liu. Tu queres? Zazá viu nos olhos do china, também, a sua solidão. Subiu.
O que o pessoal do Bronco viu é que eu passei várias vezes pela frente da Paraíso Perdido, até entrar, acompanhado do Pedro, claro. Eu queria saber toda a história da Zazá e o que tinha sido feito dela. Há muitos personagens na Campina. Foi um dos primeiros bairros de Belém. Estava lendo um livro emprestado pelo Lucio Flavio, com a história do Eduardo Angelim, grande figura da Cabanagem e lá está a Campina, sendo cenário de combates e território a ser conquistado pelos cabanos atacando a cidade. Os Boêmios da Campina, inesquecíveis. A Zona de Prostituição, sobre a qual escrevi “Laquê”, primeiro espetáculo do Grupo Cuíra em seu Teatro, com a presença de prostitutas em metade do elenco. Sim, houve ganhos sociais. Ao menos três das cinco ou sete mulheres, deixaram a profissão. Lembrei disso ao ver hoje, a Verona (nome fictício), mulher grande, bem, podemos chamar de gorda sem insulta-la. Farta daquela eterna espera, de ser o recipiente para desejos, mágoas, ódios e o que mais seus eventuais parceiros tinham a entregar, com suas agruras, decepções e sabe la mais o quê, agora tem um carrinho onde vende bombons, chicletes e cigarros a retalho, estacionada diariamente em frente a uma parada de ônibus, na Presidente Vargas. Tem um olhar tristonho, a Verona, talvez cansada de tudo, a dificuldade em locomover-se, pelo peso, falta de uma vida, digamos, adequada. Mas quem não anda meio chateado com tudo, neste nosso Brasil, neste nosso Pará, nesta Belém de hoje?

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

UM MUSEU PESSOAL


Um cenário desolador. Luzes acesas revelando um local onde muitos sonhos de riqueza, a maioria,não aconteceram. Havia garrafas de bebida, aqui e ali, em mesas luxuosamente montadas, com toalhas bonitas, cadeiras confortáveis. Andamos por entre as roletas, baccarat, aparelhos de vídeo que publicavam resultados aqui e ali.
O porteiro me disse que meu amigo ia mandar me buscar às nove da noite. Esperasse na portaria. Assunto do livro. O carro veio e fui, vendado, mas sabia onde iria.
Chegamos a uma sala em um tipo de sobreloja, grande, com uma enorme mesa circular e espaços para serviços de restaurante e bar. Uma cozinha já meio antiquada para os equipamentos de hoje. Depois, fomos através de um corredor, até outra sala, não, um quarto, luxuoso, cama grande, aparelhos diversos, de som a tv, banheiro totalmente pronto com jacuzzi hidromassagem. O Bronco perguntou se estava satisfeito. Havia poeira e ele tinha rinite. Posso voltar aqui sozinho? Não. É só hoje. Esse é meu museu pessoal. Guardo tudo como era. Mas é só meu. Se te mostro é porque entendi o teu barato de escrever. Mas também preciso novamente te avisar pra não chegar próximo do meu negócio. Fica na tua. Escreve teu livro. Respeito gente de letras. Mas já te disse, meu negócio é sagrado. Garanti a ele que não estava procurando nada que o envolvesse. Neste momento, isso não é meu assunto. Agora me diz, o que tu tens a ver com esse lugar aqui? Te conto mas isso se esgota aqui, tá bem? Não quero levantar lebre sobre minha pessoa, de onde vim e coisa e tal. Já gasto uma boa grana pra manter uma turma aí sossegada, sem perturbar. Trabalhei com ele. Ele quem? O Seu Clayton. Ah. Foi meu primeiro emprego o de garçom. Fui aprendendo, melhorando e fazendo amizade. Sabes que amizade é tudo nessas horas. Ele confiava em mim. Então passei a servi-lo pessoalmente. Sabia de tudo o que ninguém sabia. Infelizmente, não percebi aquilo que estava acontecendo bem próximo. Ele também não sacou. Depois de tudo ele foi deixando esse cassino morrer, perdeu o gosto e tudo acabou. Mas isso tu já sabes, não é? É, já sei. Mas encontrar o lugar foi importante. Te agradeço. Não te preocupa. Será ficção a partir de algo passado há tempos atrás. Tu estás sendo legal comigo, fica tranquilo, na boa. Meu assunto é escrever ficção. E só.

Ah, Carmen, Carmita querida! Essas tuas perdas estão ficando cada vez maiores, minha flor. A tua sorte é que tenho um fraco por ti. Vamos lá para a suíte ficar à vontade? Logo mais o cassino fecha e tu ainda precisas voltar pra tua casa, não é? Olha que aquele teu marido ainda vem todo rebarbado falar comigo.. Que nada! O Sérgio não quer saber de mim. Vive de plantão, médico de UTI, sempre salvando vidas, na pressão. Ele nem consegue mais, sabe, né? Minha querida, isso não vou discutir contigo. Ari? Ari? Manda dois duplos lá pra suíte que eu vou pra lá com a Carminha. Foi ao banheiro fazer um xixi. Olhou-se no espelho. Ainda muito bonita a Rainha das Rainhas da Assembléia Paraense, não? Um pouco de cansaço no rosto. Noite infeliz na roleta e alguns Walkers a mais na cabeça. Paciência, em noites de azar, acaba na cama do grande Clayton. Perdeu, tem que pagar. Tirou a roupa, deitou-se na cama e virou ao contrário, no criado mudo, uma foto de Clayton e sua esposa Ann Marie, mais os filhos, ainda crianças. Sua boba! Clayton já chegou com os dois duplos. Brindaram, beijaram, mas na hora de fazer, ele pediu que ela ficasse de costas para ele. No ato, só pensava em Paula, Paulinha, baby, baby, você ainda será minha.

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

UM GORÓ

Você acorda assim meio tonto, pescoço doendo por conta da posição em que deitou, olha em volta e não sabe onde está. Sim, mas agora, como é que eu vim parar na escadaria do Arquivo Público a essa hora da noite? Apalpei os bolsos e estava tudo lá. Celular desligado, carteira intacta, chaves. Duas e pouco, não, quase três da manhã. Quer dizer que era só uma prova de nada e rápido eu ia acordar. Liguei para o Pedro e ele veio me buscar de moto. Estava de serviço. Uma turma que circula pelo comércio e pela Campina protegendo a galera. Primeiro baixei na Esther para comer alguma coisa. Nem havia almoçado. Hoje falei com o Ariosvaldo, o Bronco, disse ao Pedro. Quer dizer, me levaram pra falar. Hora do almoço, ia na Presidente Vargas, quebrei na Ó até a Primeiro de Março para chegar ao Largo da Palmeira. A rua é estreita. As calçadas, também. Alguém me tocou o braço. Mano, o chefe quer falar contigo. Um carro ao meu lado. Vidros negros. Abriu a porta. Me empurraram antes que pudesse esboçar defesa. Desculpa aí, cara, é só uma conversa. Chuta, põe a venda nele. Chuta? Porra, não aperta tanto. Doutor escritor, não encrespa com o Chuta. Ele é assim meio mão pesada, mas é boa gente. Sabe porque Chuta? Porque chuta pra caralho! Riram. Havia mais pessoas. Rodamos pelo comércio. Trânsito lento. Mas eu sei que acabamos na Primeiro de Março, ainda, mas para trás, depois da Carlos Gomes. Conheço a região na palma da mão. Abriu uma garagem. Tiraram a venda. Subimos. Taí, chefe, o doutor escritor, como o senhor pediu. Ninguém aperreou, até contamos piada, tudo limpeza. Boa tarde, cara, senta, por favor. Me disseram que tu és viciado em Coca Zero, é? Balancei a cabeça. Trás uma aqui pro doutor, estupidamente gelada. Deixa eu te dizer: eu sou o Ariosvaldo, mas a galera me chama de Bronco, apelido de infância. Tu sabes, a gente conhece quem mora por aqui. Sei muito bem onde é teu muquifo ali naquele prédio antigo, sei daquele teu cachorro que morreu de repente, pqp, o cachorro era bonito pra dedéu! Mas é que tu andas fuçando muito aqui e ali e aí, sabe como é, essa área é do meu controle. Porra, tu me vai na Paraíso Perdido com o Pedro, gente boa, me dou com ele, te protegendo, depois circula pelo Veropa, perguntando. Então já te encontram no 77, ali junto dos fundos do Basa, perguntando. Porra, eu nunca te vi metido onde não devias. Até soube dos livros e tal, mas sabe, eu não ando com tempo pra ler. Eu lia, verdade, mas dava sono. Lembras daquele livrinho que vendia na banca, da Brigite Montfort, o ZZ7, acho? Porra, escritor, me diz o que é que tu estás querendo, porque eu não deixei ninguém chegar junto por respeito. Gente letrada, gente boa, sabe como é. O que é que tu estás procurando?
Naquele dia, o movimento no cassino tinha sido pequeno. Eram o quê, umas quatro e meia e todo mundo havia se mandado. Tito, vigia noturno do estacionamento na esquina da Primeiro de Março com General Gurjão olhou quando passou um carro de bacana em marcha lenta. Acendeu um Carlton, que na verdade é Dunhill e se encostou. Alguém saiu. Se acocorou na porta lateral de onde era o Teatro Cuíra. Demorou uns três, quatro minutos, voltou pro carro e saiu rápido. Deixa pra lá. A essas horas, tudo pode acontecer nessas bandas. Quando estava entregando o serviço pro Boró às seis e tanto, passou um carro de Polícia e parou. Desceram. Umas putas gritaram. Alvoroço. Fui lá ver. O Matinho, porque era só na maconha ou crack, tava morto. Foi no pescoço. Um corte fino, quase degolava. Linha encerada. Aquela garganta exposta. O polícia perguntou se alguém tinha visto. Olhou pra mim. Eu não, cara, eu.

Expliquei pro Bronco. Era pesquisa para um livro. Não tinha nada a ver com os negócios dele e nem iria botar nada que comprometesse. Escrevo ficção, cara, fica tranquilo. Então, tá. Vou confiar em ti. Mas tu já me conheces e no meu negócio eu não brinco nem sou educado, tá? Valeu. Os caras vão te dar um goró aí, dose fraca, só pra tu dormires um pouco e não saber esse endereço aqui, certo? Porra, vê se não é muito forte, aí..