sexta-feira, 28 de abril de 2017

HOTEL FLORIDA

Após ler “Hotel Florida”, de Amanda Vidal, Editora Objetiva, confesso ter ficado bem impressionado. É um livro sobre a Guerra Civil na Espanha, que serviu como uma introdução à Segunda Guerra Mundial. Muito bem documentado, o livro foca principalmente em figuras ilustres que estiveram presentes, de alguma maneira, divulgando tudo o que acontecia por lá. Em um momento tenso que todos vivemos, com Putin, Trump, o garoto norte coreano, China, unidade da Europa, desmanche total da esquerda na América do Sul, vale a pena ler. Também não sei porque até hoje esse evento foi pouco utilizado seja pelo cinema ou livros, por tudo o que o envolve. Poucos anos após a Primeira Guerra Mundial, após muitas pressões, o Rei Afonso XIII deixa a Espanha e vai para o exílio e em seu lugar, surge a Segunda República, de ideologia socialista, de alguma maneira ecoando os acontecimentos de 1912, na Russia, com a deposição do czar e a chegada de Lenin, Trotsky e Stalin ao poder. O novo governo espanhol inicia promovendo mudanças sociais que agradam ao povo. Nem todos. A direita não se dá por vencida e começa a reunir-se, principalmente com o general Jose Sanjuijo, para dar um golpe. Agora percebam como estava o mundo. Além do comunismo na Russia, Hitler assume a chancelaria da Alemanha em 1933. Dois anos depois, Benito Mussolini, na Italia, vem com o fascismo e no mesmo ano, Stalin dá início ao grande expurgo que o transformou em novo czar, embora o resto do mundo não se desse conta disso. Pior, Estados Unidos, França e Inglaterra assinaram tratado de não intervenção. Em 36, vem a revolta da direita, com apoio de alemães e italianos, elegendo Franco como seu comandante político. Os socialistas do governo mandam todo o ouro para a Russia, onde ficaria protegido.. Foi a última guerra romântica, se é que se pode dizer isso, diante de uma mortandade terrível, fome, frio e muitas outras dores para os civis. De todos os lados do mundo, correram para defender o socialismo milhares de jovens, formando as Brigadas Internacionais. E aí vêm as grandes figuras presentes. Entre americanos, o escritor John dos Passos, sempre em litígio com Ernest Hemingway e sua namorada Martha Gellhorn (seu romance virou um filme recente), Herbert Matthews, correspondente do NY Times, Maxwell Perkins, editor de Hemingway, Scott FitzGerald e também em filme recente. Entre os ingleses, um certo Eric Blair, cognome de George Orwell. As peripécias são por conta do húngaro Andre Friedmann e sua namorada Gerta Pohorylle, que sem conseguir publicar suas fotos, mudaram seus nomes para Robert Capa e Gerda Tow e ficaram para a história. Um grande amor. Outra história, a dos austríacos Ilsa Kulcson e Leopold, marido e mulher, ela tornando-se figura de proa dos nacionalistas ao lado de seu novo amor, Arturo Barsa, secretario de imprensa, ele, Leopold, virando agente duplo. Querem saber, até Saint Exupery esteve em Madri para ver o que acontecia. Andre Gide foi à Russia, escreveu um livro dizendo umas verdades e poucos quiserem acreditar. Entre bombas e tiros, reuniam-se, à noite, no Hotel Florida para beber, jogar, namorar e conversar. Até um filme americano estava sendo feito, com intervenções de Hemingway. Lilian Hellman devia ter sido roteirista. Pablo Neruda, consul chileno, teve a casa destruída. Erroll Flynn apareceu pedindo uma bebida. Lorca foi fuzilado. Guernica foi bombarbeada por ordem do alemão Göering e Picasso mostrou sua obra no Pavilhão Espanhol na Exposição Internacional em Paris. Ufa! Amor, sedução, ódio, mortes, romance, está tudo em Hotel Florida.

sexta-feira, 21 de abril de 2017

OS ESPECIALISTAS

Costumo ler os artigos escritos pelo jornalista Helio Schwartsman na “Folha de São Paulo”. Um desses dias, escreveu sobre um livro chamado “The Death of Expertise”, de Tom Nichols, que trata de um assunto que muito me interessou. Lembrei de um amigo jovem, que após passar um desses feriados prolongados ouvindo a discografia do King Crimson, começou a discorrer sobre a banda. O KG é um conjunto de rock progressivo que brilhou na década de 1970, sendo considerado por alguns, como eu, a melhor banda de todos os tempos. Não se trata de ciúme, como se meu jovem amigo quisesse me tirar a expertise, porque foi ao iTunes, baixou a discografia e agora já sabe tudo. É que, por mais conhecimento que possa passar a internet, há outras coisas que penso importantes, na construção do conhecimento. 
O livro de Tom Nichols é exatamente sobre isso. Meu cachorro está doente. Vou ao Google, pesquiso e quando chego no médico, passo a discutir com ele os sintomas e melhor tratamento. A internet seria a morte da especialização? 
 Há pouco tempo esteve em Belém ministrando uma oficina um diretor de teatro russo. Em uma entrevista, disse que em pouco tempo, as universidades fecharão as portas. Tudo estará no Google, na internet. Quem quiser saber, que estude. Frases como essa me fazem pensar. De início, parece ter muita razão, mas, após refletir, penso que esse conhecimento não é algo que possa ser, digamos, injetado em alguém em cursos de final de semana, ou em ampolas, sei lá. O conhecimento não vem apenas dessa informação, publicada e passada por outros. 
O ser humano está sempre em progresso, principalmente quando jovem. Volto ao meu pobre exemplo, sobre a banda King Crimson. Era adolescente. Tempo do vinil. Há o tempo de ouvir, descobrir, ouvir novamente várias vezes. A vida que segue correndo. Os acontecimentos. O mundo à volta. A música maturando. E no ano seguinte, vem outro disco. Notamos o desenvolvimento, novos integrantes, outros sons. E assim por diante. E a Medicina, por exemplo? Como ser expert sem experiência dentro de consultório ou sala de operação? O conhecimento teórico está lá e certamente, em vídeos, quem sabe, projeções holográficas, o acompanhamento de operações. Mas será a mesma coisa que estar ali, verdadeiramente, tocando no paciente e, depois, maturando sobre o que aconteceu, recapitulando mentalmente, desenvolvendo sua expertise aos poucos? 
Vi recentemente o filme sobre Elis Regina. Tinha a voz, mas nada mais sabia sobre o palco. O fantástico Lennie Dale a ajudou, mas diria que, anos depois, já casada com César Camargo Mariano, é que surgiu a verdadeira maior cantora do Brasil. A que sabia o que dizia a letra e a interpretava, mistura de técnica e emoção, domínio absoluto do palco. Aos poucos. A vida passando paralela com todos os seus acontecimentos. 
Então você aprende na internet a cantar como Elis? A operar como um experiente neurocirurgião e tantas outras profissões? Sim, é um perigo que atravessamos no momento, esse momento que hoje muda a cada instante, proporcionando novidades, novas perguntas que precisamos saber responder. E como evitar que alguém, realmente curioso, vá à internet informar-se sobre tudo? Meu outro amigo tem oito anos de idade e pergunta tudo ao Google. O que é estupro? A máquina responde. O futuro chegou e já passou. Precisamos responder a essas questões. Informação nunca é demais, é verdade, mas o tempo de maturação da informação ainda é importante?

sexta-feira, 14 de abril de 2017

A TRAVESTRISTE

Quando o mundo discute a questão da aceitação normal na sociedade dos trans e demais siglas, penso que conheço o travesti mais triste, ou talvez nem seja isso e eu apenas tenha criado um personagem a partir do pequeno contato que tive, e também por vê-la nos arredores de meu prédio, a partir de sábado e às vezes ainda no domingo. Pensei nela e resolvi escrever alguma coisa ao passar de carro, domingo, meio da manhã, pela Riachuelo e encontrar Blake e ela, discutindo. O Blake vocês conhecem, um moreno baixinho, meia idade, grisalho, que certamente por conta de poliomielite na infância, tem duas pernas prejudicadas. Por seu andar, o apelido deveria ser “Break”, por conta daquela dança nos anos 90, talvez. Mas como a pronúncia fica difícil, acabou sendo Blake. Como mantêm-se vivos esses personagens, confesso que não sei. Consumindo o que consomem, não comendo o que deveriam comer, dormindo ao relento, sujeitos a todas as intempéries, por muito menos eu já estaria em uma UTI. Mas estava falando do, vamos chamar de “Travestriste”. Infelizmente não sei o nome dela. Uma vez, estava andando, sábado, pela manhã, na Praça da República, com meu golden Antonio e ela estava lá, lânguida, estirada em um dos bancos. Mexeu comigo por dever de ofício. O rosto melado da noite, olhos vermelhos, cansados, um bafo de bebida terrível, foi pelo costume. Ao agradecer e recusar, ela, como todos os moradores da rua, pediu um cigarro. Aproveitei para perguntar se trabalhava durante a semana, em um ofício, digamos, menos radical. Sou cozinheiro em um restaurante próximo daqui. Só me monto no final de semana. Penso que inicia sua história, seu filme, seu enredo, na sexta à noite. Depila-se, faz maquiagem, unhas e sai, orgulhosa, certa de sua sedução. É agora uma mulher magérrima e creio que esconde pernas finas em calças com boca de sino. Sapatos de salto altíssimos. Uma camisa de manga comprida, colares, brincos gigantescos e um enorme rabo de cavalo no aplique. Sai por aí, rondando bares e inferninhos como um que dá a frente para o Boulevard e o fundo para a Manoel Barata. Para meu próximo livro, vou visitar esse antro, claro. Aquele centro da cidade é sua Broadway, o lugar onde desfila. Quando a vejo é sempre no sábado, virada, como se diz de alguém que não dormiu. No sol quente das nove da manhã, ela às vezes está jogada na calçada, guardando um mínimo de charme. Em outras, lutando contra o cansaço, a bebida, a ressaca, faz gestos em direção aos homens e motoristas que passam. Palavras doces, convites ao sexo, propostas. Gestos estudados no espelho, super femininos, lânguidos, repito a palavra. Quando a vi, no tal domingo, Blake a empurrou e ela deixou-se chocar com a parede de uma casa, mas lá caiu em uma pose de foto, lembrei da expressão “Strike a pose”. Ri. E no entanto seu olhar encerra uma tristeza imensa. Tristeza de não viver plenamente sua feminilidade? Tristeza do mundo que vive, ante seus sonhos de grandeza? Por saber que no dia seguinte estará de volta a uma cozinha cheia de fumaça e cheiro de alho? O que pensa quando sai, toda semana, montada, rebolando, pelas ruas escuras e perigosas do centro?

Essa falta de tempo me impede de chegar próximo, mais uma vez, resistir à cantada de hábito e perguntar por sua vida, suas crenças, seus amores. O que somos nessa vida sem os nossos sonhos, nossos objetivos? O que nos faz, todos os dias, levantar, tomar uma chuveirada e sair para o mundo? Penso que se dermos tudo o que ela gostaria de ter, roupas, sonhos realizados, um amor, um mundo, ela nem saberia o que fazer. É preciso cuidado com o que sonhamos. Ela estará lá, a travestriste, neste final de semana, novamente.

sexta-feira, 7 de abril de 2017

QWERTY

Eu ia emburrado para o curso de datilografia. Minha mãe me matriculara, prevendo (talvez) meu futuro como jornalista. Foi uma das melhores ações em relação a mim. Também aprendi inglês a partir dos oito anos. As pretinhas, como chamava as teclas o grande Millor Fernandes, fazem parte da minha vida. Tenho até uma mania. Ao ouvir determinadas palavras que me interessam, as escrevo com os dedos tocando a palma das mãos. Tique nervoso, sei lá. Meu pai tinha uma portátil, Royal, belíssima. Minha primeira máquina, penso que era uma de trabalho, negra, difícil de domar. Depois, quando comecei a trabalhar em rádio, era mais moderna, estrutura em plástico, onde desenvolvi a habilidade usando todos os dedos. Lembro, redigindo o jornal Zeppelin, da velocidade que alcançava. Houve a breve experiência com uma Facit, elétrica, mas que constantemente dava problemas em imprimir o texto. Já era o tempo da fita de correção. Mas ainda não era o fim do revisor de texto. Antes, riscávamos o erro, acrescentávamos às laudas, comentários paralelos, enfim, um borrão. Então vieram as máquinas elétricas com esfera redonda. Eram uma delícia de escrever. Lembro do meu irmão Edgar e de meu pai Edyr escrevendo. O primeiro fez curso de datilografia, mas meu pai, velocíssimo, usava apenas dois dedos de cada mão, um pouquinho do que hoje é feito pela maioria, nos computadores. Então os PCs invadiram nossas vidas. Millor reclamava do silêncio que agora havia nas redações, antes tão barulhentas, com as máquinas manuais. O Jornal do Brasil lançou um manual. Millor escreveu mais. Da vergonha de uma máquina nos corrigir a cada vez que cometêssemos um erro. Naquele silêncio, ao ouvir o som, todos na redação olhavam e ele ficava humilhado. Maldita máquina. Então me entregaram um computador e o programa Carta Certa, ancestral do Word. Preguei acima da máquina, a sequencia de botões necessárias para liga-lo. Havia também AltControlDel. Era tudo muito difícil, diferente, o que hoje qualquer criança faz. A leveza do toque, em comparação à violência das manuais. Outro mundo. Vieram os notebooks, os padrões diferentes e hoje não conseguimos viver sem um teclado, seja no relógio, celular, iPad e outros. Ao contrário de mim, os jovens usam os dois polegares para teclar no celular, mais rapidamente. Sou da geração do dedo indicador. E não é que acabo de ter uma grande surpresa? Algo que nunca pensei que existisse. Estive na França e pensei em comprar um novo notebook, com mais possibilidades. Em Toulouse, tarde de folga, circulei pelo centro da cidade, tão bela. Dou de cara com uma revendedora da máquina pretendida. Havia um ainda mais moderno. O rapaz cheio de orgulho, me explicando. Comprei. Feliz, ansioso, retornei ao hotel para usar a novidade. Os primeiros toques, ensinando a máquina a seu jeito, são com teclas indicadoras. Finalmente, tentei escrever. Havia algo errado. As teclas fora de lugar. Como assim? Com defeito? No preço que paguei? Voltei correndo. Todos ficaram loucos. Haviam errado. Não me disseram. Na França, ao contrário de quase todo o mundo ocidental, a posição das teclas é AZERTY e não QWERTY, como sempre trabalhei. Pena, para conseguir um como queria, somente fazendo encomenda. Não havia tempo. Devolvi o notebook. Pensamos às vezes saber de tudo, mas não. Há sempre o que aprender no mundo. QWERTY e não AZERTY.