sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

EU SOU MUITO DOIDA, EU

Vocês deviam conhecer a Cléa. Mulher alta, sem idade definida, canelas e pés grandes, uma cor que mistura índio e negro e uma cabeleira enorme, negra, bonita. A voz é de baixo profundo, bela, como quem sempre tem uma queixa bem no fundo. Acaba de reaparecer nos arredores da Primeiro de Março com Riachuelo. Estava presa. Parece que nada aconteceu. Talvez tenha até engordado. Não é de falar muito mas todos a consideram “de responsa”. O rosto tem feições fortes, fechada e na testa, uma improvável tatuagem difícil de identificar por conta da cor da pele. Com algum pouco tratamento, penso que faria fotos de moda bem bonitas. Fizemos amizade e de alguma maneira, ela cuida para que nada aconteça ao Cuíra. De vez em quando aparece com uns presentinhos. Um brinco, uma pulseira, bem baratinhos, nada roubado. É prostituta e fatura seus caraminguás. Uma noite, havia qualquer desacerto na zona e ela chega e me diz ao pé do ouvido que não pode se meter. Sou foragida. Pensei na palavra que é utilizada para grandes bandidos, inclusive aqueles dos filmes de farwest que não perdia em vesperais eletrizantes no Cinema Paramazon, na Travessa Piedade, de onde voltava sem espoleta alguma. Eu assisti o momento em que foi presa pela última vez. Talvez fosse noite de domingo e não havia espetáculo no Cuíra. A Polícia parou e deteve um homem. Drogas, claro. Cléa se meteu. Defendeu o cara. Argumentou tanto que o policial disse que ia leva-la, também. Mesmo no escuro, percebi seu rosto contraindo. Quando percebeu que havia ido longe demais na argumentação, era tarde. A voz ficou mais fina. Começou a chorar e a dizer que havia apenas defendido o amigo. O guarda a tomou pelos braços e ela não reagiu. O carro da Polícia foi breu adentro e não mais a vi por algum tempo. É preciso dizer que muito do seu charme estava perdido. Na mudança de turma ao redor do Cuíra, muitos levaram a pior. Saíram as prostitutas de mais idade, que ali ficavam esperando os tiozinhos que vinham com o dinheiro da aposentadoria e entraram pivetões viciados em crack. Algumas prostitutas se foram. Outras trocaram de calçada. A Irene, especializada em sexo oral de vez em quando passa. Diz que agora está foló, pela idade. A Cara de Cavalo foi para o outro quarteirão e é uma lutadora. Às vezes, sol e nove da manhã e ela ainda aguarda uma possibilidade. Raimundona ainda espera. Outras, como Cléa, viciaram-se. É uma droga potente, mesmo que chegue batizada e rebatizada entre aqueles pobres diabos. A gordura do corpo se esvai. Ela estava ancuda, caneluda, apenas o cabelo negando-se a miar. O tempo passou e ela voltou. Na tarde de domingo, vou à janela e dou com um dos crackeiros subindo em um poste bem alto, na esquina do Cuíra. Acima, percebo, há uma tábua estendida até o telhado do teatro. A essa altura, o crackeiro puxa e arrebenta o fio que ligava uma câmera da Polícia. Tá tudo liberado, ele ri. Chamo 191, explico e inesperadamente, três minutos depois, uma viatura chega. O soldado manda o crackeiro subir e tirar a tábua. Primeiro diz que não fez. À ameaça do PM, ele, sem peconha, escala o poste com uma naturalidade olímpica e desfaz o feito. Vou até o teatro inspecionar se algo mais havia sido tentado. No caminho, vem a Cléa. Poxa, Cléa, dá uma olhada na galera. Olha só o que eles aprontaram. Eu to chegando agora. Não me meto mais com esse pessoal, não. Nem me fale porque eu to de passagem. Pergunto se ainda está na droga. Ela balança a cabeça. Sim. Quanto custa uma pedra? Dez real. Poxa, Cléa, tu és uma mulher ainda jovem, bonita, queres acabar com a tua vida? Ela me olha, como quem aceita o elogio, pensa na vida e responde: eu sou muito doida, eu.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

(OVENTO LÁ FORA)

Nós estávamos na casa de Rosenildo Franco, produzindo um programa que se chamou Sábado Gente Jovem e que apresentamos na Rádio Clube do Pará. Faltava um encerramento. Rosenildo foi até uma estante e trouxe um livro de Fernando Pessoa. Resolvemos abri-lo aleatoriamente e ler o que estivesse na página. “Nem tudo é dias de sol e a chuva, quando falta muito, pede-se. Por isso, tomo a felicidade com a infelicidade naturalmente, como quem não estranha que haja montanhas e planícies, rochedos e erva. O que é preciso é ser natural e calmo. Na felicidade ou na infelicidade. Sentir como quem olha. Pensar como quem anda. E quando se vai morrer, lembrar-se que o dia morre, o poente é belo e é bela a noite que fica. Assim é e assim seja. Ao fundo, o solo de flauta de “I talk to the Wind”, do King Crimson. A voz foi do mano Edgar Augusto. Não sei bem o que significou para os outros, mas em mim abriu uma janela para Fernando Pessoa, o famoso poeta português. Talvez pouco tempo depois, Maria Bethânia grava em disco seu show “Rosa dos Ventos”, onde declama um trecho do poema “Menino Jesus” e me arrebata. Primeiro, claro, pela beleza gigantesca dos versos. Segundo porque, trabalhando em rádio, mexendo com a melodia da voz, que dá todos os significados para quem ouve, Bethania levou-me para o mundo maravilhoso da poesia. Passei a consumir os livros lançados no Brasil. Passei a conviver com Pessoa e seus heterônimos (e o são, e não pseudônimos, porque tratam-se de personalidades e pensamentos distintos) Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Cheguei ao máximo de gravar o poema do “menino Jesus” e enviar aos amigos como presente de natal. A melodia é tudo. Mas não me tornei nenhum especialista no assunto. Apenas, de vez em quando, abro meus livros e releio meus poemas preferidos. Tenho a curiosidade em conhecer mais sobre sua vida, as circunstâncias. Por isso fiquei tão feliz em assistir o dvd “(o vento lá fora)”, onde Maria Bethânia e a especialista em Pessoa Cleonice Berardinelli declamam alguns poemas. É muito simples, como se estivessem na sala de sua casa. Tudo em p&b. A mesa, as pastas, alguns livros, copo de água, microfones. Cleonice brilha intensamente. Talvez tenha mais de 80 anos, mas é ativa e cheia de personalidade. Sua dicção é excelente. Sua melodia, reveladora. Tem o timing perfeito. A respiração. As pausas dramáticas. Chega a corrigir Bethânia aqui e ali. E revela detalhes, até mentiras de Pessoa que disse ter escrito em um jato, os poemas do “Guardador de Rebanhos”. Não foi bem assim. Nos extras, explica que há longos anos ministra cursos e profere palestras sobre o bardo português. Bethânia com sua voz poderosa, sua habilidade em encher de emoção suas interpretações. É tudo muito lindo e me pareceu imperativo recomendar aos leitores este dvd. Nosso mundo está cheio demais de realidade. Tiros são ouvidos, balas perdidas procuram por alguém. Vítimas em fuga, algozes em fúria, gente demais prometendo mortes em nome de seus deuses, enquanto outros oferecem a salvação em módicas prestações. Pessoas assassinadas por zombar de Deus. E nada é sagrado, não é? Não resisto em acrescentar um trecho de Pessoa/Alberto Caeiro, meu favorito: Mas se Deus é as árvores e as flores, e os montes e o luar e o sol, para que lhe chamo eu de Deus? Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar.
A leitura de Maria Bethânia e Cleonice Berardinelli foi apresentada uma única vez em público, na Flip de 2013. Soube que seria lançada em dvd desde o início do ano passado. Finalmente, chegou às lojas.



                                                            

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

NÓS QUE NÃO ESTAMOS NEM AÍ

O paraense Cacá Raymundo, há muito radicado em Fortaleza e vivendo situação pouquinho melhor em termos de violência, escreveu no Facebook que se tivesse uma chance de morar em Paris, iria imediatamente, por considerar o risco de atentado terrorista muito menor do que o que enfrentamos diariamente nas ruas. Concordo com ele, depois de ler em vários órgãos de comunicação anúncios falando em “Cidade Morena”, “Morena Sestrosa” e outros títulos que a Belém de hoje não merece. O ator e escritor Adriano Barroso acha a mesma coisa. Jantei com um paraense há muito radicado em Joinville e ele me contou da diferença monumental em termos de segurança. Estamos no fundo do poço. Somos os últimos lugares em quase todos os índices apurados. Leio todos os dias nos jornais em assaltos com reféns, muitos feitos nas esquinas das ruas que cortam o Umarizal, zona nobilíssima atualmente, onde passo diariamente. Espero pela minha vez. Dirijo com medo. Olho para todos os lados. À noite, não obedeço sinais de trânsito. Sou um alvo tentador. Classe média, carro bonito. Não uso película. Não considero segurança alguma nisso. A cidade está partida. Não em partes iguais. Diria que dez por cento pertence à classe média e o resto é de uma população sem direito a nada. Carente de tudo. Saúde, Saneamento, Segurança, Educação e Cultura. E sim, somos culpados. Nós votamos. Na época da eleição, deixamo-nos levar pelas promessas/mentiras. Escolhemos um lado por questões paroquiais. Nossa classe média viaja por todo o mundo, geralmente em grupos. Levam consigo a Belém. Ida e volta. Não trazem nada. Não dividem nada com ninguém. Nossos prefeitos são políticos e não administradores. As Secretarias são distribuídas a políticos aliados que por seu lado, cercam-se também de companheiros. Belém não tem planejamento urbano algum. Os bairros não são auto suficientes. As ruas não comportam mais carros. E que ruas! Noventa por cento não tem asfalto, nada. Acabam de anunciar uma segunda parte do tal BRT, embora nem exista primeira parte. Não sou especialista mas já li e concordo que nossa saída está no metrô por superfície. Não há ninguém que possa deter nosso prefeito antes que tudo ainda fique pior? Nós não estamos nem aí. Nossa população trafega diariamente espremida em carroças imundas, padecendo por horas em engarrafamentos absurdos. Estive na Augusto Montenegro dias atrás e é um caminho de onça. Não é rua, avenida, rodovia, nada. Não tem pavimentação, meio fio, calçadas. Vans assassinas desfilam impunes. Motos e bikes zunem em contramão, sem equipamento e carteira. E esse povo não reclama. É tangido diariamente pra lá e pra cá. Pivetões zumbis ocupam as avenidas com seus cachimbos e traficantes agindo às claras. Como suportar isso? Não fazemos nada. A classe média não está nem aí. Sai de seus condomínios de luxo e pisa na lama. A grande, imensa população mais pobre aceita essa agressão diária, essa humilhação, sem dizer nada. Como somos fracos! Bestas! Somos gado domado. E votamos nos caras. E deixa pra lá, não é comigo!

Precisamos de escolas, escolas, escolas. Saúde, saúde, saúde. Cultura, Saneamento. Transformar a cidade em canteiro de obras. Oferecer empregos. Dar esperança. Ter um porvir. E nós não estamos nem aí. Não vamos às ruas. Isso é pros outros. E cantar morena faceira para Belém, hoje, é um escárnio. Je suis Belém?

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

PARENTELA

Estou em um dos prédios do INSS, por conta de um problema na aposentadoria de minha mãe. É, talvez, a quarta ou quinta vez que venho aqui. Lá fora, na avenida Nazaré, o trânsito buzina, freia, grita e motores resfolegam. Aqui dentro reina uma modorra. A luz é branca e fraca. Dois monitores estão ligados no programa de Fátima Bernardes, mas não há som. O que se ouve é o ruído de outros monitores que avisam a senha da vez e o guichê de atendimento. Estamos todos calados e atentos. Quando fui chamado, me atendeu um senhor corpulento, moreno e cenho fechado. No peito, camisa aberta e uma medalha com escudo do Clube do Remo. Hoje, finalmente, tudo vai acontecer, pensei. Enviou-me até seu gerente. Outra espera. Ao meu lado, uma moça e sua mãe, bonitas. Vai falar com Seu Alberto? Não, digo, vou falar com Ronaldo. Ele me chama. Sua sala é pequena, sem adornos. Uma folhinha da Caixa 2015 está jogada em um canto. Um armário lotado de caixas. A mesa, um mar encapelado de papéis, processos. Na ponta, um computador desgastado é como o Rochedo de Gibraltar. Atencioso, educado, me surpreende com a acolhida. Em outra vez, na tal sala onde estava, com minha mãe, a atendente negou-se a reconhece-la, 92 anos, na carteira de identidade. Obrigou-a a tirar nova carteira, nova foto e enfim, ainda estou aqui tentando resolver. Ouve meu relato. Acho que deveria dar um trato no visual. Fazer a barba, pentear o cabelo. A roupa é neutra. A luz é branca e fraca. Tudo cinza. Mas para ficar naquele cubículo, sob a luz branca e fraca, mergulhado em um mundo de papéis, dar um trato para quem? Para quê? Desculpe a desarrumação da mesa. É que estou homologando ponto de servidores e fica tudo assim. Dá uns dois telefonemas. Amistoso, conta piadas rápidas aos colegas antes de entrar no assunto. Explica que, com o incêndio do prédio na esquina com a Dr. Morais, todos os processos de tal ano foram lá para São Brás. Mas vai se empenhar em resolver. Conheces Jurandir Camarão? Não. É que tua mãe é Camarão. Acrescento que a família é de Muaná. Isso mesmo. Não conheces Jurandir Camarão? Não. São todos de Muaná. Ela também é Magno, não é? Sim. Eu sou Magno. Tudo gente de lá. Pior, antes de tu entrares, estava aqui a esposa do atual prefeito de Muaná. Sim, meus avós maternos vieram de Muaná. João e Sant’Ana Camarão. Parece que o Marajó inteiro baixara naquela sala. Ele conta que alguém de lá, teve 25 filhos, com duas mulheres. Retruco que somente minha avó materna teve 14 filhos. Eram os costumes da época. Ronaldo prontificou-se a resolver o problema com a aposentadoria da mãe. E eu acreditei. Na saída, disse tchau, parente. E quando cruzei a porta, avisei à moça e mãe bonitas que o nome era Ronaldo, e não Alberto. E a caminho da rua, o atendente corpulento pergunta que tal. Tudo certo. E acrescentei: Leão! Ele sorriu, satisfeito.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

CENAS DE UMA AVENIDA

Moro desde que nasci na Presidente Vargas. Trabalho a pouco mais de cem metros de meu apartamento. Convivo com um naipe de personagens de fazer inveja a qualquer escritor. A cidade cresceu, eles invadiram a avenida que hoje está quebrada, suja, invadida e mal falada. Diariamente vou passando e cumprimentando a todos. Há Baldo, que toma conta de carros na praça. Magrinho, bigodinho, engraçado, cheio de mesuras, é um bom homem a se queixar de “Navalha”, um moreno com passagem na Polícia que o está ameaçando. Conversamos sobre o nosso Flamengo, mas sobre Paysandu, seu clube de paixão, nenhuma palavra. Ele sabe que sou do Remo. Há Zafá, que sempre me mostra no jornal, as “gostosas do dia”, com comentário malicioso. Falo com o “Macho”, m cearense arretado que trabalha com frete em uma camionete velha. Acabou de trocar por um carro novo, no qual passa o dia passando o pano. Os motoristas de taxi do ponto em frente ao INSS. Seu Wilson me pergunta pelo “bonitão”, que é meu Golden “Antonio”. Os engraxates e outros que tomam conta dos carros. MC do Senhor Jesus, um rapper que vende cartões de memória para celular e vive anunciando um grande show que nunca acontece. Na esquina com Aristides Lobo, há uma favela no espaço que, ao que parece, é dividido entre Prefeitura e Basa. Barracos fazem de conta que vendem bugigangas. Homens jogam cartas. Atrás do paredão, um sem número de cadeiras e um restaurante popular com zero de higiene, além de um banheiro improvisado, imundo. Do outro lado da rua, calçada dos Correios, vagabundos, hippies e camelôs afrontam quem passa. E na esquina da Manoel Barata? Um corredor polonês é formado por vendedores de comida ao ar livre de um lado e do outro, os clientes, comendo de maniçoba a caruru. Higiene? Passam os pratos em uma bacia suja e vamos que vamos. Devem ser, todos eles, muito importantes, perigosos. Sai governo, entra governo e eles ficam. Um homem caminha pela parada de ônibus, entre as pessoas que ocupam o asfalto, não se restringindo ao passeio, lotado por ambulantes, aos berros, fazendo leitura da Bíblia. Não há como não ouvir a voz do Senhor naqueles decibéis, mas entra por um ouvido e sai pelo outro. Atrás da “Presidente Vargas”, a “Primeiro de Março. Nela, ficam os crackeiros, que expulsaram as prostitutas e agora passam o dia lagarteando ao sol, arengando uns com os outros, aguardando a chegada de uma mulher franzina, sem seios, que se veste e procede como um menino, e traz as petecas de crack. Lá no Cuíra, nós os chamamos de “nossos imãs de geladeira”, pois ficam colados à parede do teatro. Pessoas se juntam para olhar alguém que está caído. É Blake, originalmente “Break”, por conta de uma deficiência física, provavelmente poliomielite, que o deixou com uma das pernas mais finas e lhe causa andar manco. Foi esfaqueado. Chamam o Samu que chega para socorrê-lo. Querem leva-lo ao PSM. Blake não aceita. Está rebarbado. Cabelos como daquele colombiano que jogou uma Copa. Voz de barítono. É largado com alguns curativos. A noite chega e aquela multidão que circula por trabalho vai voltando para suas casas, o silêncio toma conta do nosso centro. Carros de Polícia passam e inspecionam os crackeiros que ficam contra a parede. Nunca acham nada. Impressionante. Vou até a janela ver a lua e ouço o canto choroso de um lúmpen, sentado sobre um colchão velho e imundo. Ele encerra a canção e olha para mim. Bato palmas. Ele responde dizendo que a próxima canção, do Evangelho, seria para mim. E torna a cantar.