sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Eu já morri



Era para ser um dia normal, de aula. Mas Janalice percebeu algo diferente ao entrar. Não que sua passagem no pátio do colégio não provocasse, sempre, algum frisson, por conta da altura de sua saia. Mas era mais do que isso. Dentro da sala, cochichos e risos. Então a professora se irrita e alguém se levanta. Entrega um celular. A professora põe a mão na boca. Sai. O que é que tem no celular? Então Jacilene assiste a uma demorada cena de felação que ela protagoniza, junto a seu namorado Fenque, com direito a closes de sua genitália, a pedido. Chocada, não sabe o que dizer. A professora retorna. A diretora vem junto. Pede que ela saia. Que volte para casa. Que somente retorne com seus pais. E atravessando o pátio, agora ouve claramente o deboche de todos.
Jacilene tem 14 anos.
Em casa a mãe chora. Grita. Estapeia. Rasga suas roupas. Entra o pai, com a farda de cobrador de ônibus. Tira o cinto. Espanca. Expulsa de casa. Ela sai chorando pela rua. Em uma esquina, Fenque está com os amigos. Ela chega e pede ajuda. Ele a trata mal. Ri de sua cara. Os amigos também. Ela cobra. Ele dá um tapa. Sai fora.
Jacilene vai andando, pela noite, na cidade, até o porto. Pede esmola. Consegue o dinheiro da passagem. Está no barco. Belém ao fundo. Desembarca e vai à pé até a casa de uma tia, que vivia no centro, com um namorado, e era sua madrinha, embora estivesse brigada com a mãe, por suas posições. Jacilene espera a manhã chegar para subir. Conta seu drama. A tia precisa perguntar ao namorado, dono do apartamento. Tudo bem, pode ficar, depois a gente conversa. A tia vai trabalhar. Jacilene vai dormir. O namorado fica por ali, assistindo tv. De tarde, Jacilene toma banho. Penteia-se em frente ao espelho. O namorado da tia entra. É a conta que precisa pagar para morar ali. Não pode denunciar nada. Fazem sexo. A tia chega no início da noite. Nada é dito.
Agora, Jacilene passa os dias zanzando no centro, com medo de voltar para o apartamento e enfrentar o namorado da tia. Encontra uma putinha, Dionete, próximo a uma farmácia popular. Conversam. Se identificam. Brincam. Acham graça. Passa um cliente. Ela vai. Jacilene fica interessada. Está feliz. Arranjou uma amiga. No dia seguinte vai ao quarto da amiga, em uma pensão. Juntas, fazem confissões. Jacilene experimenta roupas. No outro dia, aparece um pivete, namorado da amiga de Jacilene. Conversam. Quer fumar? Ele presenteia a namorada com um cordão. Sentam em um bar. Outro dia, estão no quarto da amiga. Quer fumar um crack? Fazem sexo a três. Chega tarde. Leva bronca. Outro dia, estão juntas. Chega o cafetão. Expulsa o pivete a pontapés. Dá safanões na amiga. Olha com interesse para Jacilene. Ela volta para casa. Considera. Outro dia, com a amiga. Chega o cafetão. Vamos ali numa casa? Que casa? De quem? Um amigo. Vão. Ela entra e é agarrada. Grita, mas ninguém vai ouvir. O cafetão e a amiga pegam um dinheiro e se mandam. Entra em um quarto onde há mais quatro. Dois dias. No terceiro, tomam leite. Sentem sono. Mas cambaleiam em direção a uma Kombi de vidros peliculados. Circulam. Param. Jacilene está tonta mas vê que estão próximos de um colégio. Empurram para dentro uma menina. Assustada. Tremendo. Não consegue gritar. Alguém abafa. Escuro.
Agora estão em uma casa, com quintal, fora da cidade. Jacilene sente o ar, o cheiro de mato. Um sítio? Uma tiazinha negra, alta, fica tomando conta, levando no banheiro e tal. Ela pede, com sotaque forte, para se comportarem, serem boas. Que foram escolhidas. Que são especiais. Que vão viajar para a Europa. Chega com umas roupas. Calcinhas, minissaias, corpetes, tops, tudo bem sexy. Vistam. Jacilene faz amizade com uma das meninas. Ela conta que foi sequestrada num show de pagode. Perdeu-se, por instantes, das amigas. Agora estão vestidas com as roupas sensuais. Uma a uma, desfilam na frente de alguns negros altos, fortes, que falam outra língua. Algumas são escolhidas. A amiga foi. Ela, não. Não há despedidas. Janalice fica. Ela vai trabalhar com a turma que ficou.
A Kombi entra em um motel. Vai para o lado reservado. Uma piscina. Homens aguardam e saúdam a chegada. Alguns estão nus. Elas saem. Algumas gostam e já vão sorrindo. Uma churrascada. Dentro da casa. O cara é gordo, feio, bêbado. O cara estica umas carreiras de cocaína. Ensina como faz. Janalice já está muito dopada. Começa a vomitar. A fazer espuma. O homem a toma e faz sexo mesmo que ela nem reaja. Ele se aborrece. Dá um potente murro na cabeça. Ela se acaba pelo chão. Ele vai embora procurar outra. Ela acorda, junta roupas. Sai andando, meio dopada, atordoada. Não sabe como, acaba na rua. Vai andando sem rumo. Não dão por sua falta.
Agora ela faz confusão em uma esquina. O policial a repreende. Ela enfrenta o policial. Está muito diferente agora. Para pior. O policial a leva para a cadeia. Não há cela para menores. Muito menos para mulheres. Ela continua respondendo torto. É colocada na cela com 20 homens e ali fica, sendo usada por eles. Um deles tem pena. Você não quer sair daqui? Não quer viver? Não. Eu já morri.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Fogoió


FOGOIÓ
Não foi barulho que acordou Fogoió, mas o silêncio. De domingo, cedo. E não era domingo. Atabalhoado, passou da hora. Os carrinhos ainda lá, guardados. Cadê todo mundo? Não tem domingo nem feriado pra empurrar o material dos camelôs pro comércio. Nem Baldo, nem Chulé. Cadê os caras? Saiu do depósito. A luz do sol deu-lhe na vista. Porra essa pasta do Pingola tá foda! Revirou o bolso e não encontrou nenhum. Vai pirangar um pão na Tivoli, se o portuga não estiver. Silêncio. Cadê os carros? Cadê a gente? Maria na esquina do Teatro Cuíra? Nada. Nem o Pamica tomando conta dos carros, podia adiantar uma ponta. Cadê todo mundo? O joelho doendo. Deus fez um arremedo de perna esquerda nele. Coxo. A vida inteira engolindo gozação, apelido. Vai lá na Banca do Alvino, quem sabe? Deserta. A Praça da República. As revistas e jornais ao vento. Tudo de véspera. Manchete: Amanhã será o fim do mundo? Babaquice. Vai nos Esportes. Papão começa a montar time para a Série B em 2013. Tá com largura! Cadê a galera? Pega um cigarro. Depois explico. Bate um vento forte. As árvores cantam e dançam. Os papéis. Caem mangas. Pega uma. Cheira. Hum. Come. Na Tivoli. Cadê o Rai? Ninguém. Nem portuga. Pula o balcão. Pega um pão cacete. Se esparrama em uma mesa. Toma um Baré. Vai no caixa. Bate. Soca. Não abre. Come outro cacete. Se farta. Bucho quebrado. Nunca se sabe. Vai até o Ver o Peso? Nem carro. Nem gente. Pelo meio da rua. Anda, não. Coxeia. Experimenta um grito. Leãããooooo!!! Ecoa. Leãããoooo!!! Vai. Ouve barulho. Alguém. Frio na barriga. Porra, é a Pantera, que também puxa da perna. A Pantera, se arrastando. E aí? Ela estende bilhetes do Carimbó da Sorte. Vai correr amanhã. Prêmio especial pro fim do mundo. Que merda é essa de fim de mundo. Vai querer? Porra nenhuma. Lá tenho dinheiro pra Carimbó da Sorte. Cadê todo mundo? Que todo mundo? Cadê o Imperador? Quem? Teu macho, porra. Macho um caralho. Sei lá. Sumiu. Sumiu todo mundo. Só nós dois. Fogoió olhou para Pantera. Cabelo cortado rente. Duas muxibas. Puxando da perna. Gambitos. A xoxota usada. Espalhada. Olhou pra si mesmo. Adão e Eva? Isso é que é o fim do mundo!


Publicado na Revista Cult/dezembro/2012

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Mulher pra mim é igual picanha

São Paulo quente é algo difícil de suportar. Todo o concreto, asfalto e ferro da cidade grita calor e passamos mal. Mesmo assim, à noite, a avenida Paulista está lotada como um Círio, como uma pracinha de Salinas, em julho. Há decoração, seja da Prefeitura, seja da iniciativa privada. Polícia atenta, ausência completa de camelôs, pedintes, somente as pessoas caminhando, com a família. Subo ao meu apartamento no hotel e o cartão havia desmagnetizado. Desço. Antes do térreo (aqui chamado "lounge"), entram três mulheres nervosas, muito nervosas. O que aconteceu? Um assassinato. Um homem acaba de matar outro a facadas! O elevador desce. Elas estão assustadas. Pergunto se não vão descer. Não! Queremos é subir! Eu desço. Uma desgraça. Nelson, encarregado da manutenção, me conta: aqui, passamos mais tempo juntos do que com nossas famílias. Ficava aquela coisa de um chamar de corintiano perdedor pra um e o outro de porco palmeirense rebaixado, essas coisas. De repente, o ajudante de cozinha puxa a faca e mata o chef. Eu, que nada sabia, fui entrando na cozinha e vejo o homem caído, em uma poça de sangue. No térreo, todos nervosos. Em instantes, carros de polícia, sirenes e até equipes de tv. Que pena, uma desgraça próxima ao Natal.
Circulo por livrarias, todas lotadas, repletas de livros e gente. Penso na minha terra e fico triste. Descubro meu Selva Concreta nas estantes. Encontro com Cacá Carvalho para botar o papo em dia. Elias Andreatto passa para duas palavras antes de subir ao Teatro Cultura com seu "Andante". Cacá atarefado com sua Casa Laboratório, viaja no dia seguinte para Sorocaba onde faz seu novo espetáculo sobre Pirandello. Agora chove em SP. Graças a Deus. Andamos pela Paulista, papeando. Foi quando lembrei do motorista do taxi. Passamos por um outdoor da revista Glamour com bela modelo na capa. Comentei que a vira na véspera, na Livraria da Vila, em evento de lançamento da edição do mês. Que ficara impressionado com sua magreza. Com seus braços, extremamente finos. Ele me diz "isso é coisa de veado que não gosta de mulher e bota essas magrelas pra desfilar. Doutor, pra mim, mulher boa tem que ser igual a picanha. Precisa ter aquela gordurinha...

domingo, 9 de dezembro de 2012

Ah, sim

O vôo foi bom e tranquilo. No taxi o motorista parece não entender o endereço, tão fácil. É que estou há pouco tempo, avisa. Bom, talvez tenhamos um probleminha na Lagoa. O pessoal está indo contemplar a árvore de natal. Está quente. Abafado. Nublado. Fora isso e o inevitável cheiro que vem do mangue que fica na Favela da Maré, o Rio está lindo. Não, até que não houve problema na Lagoa. Quanto dinheiro, em percentual, você fica, desta corrida. Uns 40%. Bom, custou quase cem reais. Quantas corridas por dia? Umas cinco, seis. A Cooperativa ajuda na gasolina? Não, mas não gasta tanto assim. Tem que pagar taxa, dividir as despesas com boxes e tal. Eu tiro uns 12 mil por mês, mas tem cara aí que roda mais e faz até 18 mil ao mês. Bom, né? É. Estou há pouco tempo. Vamos ver. A vantagem é que o carro é meu. Muita vantagem. Mas eu pensei que o pessoal fosse mais unido. Sabia que o negócio de taxi especial, aqui no Rio, é dos portugueses? Não. Pois é, começou com eles. Você é português? Não, mas meu pai era. Ele mexia com material de construção. Uma vez fomos todos a Portugal. Estranhei meu pai todo bem vestido, nós também. Mamãe disse que não era para dizer nada. O pai queria voltar a Portugal nos trinques. Já trabalhei em São Paulo e mesmo aqui, em escritório de engenharia. Ouvi falar que estão pensando em unir todas as cooperativas de taxi. Acho errado. Nunca vi fusão ser boa para trabalhador. Mesmo entre bancos, empresas de engenharia, é sempre pior. Agora vai unir o pessoal que tem tabela com a turma do relógio? Estamos chegando. Na esquina do hotel, centro de Ipanema, um boteco desses arrumadinhos, está cheio de gente feliz, à vontade, bermudão, short, curtindo a vida. Penso muitas vezes que os cariocas são sempre figurantes de um lugar para férias. Basta olhar para eles e começar a relaxar. Ah, sim, pergunto se o motorista é engenheiro. Não, sou arquiteto. Ah, sim.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

A noite mais feliz da vida de Jason Bonham

Eu havia assistido em canal fechado Shine a Light, o filme sobre os Rolling Stones, feito por Martin Scorcese. Ainda sob o impacto de Jagger e Richards, encontrei um amigo, que me perguntou sobre Celebration Day, o filme de David Carruthers sobre o concerto do Led Zeppelin na O2 Arena em 2007. Não, respondi. Tenho receio de assistir ao retorno de algumas bandas. Medo de perder o encanto. Encontrar senhores de cabeça branca, barrigudos, tentando cantar seus hits. Isso já me aconteceu com o Yes, mesmo que seu instrumental seja insuperável. Não, ele me disse. Tu precisas assistir. Sabe essa stamina, que notaste nos Stones? Está lá, no show. Tudo bem. Antes, entrevistas na Uncut, creio, de Robert Plant, à época, avisando que viria ao Brasil, o que fez e com Jimmy Page na Rolling Stone. Curiosamente, Led Zeppelin, apesar de todo o amor que tenho por seu som, nunca foi minha banda preferida. Talvez em estivesse muito apegado ao rock progressivo, sei lá. Mas conheço tudo. Minha amiga Silvana era apaixonada. Hoje, morando em Londres, está sempre encontrando com Page, a quem chama de amigo. 
O show começa e percebo Plant protegendo os agudos. Aquecendo a voz. Talvez seja esse o grande medo. Ele tem roído a corda a respeito da volta da banda. Tem outros planos. Carreira solo. Nessas outras atividades, trabalha outro registro vocal. No Zepp, o tom é sempre no alto máximo, rock and roll, onde ele antes arrebentava, chicoteava os companheiros. E agora? Plant também disse em entrevista que muitas vezes ficava assistindo a performance dos companheiros, todos músicos e ele, ali, o diferente, contando apenas com a voz. Agora, tanto tempo depois, Jones, Page e Bonham estão com seus instrumentos, modernos, maravilhosos e tudo o que ele tem é a voz, com quase 70 anos, creio. Uau. Até eu teria medo. Somente os tortuosos caminhos da comunicação entre eles pode explicar porque um show gravado em 2007 seja lançado somente agora, 2012. Quem sabe os outros aguardaram sempre por um ok, vamos voltar com o grupo.
As músicas seguem. Black Dog ainda não está no ponto quanto à voz de Plant. Em Nobody's Fault But Mine, melhora. Ele olha para Jason e ri. I did it. Os outros também sorriem, percebendo. Ele começa a soltar. Leio nas entrevistas que o elemento catalisador foi Jason Bonham. Seu pai, John, era  grande âncora. Sua morte fez desabar o que já ia adiante com sacrifício. Não eram mais jovens. Milionários, bebados, drogados, com egos gigantes. Acontece sempre. São humanos. Jason tem um conhecimento enciclopédico da banda, relembrando, ensinando passagens. Chega ao ponto de, antes de determinada música, lembra-los que o pai, certa vez, fizera desta ou daquela maneira e o que preferiam. Jason está sempre sorrindo, feliz, tocando uma bateria cheia como era a do pai. E todos sorriem, cumprimentam sua performance. Aos poucos, a troca de sorrisos, afetos e abraços se estende. Ao final de Stairway to Heaven, Plant grita We did it! Sua voz a essa altura está lá, no alto. E encerram com Kashmir, maravilhosa. A platéia pede bis. Retornam e fazem Whole lotta love. Saem. A platéia grita. Voltam e encerram com Rock and Roll.
Jason Bonham disse que esperou a vida inteira por essa noite. Que nos ensaios todos perceberam que a química funcionava. A fagulha estava la. Stamina. Quando encerrou, ele correu para o camarim e despencou em lágrimas. Chorou por si, pelo pai, pela mulher, filhos, por todos. E disse que esta foi a noite mais bonita de sua vida. Imaginem o prazer que teve. Quanto ao Celebration Day, ainda estou inebriado. É fato que em Blu Ray, é como assistir de camarote o show. Mas imagino o que deveria ser estar no meio da multidão, sentindo a energia, todos juntos. Deve ter sido ótimo.