terça-feira, 22 de outubro de 2019

A VOLTA À FLORESTA

Acabo de assistir no Jornal Liberal da tv local, que o Pará é o estado com maior número de acidentes de trânsito no Brasil. Não surpreende. Quem dirige nas ruas da cidade é um sobrevivente. Além do acúmulo de veículos em ruas péssimas em seu piso, além do número excessivo de ônibus nas mesmas rotas, algo que ninguém consegue mudar em todas as administrações até agora, motocicletas, bicicletas, carros de mão e pedestres. Uma mistura letal. Ninguém quer obedecer a nenhuma lei que o impeça de se apressar. Ônibus verdadeiros cacarecos param no meio das ruas, trancam o trânsito ou, quando há espaço, arrancam em grande velocidade. Carros particulares ou de empresas praticam toda sorte de delitos, desde a parada em fila dupla ou tripla em qualquer horário, em qualquer rua, principalmente no horário da entrada ou saída de alunos em colégios. Motoristas de todas as faixas sócio econômicas. Motociclistas sem capacete, descalços, ou apenas de chinelos, ziguezagueiam entre os carros, querendo levar vantagem. Nada como em SP onde utilizam o corredor de carros entre as faixas. No interior isso é muitíssimo pior pois a moto parece ser a volta do cavalo dos filmes de bang bang, onde o cowboy anda por onde quiser, sem qualquer proteção, agredindo a todos, certamente sem carteira de habilitação. Na cidade, o sucesso de apps como iFood e outras, fez o número de motoqueiros ensandecidos aumentar, apressados para entregar os produtos, retornar à sede e pegar outros. Aí entram os bicicletistas. Normalmente, utilizam a contramão de nossas principais avenidas. Trafegam aproveitando o que consideram o melhor caminho. Como se estivessem de volta à floresta, sem nenhuma civilização ou ordem. Todos querem apenas se dar bem. E quando também estão entregues ao delivery, tudo piora muito. Acrescentemos carrinhos de mão com frutas, entulhos, lanches, todos também na contramão, tranquilos mas aborrecendo-se à qualquer reclamação de motoristas incomodados. Há mais? Pedestres que por conta da falta de segurança, ou por sensação de volta à floresta, caminham pelas ruas, em qualquer direção. Dirigir hoje em Belém, no Pará, é completo caos. Não há, ao que parece, Engenharia de Tráfego. Ninguém tenta nada. Ninguém faz nada. Fica tudo entregue ao foda-se. E ainda há o BRT, essa praga infinda a estressar paraenses que viajam nos péssimos ônibus. Nada fazemos. Não é conosco. Alguém que faça alguma coisa. Quem sabe vou dar apoio. Os paraenses são moles. São fracos. Há longos anos aguentamos os desmandos de imbecis que absurdamente são votados e ganham eleições de lavada. Temos o que merecemos, essa é que é a verdade. 

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

FODA-SE 1

Os tempos em que vivemos. Não publicarei mais, às sextas feiras, minha crônica “Cesta” em O Diário do Pará. Atendi a um convite do amigo Gerson Nogueira, então editor do jornal em outubro de 2014. De lá para cá, foi um exercício criativo e gostoso. Creio que nunca faltei. Cheguei a pensar em selecionar algumas para publicar em livro. Seria o “Crônicas da Cidade Morena 4”. Seria? Sei lá. Quem sabe? Meus poucos cabelos são brancos e lá se vão 40, quase 50 anos como jornalista em diversas funções. Muitas peças de teatro. Livros que, com sorte, tiveram reconhecimento nacional e melhor ainda, traduzidos e lançados na Inglaterra e na França, nesta última com algum destaque. Nada disso parece fazer qualquer diferença, merece propiciar alguma reverência a alguém que decidiu cortar um parágrafo inteiro de uma crônica, onde narrava minha passagem por Parauapebas, participando de uma Feira do Livro, promovida pela Secult, desbravando esse gigantesco Pará em uma cidade de poucos paraenses e um sentimento quase nada de pertencimento a uma cultura, uma terra, região. O trecho cortado referia-se ao sentimento de orgulho, até empáfia que talvez tivéssemos, se das riquezas gigantescas que são levadas diariamente daqui, nos coubesse, Pará, a digna remuneração. Somos o Estado potencialmente mais rico do Brasil e economicamente um dos mais pobres. Contratos espúrios, determinados a partir de Brasília, certamente com a pressão de grandes interesses e penso, a falta de uma justa e firme posição paraense, resultaram no que somos. Um almoxarifado. Leio jornais do Rio e SP, onde vários deitam saberes sobre uma terra onde nunca estiveram. O governador Helder Barbalho foi bem explícito ao falar nisso em boa entrevista na Globonews. Pois é, cortaram, certamente temendo de alguma maneira ferir os interesses do jornal diante do patrocinador que nem precisa ser mencionado. Mas era uma crônica, assinada, ou seja, com autor definido, sem expressar se for o caso, a opinião do jornal. Cortaram. Não me ligaram, sequer argumentando tipo “e aí, que tal mexer aqui e ali, troque isso por aquilo”. Nada. Soube do corte ao ler a matéria. Um desrespeito. Um foda-se a quem escreve desde 2014, sem falta. Foda-se, não escreva mais. Pensam se entraram em contato, ao menos dizendo, obrigado por sua participação, valeram todos esses anos e tal? Não. Foda-se. Sou um qualquer. Bem, sou um qualquer, como qualquer outro, mas todos merecemos respeito. Isso não tive.

FODA-SE 2


Acabo de ler a biografia de Fernanda Montenegro, a grande diva das artes cênicas nacionais. Uma vida de sacrifícios e luta constante em favor da arte. Li também a revista 451 onde Fernanda está na capa em bela foto, como se fosse uma bruxa, tendo aos pés livros para serem queimados. Uma provocação à bizarrice que enfrentamos na área cultural brasileira. Fernanda nos livros, nas revistas, no Bial, foco de um Globo Repórter. Fernanda no Teatro Municipal, aclamada, festejada, adorada, gloriosa, rádio, teatro, televisão, cinema. Foi insultada por um cretino, logo colocado em seu lugar. E penso em Claudio Barradas, que tal como Fernanda, está completando 90 anos de idade e imensos serviços às Artes Cênicas do Pará. Fez rádioteatro, Tv Marajoara, ocupou todos os palcos da cidade, dirigiu peças durante uma vida no Sesi, atuou nos primeiros filmes produzidos no Pará. Aos 62 anos, tornou-se padre, obedecendo uma vocação iniciada na juventude e deixada de lado, exatamente, pelo Teatro. Há dez anos, tive a honra de dirigi-lo em dois espetáculos que protagonizou ao lado de Zê Charone, no Teatro Cuíra, “Abraço” e “Sem Dizer Adeus”. Agora, às vésperas de completar 90 anos, Marcos Valério, seu colega na Tv Nazaré, perguntou o que desejava como presente, ao que respondeu: quero voltar aos palcos com “Abraço”. Outra honra. Nós o cercamos de carinho e admiração, embora ele não seja muito chegado a rapapés. Queríamos leva-lo a um grande teatro, para celebrar, tipo Teatro da Paz ou Teatro do Sesi. Os primeiros movimentos não tiveram eco. Ensaiamos e estreamos na Casa Cuíra, na Cidade Velha, para 40 pessoas por sessão. Uma maravilha para quem quer “ver a mágica” tão próxima. Mas Cláudio merece multidões, honras, glórias, palmas, por uma vida doada à Cultura, um talento a serviço do bem comum. A Tv Nazaré deu apoio. Mauro Bonna nos entrevistou em seu “Argumento”. A Rádio Cultura me entrevistou. Ele estava no “Sem Censura”, mas houve um pico de energia e o programa não foi ao ar. Pensam que remarcaram a entrevista? Pensam que propuseram um programa especial, entrevista, documentário? Não. Afinal, quem é Cláudio Barradas? A moça do jornal estava nervosa, ao telefone, querendo uma entrevista. Ele estava no carro, vindo de Icoaraci, onde habita um quartinho no Tabor. Ela queria algo rápido. Tinha uma pauta para dar conta. Sequer “deu um Google” para saber quem é Cláudio Barradas. Sim, houve matérias nos jornais, mas era preciso muito mais. As outras emissoras de televisão não compareceram. Quem é esse tal de Cláudio Barradas? As pessoas de hoje acham que o mundo começou no dia em que nasceram, ou quando fizeram 18 anos. Sua leitura diária, se é que há, limita-se aos highlights. Rasos como uma poça d’água. Foda-se Cláudio Barradas. Ele é um qualquer que me mandaram fazer entrevista por telefone. No mais é copiar o release e pronto. E as autoridades no âmbito municipal ou estadual? Foda-se Cláudio Barradas. Já não tem o Teatro da Ufpa com o nome dele? Basta. E vamos ouvir sertanojos e funcks. E não vamos ler porque é chato. E não vamos ao teatro porque dá sono, a não ser que seja o Erin Johnson e a Viviane Araújo, puta mulher, cara!

Dá vontade daquele desabafo da Fernanda Young, mas penso que é preciso contar até cem, mil, 1 milhão e perceber que nosso trabalho cultural é para atingir exatamente esses incultos, para tentar mudar o mundo para melhor. Quanto mais me fechas os olhos, mais eu vejo. Onde estão as Secretarias de Cultura, do município e do Estado que não o chamam, tratam com o devido respeito e reverência, abraçando essa marca que aparentemente somente ele quer festejar? Vereadores, deputados, que vivem a espalhar comendas e medalhas, a apresentar emendas escrúxulas, quer dizer que para vocês, foda-se Cláudio Barradas, também? Será que ele é invisível, como todos nós da Cultura, que acabamos de passar por uma escuridão de mais de vinte anos, por conta de um infame?

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

A MELHOR BANDA DO MUNDO

Eu sei que soa pretensioso. Antes do show, ao lado de jovens, percebi olhares pacientes, com o tiozinho empolgado. Algumas horas depois, eles é que pareciam espantados. E eram poucos.
Eu fazia 15 anos e decidia com meu irmão, o que ele poderia comprar para mim como presente. Foi “In the court of Crimson King”, com sua capa gritante até hoje. Um momento de transição. Brian Jones dos Rolling Stones havia morrido. Tchau Beatles. Garotada frequentando conservatórios. A abertura grita com uma guitarra distorcida, iniciando o que seria um heavy rock, antes do heavy rock como estilo. Greg Lake, que em seguida iria para o Emerson, Lake & Palmer em perfeita forma. E lá no meio vem um free jazz de fazer vibrar Miles Davis. Não, o disco não foi para as paradas de sucesso, mas firmou um estilo que passou a ser conhecido como rock progressivo, apresentando a seguir bandas como Yes, Genesis e o próprio ELP, que chegaram a tocar em grandes arenas para 150 a 200 mil pessoas. O King Crimson seguiu sendo a banda preferida dos mais atentos. Já era a melhor banda do mundo, por tudo. E, na verdade, sempre dependeu de uma só pessoa, o guitarrista Robert Fripp, tímido, exigente, no palco limitando-se a tocar de maneira incrível, sem os meneios das grandes estrelas. Para o segundo disco, a maioria dos músicos foi mantida. Daí em diante, mudanças contínuas. Flertes com diversos estilos. Dificuldades em manter a idéia, por conta de pouca afluência de público. Os outros grupos eram mais populares. Dois grandes músicos chegaram bem próximo em participações: o baixista John Wetton, talvez o melhor cantor do KG e o baterista Bill Brufford, que tocou nos primórdios do Yes. Houve uma possibilidade de sucesso com Fripp, Wetton e Brufford fazendo um power trio em “Red”, lançado nos EUA. Não. A banda nos anos 90 tomou direções ainda mais difíceis, examinando riffs, percussão e compassos. Curiosamente, alguns fãs mais jovens, gostam mais dessa fase, mais recente. Tudo parecia caminhar para o encerramento da carreira, quando surgiu um site, um selo, vendendo gravações ao vivo e de repente, Fripp anunciou grande turnê mundial, com a adição de três bateristas, uma novidade. Mel Collins, saxofonista dos primeiros trabalhos foi chamado. Tony Levin, grande baixista, atualmente o âncora também está lá. Daí então, vários discos foram lançados registrando a formação em diversos formatos. Cinquenta anos depois, chegaram ao Brasil. Ao primeiro show, em São Paulo, estive presente. Não podia perder nem me sujeitar ao público bobo do Rock in Rio, onde tocou dois dias depois.

Um mar de cabeças brancas. Todos sentados. No intervalo, banheiros lotados. Tiozinhos precisam urinar. Eles surgem super britânicos, alguns com paletó e gravata. Fripp deixa-se ficar sentado, na ponta do palco, meio encoberto. Os três bateristas dão um show que levanta a plateia. Daí em diante vão mostrando seus hits. Há momentos em que todos cantam, levantam, choram. A música é riquíssima. Os músicos, magníficos. Todos solam e tiram dos instrumentos, o máximo possível, e no entanto, o som é coeso, harmonicamente encaixado. Tony Levin domina seu baixo axe. Mel enlouquece com seus sopros. Um dos bateristas assume o mellotron. Fripp concentrado, perfeito, nas mais intrincadas notas. Casais bem caretinhas, velhinhos, balançam a cabeça como metaleiros. Outros correm até diante do palco, fazem reverência e voltam correndo. “Making easy Money”, gritamos! O vocalista, bom guitarrista, sorri espantado. Do outro lado do mundo que conhecem, encontram esses possíveis aborígenes cantando juntos hits de uma banda quase desconhecida da grande mídia. Ao final, aquela que iniciou tudo, “21st Century Schizoid Man”, cantada a plenos pulmões. Em muitos trechos, todos choramos emocionados. Passam cinquenta anos de nossas vidas em que essas músicas foram tão importantes. Puxamos ar, tentamos cantar o refrão, mas as lágrimas não deixam. Deixa pra lá. Estava liberado chorar. Ao final, após o bis, a plateia recusava-se a sair. Eles não voltaram. Vou ao banheiro. Entra alguém comentando que agora vem aí o Van der Graaf Generator. Conhece? Pois ali, todos conheciam e começam a comentar a possibilidade. Por uma noite, voltamos a ter 15 anos de idade, ouvindo a melhor banda do mundo, tocando seu repertório que guardamos em nossos corações, como tesouros preciosos, essas jóias que nem todos percebem o brilho. E damos graças a Deus por isso.

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

UM PAÍS QUE SE CHAMA PARÁ

Eu nunca tinha estado em Parauapebas. Em Carajás, sim, com uma peça de teatro, mas trata-se de uma cidade cercada. Semana passada, a convite da Secretaria de Estado de Cultura, que lá promoveu uma Feira Literária, iniciando um projeto que pretende alcançar todo o Estado, fui falar sobre minha carreira e meus livros. Fui de jato, com escala em Marabá. Pela janela, nota-se logo a mudança na paisagem, agora com muitos morros, serras. Começo a perceber a imensidão deste Pará, com o tamanho de um país. Conversei com muitas pessoas. Há naturais queixas contra o prefeito, como sempre acontece, mas nas áreas principais da cidade, tudo bem limpinho, apesar do sol inclemente, a queimar a grama dos canteiros. Raro encontrar um paraense. São quase todos piauienses, maranhenses, goianos e daí em diante. Grandes fazendas, grandes conflitos, grandes riquezas e muita pobreza. Há uma farmácia em cada esquina, como aqui. Lojas Americanas. Cada uma das pessoas conta sua história de vida, de como trocou de profissão e foi parar lá para ganhar dinheiro. O motorista é formado em Nutricionismo. Ou estudantes da Universidade lá com um campus. O trânsito é intenso e vez por outra flagro um Porsche Cayenne, desfilando pelas ruas. Fiquei hospedado em um hotel mais afastado, simplesmente porque todos os hotéis estão sempre lotados. Quase sempre com três andares, tudo limpo, simples, mas sem grande conforto. As pessoas não estão lá por turismo, a passeio. Vão trabalhar. À noite, no estacionamento, havia 32 carros estacionados. Acordam cedo e vão resolver seus assuntos. Penso que nenhum deles se considera paraense. Apenas parauapebenses. Por todos os motivos, o Pará, Estado, com sua cultura, seus costumes, seu sotaque, não chega, o que é um desperdício brutal. Vou a um restaurante, almoçar e jantar. À noite, ninguém sai para jantar fora, encontrar amigos e conversar. Comem rápido, churrasco, comida forte, para dormir e no dia seguinte, trabalhar. Entram três funcionários da Vale. Imagino que nós, paraenses, devíamos ser muito metidos a bestas, orgulhosos, pretenciosos, ricos, principalmente, se os contratos que até hoje vicejam, pagassem o que deviam pela retirada de todos os nossos minérios, deixando um buraco no lugar. Produzimos energia para todo o país e pagamos as taxas mais altas. Nossas fazendas têm o maior número de bois. Nossa produção de cacau, tudo enfim. Nossa floresta com sua brutal riqueza. Mas não somos. A Feira está lotada. Há interesse, mas não há uma livraria na cidade. Os autores locais formam Academias de Letras. Recomendo que ao invés de se fecharem, abram as portas e promovam encontros, onde possam mostrar suas obras. Após a palestra, dou entrevista para três emissoras de televisão. Há algum jornal? É uma cidade que cresce a cada segundo, pujante, mesmo. Deve ter uma das maiores arrecadações de impostos do Brasil. E só a Cultura pode unir todo esse imenso espaço. A Secult inicia seu trabalho. Os planos são bons. O Pará não é somente Belém, que agora, parece tão distante. Ninguém fala da capital por lá. Depois da escuridão que passamos na Cultura, por mais de vinte e tantos anos, é um trabalho hercúleo. Agradeço ao convite. No tempo da escuridão, nunca me chamaram. Atrapalharam mas não parei de produzir. Há muito a ser feito. Contem comigo.

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

BOB

Quando era bem criança, havia em casa um boneco chamado Bob. Ao que parece, minha avó tinha trazido da América, de presente, para o mais velho. Agora ele ficava meio esquecido, sobre um guarda-roupa, de onde me encarava. De pano. Não tinha pescoço. As feições eram desenhadas com tiras de pano. Não sei se aprovava os acontecimentos. Estava sempre ali, impassível, sério, observador. Mais tarde, tive miniaturas de cowboys e soldados Balila. Me ajudaram a exercitar a imaginação. Nem por isso fiquei agressivo. Bom, aos sábados, de pé, nas cadeiras de pau do Paramazon, despejava toda minha munição em espoleta, acompanhando as vitórias de Bill Eliott. Minha amiga, criança, andava adoentada, fraquinha e foi levada a uma senhora rezadeira. Após as cerimônias de costume, passou a ter uma boneca, sob sua rede, ou cama, por um ano, talvez, tempo suficiente em que se recuperou. A boneca sumiu. Parece ter sido parte das instruções recebidas. Outra amiga me procurou e disse que tinha uma história para contar. Criança, tão pobre que a família era de carapirás. Ganhava a cada ano uma boneca de presente. Curiosamente era o mesmo modelo, sendo que se caracterizava por ter um buraco na cabeça. Imagino que fosse onde estava um artefato de borracha que colocado ali, permitia que, amassando o corpo da boneca, emitisse um som. Apenas imagino. Todo ano minha amiga recebia a boneca do furo na cabeça. Ela detestava a boneca. Sei lá, talvez o buraco, talvez a pobreza extrema que nos impede de ter sentimentos felizes. Minha amiga contou que além de detestar, riscava a boneca o mais que podia. Imaginei que anos depois, adulta, atende à porta da casa uma mulher misteriosa, com o rosto riscado, como que arranhado, quem sabe, por unhas. Pediu um copo de água e ficou ali, fitando-a, terminando por separar os longos cabelos e mostrar um buraco. Diante da estupefação silenciosa, lenta e estudadamente disse que a protegia desde criança. Que sofria com os maus tratos que recebia mas mesmo assim não desviou de sua missão, simplesmente por amor. Outra amiga. Parece que tenho muitas, não é? Família pobre. Não havia presentes no natal. Ao lado da casa em que moravam, havia uma enorme, que servia de depósito para uma grande loja. Um dia a casa foi vendida e lá chegaram operários para fazer uma grande reforma, a principal delas, trocar o belo assoalho de tabuas corridas, bem deteriorado, por lajotas. Minha amiga e seus irmãos correram, curiosos. Acompanharam a retirada das tábuas, aos poucos descobrindo que, tendo em vista falhas no assoalho, encontravam brinquedos à farta, certamente fazendo parte do estoque antigo da loja, agora ali, à sua disposição. Havia mini cozinhas, bolas e bonecos Cláudio, um que tinha nos olhos uma espécie de adesivo, coincidentemente objeto de consumo de minha amiga. Como era a de menor tamanho, bem franzina, esgueirava-se por baixo das tábuas, sendo, após dar sinal, puxada pelas pernas pelos sôfregos irmãos, a cada vez voltando com um brinquedo novo, para gozo geral. E claro, um Claudio, embora com um dos olhos desgastado, digamos, caolho. Pois foi esse Cláudio que a acompanhou por toda a vida, como se Noel houvesse lembrado daquelas crianças e providenciado presentes de vários natais, de uma vez. São os bonecos da nossa vida. Seriam nossos guardiões? Nossos protetores, mesmo passando por momentos bem difíceis em nossas pequenas mãos? Anjos? Quem sabe?

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

O BRASIL NÃO CONHECE A AMAZÔNIA

Há muito tempo, quando trabalhava em rádio e estava no Rio de Janeiro, conversando com dirigentes de gravadoras de discos, me irritava quando perguntavam se eu era da Amazônia ou estava na Amazônia. Achavam, certamente que eu deveria ter traços indígenas mais fortes e talvez alguma ignorância do “mundo dos brancos”. Quando pela primeira vez, na França, Saint Malo, diante de grande plateia, juntamente com dois outros grandes escritores brasileiros, precisando falar de minha obra, compreendi o quanto estava distante e o quanto havia de desconhecimento sobre minha terra. Os dois escritores, um falou sobre sua obra em São Paulo e o outro, situando seu romance no Rio de Janeiro. Eu pensava no que dizer. Afinal, talvez esperassem as praias, samba, mulatas, carnaval, Salvador, Copacabana, sei lá. Eu senti o que é ser um amazônida, como um General Custer, cercado pelos sioux. Comecei dizendo que ao contrário de meus colegas, que eram de um Brasil mais fácil de reconhecer, eu vinha de outro mundo, e ainda assim, tão Brasil quanto eles. Venho da maior floresta tropical do mundo. Venho de uma selva de concreto plantada pelo homem no meio da floresta. Da janela da minha casa vejo o outro lado do rio e aquele verde imenso. Falo da perplexidade do homem que sai de seu casebre, à beira do rio, atravessa e desembarca em uma floresta de concreto, com máquinas por todos os lados. Talvez seja difícil de acreditar, mas temos os mesmos confortos que vocês têm aqui. Assisto a todos os campeonatos de futebol na Europa. A internet, os telejornais, sabemos de tudo ao mesmo tempo, sem atraso. Mas somos insulares. Para visitar nosso vizinho mais próximo, Maranhão, Amazonas, Tocantins, é preciso pegar um Boeing. Para visitar nossas maiores cidades, ou pegamos um Boeing ou vamos pela estrada, oito horas, ou no barco, dois dias. Nos maiores centros, muitos acham que o Pará fica no nordeste. Que a capital é Fortaleza. Para eles, Amazônia é aquilo verde no mapa, que a moça do tempo diz que joga água neles. Ou técnicos inventam hidrelétricas gigantescas, pouco se importando com os fatores sociais que geram. Alguns fazem fortunas. A maioria esmola. O Pará é o Estado potencialmente mais rico do Brasil e economicamente um dos mais pobres. Fornecemos imensas riquezas e por contratos espúrios, ficamos com um quase nada. Há muita cobiça, violência, roubo valendo-se de um espaço tão grande que ninguém consegue fiscalizar. Dois, três helicópteros para aquilo tudo? E a madeira apreendida, serve para quê? E como somos insulares, precisamos criar tudo. Nossos artistas em todas as áreas são geniais. Passamos mais de vinte anos onde apenas alguns conseguiram vencer a bolha. Foi somente ao ganhar um prêmio na França que jornais do Rio e SP se interessaram em avaliar meu trabalho. Acontece com todos os outros. Agora, essa questão das queimadas, tão antiga, mas que voltou ao noticiário por conta de ações do presidente que irritaram alguns. Sting, o músico, fez vários shows cuja renda era para uma ong de apoio à Amazônia. Nunca vimos esse dinheiro. Noruega, Alemanha, dando dinheiro para estudos. Amazônia, celeiro do mundo. A Amazônia como uma coisa. Aquilo lá. Nunca sentiram nossa umidade. Nunca olharam para o céu e não o viram, coberto pelas copas das árvores. No Brasil de hoje, há muita coisa errada, certa e uma multidão de “inocentes” querendo se dar bem. Nào tenho preparo técnico para discutir, mas a verdade é que não sabem o que é Amazônia.

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

AOS ATORES, SERES DE LUZ

Em verdade eu vos digo, não há melhor lugar no mundo do que nos bastidores de uma peça de teatro, após tocar a terceira campa e todos se darem as mãos para um “merda” coletivo. Lido desde muito com esses seres de luz. Minha mulher é atriz. Nesses minutos que antecedem o abrir das cortinas, há de tudo. Quem tenha vontade de fazer xixi, número dois. Os que oram de frente para a parede. Os que procuram buracos na cortina para olhar a plateia. Um olhar distante, que esconde uma mente frenética, última passada em flash de tudo o que fará em seguida. Batidas aceleradas no coração. Suor, um olhar no espelho para conferir o já conferido um milhão de vezes. E então eles vão fazer a mágica. Dos maiores teatros aos menores, como na Casa Cuíra, o teatro ao alcance do tato, como diz Wlad Lima. Dá-se a mágica. O público levado a acreditar que naquela pequena sala está um mundo a se mover e dizer. Cacá Carvalho, entre uma e outra sessão, relembrando o texto. Para decorar, ele escreve, incansavelmente. Outros usam pontos de referencia, até encaixar. Há uns dias atrás, escrevi sobre a observação como qualidade do escritor. Do ator também. Eles são esponjas. Observam o mundo, as sensações. Vão buscar emoções no seu mais profundo. Enquanto ensaiam, procuram, oferecem possibilidades, lidam com a dúvida. Há os que dizem o texto, mas no seu interior estão em outro lugar, vivendo outra experiência. O público não sabe. Vê o resultado. A partir do texto, vivemos um período de intensa convivência. Teatro é família. Sabemos mais uns dos outros do que nossos parentes. Todos opinam, ofertam, sugerem. Da iluminação ao cenário. O resultado é coletivo. Ah, os artistas como seres especiais. Eles fazem tudo isso porque desejam mudar o mundo para melhor. É claro que atores são de esquerda. São gauche. E não é para quebrar as regras, oferecer novas possibilidades, novas leituras? Eles empurram o mundo três degraus à frente. Depois o mundo volta dois. Mas avança um ao menos. A querida Mendara Mariani, segundos antes de abrir a cortina, me chama de lado e me sussurra pqp Edyr Augusto, porque tu me metes nessas merdas! Corre para a cena e dá mais um show. Como é que eles conseguem decorar tudo aquilo? Não sabem que tudo é marcado. Não há improviso. Parece que é, parece natural, mas é tudo bem estudado, pensado. Aquela atriz que fará o papel de uma nordestina e agora o marido precisa aguenta-la, dia após dia, com aquele sotaque, em casa, praticando. Às vezes temos um tema e desenvolvemos juntos. “Laquê” foi assim. Metade do elenco de mulheres profissionais, a outra de jovens atores. Contem as histórias. Em “Quando a sorte te solta um cisne na noite” houve um assassinato de um gay. No dia seguinte, estávamos ensaiando a cena. Atores podem parecer histriônicos em cena, e fora do palco, absolutamente tímidos. Têm a força de um tufão, crescem enormes diante dos nossos olhos. Lembro de Cleodon Gondim fazendo Malcher, em “Angelim”, sobre a Cabanagem. Com a espada em riste, eu, dos bastidores o via forte e ao mesmo tempo, uma folha ao vento. Claudio Barradas, 90 anos, ensaia feliz e comove em “Abraço”, que vem aí. Nesta semana, comemoramos o Dia Nacional do Ator de Teatro. Todo meu amor e homenagem a esses seres de luz. Essa luz, nunca ninguém irá apagar. Toda minha felicidade em conviver com eles. Meu orgulho em ter meus textos interpretados. Viva o Teatro!

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

3 DIAS DE AMOR, PAZ E MÚSICA, NUNCA MAIS

Neste agosto, completam 50 anos da realização do Festival de Woodstock, realizado em 1969, em um descampado da fazenda de Max Yasgur, em Bethel. Há pouco tempo havia acontecido o Festival de Monterrey, onde a juventude da época iniciou o que se chamou de “Flower Summer”. Os Estados Unidos estavam em guerra no Vietnã e havia passeatas e movimentos combatidos ferozmente pelas autoridades. Era a geração pós Segunda Guerra Mundial, que se levantava contra a caretice dos tempos. A idéia dos hippies era paz e amor. Havia comunidades onde tudo era de todos, inclusive sexo. Alguns estacionados, outros vivendo em kombis que circulavam pelo país. Michael Lang resolveu fazer o festival. Teve dificuldade em fechar contratos por conta da inexperiência. Havia ingressos sendo vendidos, mas de repente, como um tsunami, multidões jovens começaram a se dirigir até a tranquila cidade de Bethel, cujos moradores viviam da criação de animais e agricultura. O primeiro problema foi conter aqueles sem ingressos. As cercas foram ultrapassadas. Agora era gratuito. Aos poucos, juntaram-se 300 mil pessoas para assistir aos shows, em uma época em que as caixas de som não davam conta daquele espaço todo, muito menos o delay da música. As autoridades determinaram estado de sítio. As estradas ficaram imprestáveis. Até artistas não conseguiram chegar. Joni Mitchell voltou para casa e compôs “Woodstock”, um de seus maiores sucessos, sem ter estado lá. Outros tiveram de ir de helicóptero. Houve algumas overdoses, nascimentos, namoros rápidos e permanentes e um quase nada de violência. Veio a chuva e tudo virou lamaçal. Foram todos tomar banho nus, homens, mulheres e crianças. Havia quem desse aula de yoga, meditação transcendental e se apresentasse tocando suas músicas. Alguém não havia chegado. Jon Sebastian, que era do Lovin Spoonful estava lá e foi cantar. Dedicou aos nenéns e mães de Woodstock. Crosby, Stills, Nash & Young nunca haviam tocado ao vivo. Tremiam. Santana tinha um horário. Anteciparam em oito horas. Estavam relaxados, drogados. Foram ao palco e arrasaram. Grateful Dead tocou muito. The Who e “Tommy”. Janis. Michael Wadleigh decidiu filmar. Quando viu o tamanho da coisa, voltou a NY e catou todos os carretéis de filmes da cidade. Ganhou Oscar. Um gravador na beira do palco registrou o som. Incrível como até ficou bom. Hoje, 50 anos depois, tudo está restaurado e relançado. Jimi Hendrix fechou, com atraso, manhã cedo, o festival. Testou nova banda que não foi adiante. Tocou celebremente o hino americano na guitarra, com sons de bombas e aviões. O mundo nunca mais foi o mesmo. Para lançar o álbum triplo, as gravadoras que não a Atlantic, liberaram apenas canções menos famosas de seus artistas. Por causa delas, do filme, da trilha, muitos desses artistas estouraram mundialmente. Os Beatles tinham acabado. Os Stones estavam de férias. Agora imaginem um moleque magro, cabeçudo, orelhudo, curioso, 16 anos, assistindo sete vezes no Olímpia esse filme. Mudou minha vida. Houve outro festival, que terminou com brigas, incêndio e drogas pesadas. Michael Lang quis festejar os 50 anos. Lutou muito, mas não conseguiu. Artistas cancelaram, patrocinadores caíram fora. Os tempos são outros. Vivemos um tempo de guerra, animosidade e infantilismo musical. Paz, amor e música, nunca mais.

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

UM OBSERVADOR

Uma das melhores qualidades de um escritor é a observação. Quando alguém me chama a atenção, por qualquer motivo, observo. Assisto seus movimentos, tiques, fala, o jeito como anda. É quase uma mania. Lá adiante, em um romance, essas observações surgem na constituição de um personagem. Atores são grandes observadores. Cacá Carvalho usa um método interessante. Manda os atores escolherem alguém para seguir na rua, atentos aos seus movimentos. No dia seguinte, mostram no ensaio. Quando encenamos “Hamlet, um extrato de nós”, a primeira cena era o banquete do novo rei, elenco todo no palco. O público assistia a uma peça mas os atores, na verdade, embora dizendo seu texto, tinham outras motivações. Havia uma moça se maquiando no ônibus, um guarda noturno que teve a atenção chamada para um ruído, uma senhora pagando com cartão de crédito sua compra, outra pagando promessa para Nossa Senhora de Lourdes, enfim. Uma vez contou que em determinado espetáculo, em cena, ele dizia seu texto mas na verdade, estava na cozinha de sua casa, conversando com a mãe que passava a ferro algumas roupas. Fotógrafos, pintores, enfim, todos são observadores. Minhas melhores fotos, se é que uma figura tosca como eu pode gerar boas fotos, foram feitas por Luiz Braga. Amigo antigo, já diversas vezes o assisti fotografando. O que o fotografado não sabe é que, desde que entra no estúdio, está sob observação. Luiz pergunta, ri, relaxa, oferece cafezinho. Enquanto isso, vai encontrando aquele que mora dentro daquele corpo e seu melhor angulo. Em meu livro mais recente, que espero ardentemente lançar via Boitempo, aprendi sobre o poder da observação de um jogador profissional de pôquer. Você, pessoa comum, decide ir a um cassino, se divertir. Separa um dinheiro (sem dinheiro, nem chegue perto) e vai disposto a sentir a adrenalina, considerar se vai ganhar aquela “mão”, quem sabe blefar e ao final da noite, satisfeito, mas sem dinheiro, achar que valeu a pena. O profissional não está ali para se divertir e sim para trabalhar. Ele vai mirar em você, avaliando quanto tem para perder. Observará por tempo suficiente, seus tiques, expressões, corpo, tudo. Ganhará e perderá na medida certa, até que você aposta pesado com a certeza de ganhar. E ele ganha. Você vai feliz pelas emoções e ele com seu dinheiro.

Na madrugada de segunda, fui à janela do prédio fumar um cigarro. Rua deserta, as pessoas dormindo cansadas da farra do final de semana. Vejo ao longe uma pessoa. Pelo andar, era um homem. Mais próximo, percebi estar de vestido, saia curta. Um travesti. Rua deserta, sem ninguém para impressionar, andava de maneira masculina, inclusive parando atrás de um carro para ajeitar seus, digamos, atributos. Eu, observando. Notou. Olhou e pediu um cigarro. Joguei do terceiro andar. O cigarro caiu no asfalto e começou a deslizar para a vala. Rápida, com um gritinho, ciente da plateia, recolheu o cigarro, acendeu, tragou, soltou fumaça e agradeceu com um volteio bem feminino. Claro, saiu andando rebolando, exageradamente, para sua plateia. Quando passo de carro pela Manoel Barata, à noite, assisto às movimentações das “moças”. Algumas com um olhar distante, tipo modelos, outras agarradas a um poste, fazendo as carentes e sim, há despojadas, que mostram os seios e muito mais. Mais do que tudo, elas querem ser vistas, desejadas, observadas. Ih, acabou o espaço.

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

SILÊNCIOS DE LAR

Estava passando de carro e havia um engarrafamento. Aguardando, prestei atenção em uma casa antiga, fechada, aparentando abandono. Me detive nos enfeites na fachada. Havia uma data, como muitas vezes ocorre. 1913. Fotografei e postei no Facebook. Muita gente comentou sobre o abandono, outros reclamando ação do Iphan. A casa onde funcionou o Teatro Cuíra também é antiga, de 1915. Ali chegou a funcionar até uma fábrica de algodão. Nunca morei em casa. Sou de apartamento. Mas quando era adolescente, frequentei muito a residência da família de meu amigo inesquecível, Abílio Cruz, ali na São Jerônimo, permitam chamar assim. Uma porta grande, escada comprida, sala grande, alcova, outra sala e então o que chamam de puxada, ou seja, longo corredor com vários quartos, até chegar à cozinha e então o quintal. A Casa Cuíra, na Cidade Velha é assim. Na parte da frente, grandes salas onde ensaiamos e apresentamos peças. Mais atrás, o antigo proprietário como que construiu outra residência, moderna, mas guardando o longo corredor e quartos. Há muitas dessas casas em Belém, sobretudo na Cidade Velha. Não sou da área, mas penso que o Município, Estado e União já deviam ter melhores idéias para sua preservação. Não vou fazer sugestões. Não é possível que não pensem nisso, ou só acham possível com dinheiro oficial, que nunca virá.  Mas foi passando diante dessas moradias, final da tarde, vendo senhorinhas na janela, banho tomado, entalcadas, cheirosas, apreciando o movimento, que decidi escrever a peça “Toda minha vida por ti”. O que atiçou minha curiosidade foi saber as histórias que essas casas, essas senhorinhas guardavam. Os tempos de fausto. Da juventude. Os amores. E aos poucos, a vida se esvaindo, os filhos e netos batendo asas e ficando aquele espaço vazio, onde o vento chora, uivando de saudade. Minha tia Adalcinda chamou isso de “silêncios de lar”, na “Bom Dia Belém”, musicada por meu pai. Os móveis, ainda com as marcas de uso, ou envolvidos em capas brancas. O relógio antigo, à corda, batendo melancolicamente as horas. A vida, agora, está nas recordações. O relógio serve apenas para saber os momentos de tomar os remédios, aguardando, aguardando. Mas tem a televisão com suas novelas. Ficam ali, aparentemente prestando atenção, mas na verdade, passa um filme, talvez seja o mesmo, repetindo, repetindo, dos grandes e alegres momentos, das chegadas e partidas, das viagens, das cerimônias, da casa cheia. Não, não estão sós, mas cercadas de todos os entes queridos, que enxergam em todos os cantos. O sorriso da netinha, que havia nascido. É a cara de quem? O filho, bem adolescente, aborrecido por não ter tido permissão para ir à festa de noite. O mundo de hoje, com sua instantaneidade, nos escravizou e estamos sempre correndo para algo que nos oferecem nas milhares de telas que nos dirigem. Sim, o grande Irmão algoritmo que agora já sabe de nossas preferencias e opiniões mais veladas. Entro no carro e o celular avisa que chegarei em meu destino em tantos minutos. Estava me acompanhando? Sim. Lembro do “Prc5”, em seus 80 anos, que aproveitei a deixa de Ítalo Calvino e suas “Cidades Invisíveis”, para mostrar que muitos acham que o mundo começou no dia em que nasceram. Não querem saber quem esteve aqui antes, construiu, amou, venceu, perdeu, pisou nestas calçadas e proporcionou para que esses nascessem. Talvez, quando penso nesses casas antigas e seu interior, esteja falando de mim.

sexta-feira, 26 de julho de 2019

O DIA DO ESCRITOR

Acho que se nasce escritor. Genética. Meu avô, minha tia, meus pais. Desde cedo me apaixonei por livros de capa e espada. Adiante, o professor Berbary me proporcionou conhecer José Lins do Rego. Adolescente, acompanhando de longe o sucesso das óperas rock e resultando de uma educação que me fez acreditar que tudo poderia ser feito, e responder por isso, junto a um irmão, comecei a escrever “Foi Boto, Sinhá”. Minha mãe forneceu um glossário de expressões amazônicas e fui em frente. Um dia desses descobri texto mais antigo, pretensiosamente “psicodélico”, claro, sem qualquer droga envolvida, chamado “A Medéia Lisérgica”, escrito à mão. Me interessei pela poesia marginal após algumas viagens ao Rio de Janeiro. Encontrava livros artesanais, cópias xerox e me identificava com a linguagem. Lancei meu primeiro livro, “Navio dos Cabeludos”. O que me impulsionava? O consumo era mínimo. Poucos acompanhavam o que estava fazendo. A seguir, lancei uma fita cassete com poemas não declamados, mas “ditos”, usando sons, criando quadros. Minha poesia sempre teve tudo a ver com o teatro, a cidade, as pessoas comuns. Aí vieram as crônicas. Meu pai foi um excelente cronista e desde cedo nos fez ler Nelson Rodrigues, Oto Lara Rezende e outros ótimos. Hoje estou por aqui. E os romances? Pois é, nem eu sabia que tinha tantas histórias para contar. O primeiro veio da idéia de relançar as radionovelas. Elas não aconteceram mas eu já estava curioso sobre o que desenvolvia. Pura diversão. Conseguir o interesse de uma editora paulista, a Boitempo foi uma grande e essencial vitória. Ivana Jinkings apostou em mim. Continua apostando. Hoje tenho seis livros na Boitempo, contos no Peru e no México. Um livro na Inglaterra e quatro na França. O próximo, já está garantido também na Asphalte. O que move o escritor a escrever? Acho que escrevo para respirar. Com toda a sorte de ter livros nacionais e internacionais, sou absolutamente invisível em minha terra. Quase trinta anos de escuridão cultural acentuam isso. Mas desde que iniciamos a Flipa, alguma coisa mudou. Há novos escritores. Precisamos valorizar os que já estão aí, sobreviventes dessa intensa nuvem que nos faz invisíveis. Se pudesse dar um conselho, diria aos jovens escritores que falem do seu chão. Seu cenário. Muitos, influenciados por Stephen King e séries de tv, ainda dirigem suas histórias para um bolo em que estão milhares de outros, ao invés de se distinguirem com algo de sua região. Acho que esse foi um de meus trunfos. Mas se conselho fosse bom... Cada um tem sua maneira, seu tempo, sua idéia. Ontem foi o Dia do Escritor. Quando alguém me pergunta sobre a profissão, digo, agora, aposentado do rádio, que sou escritor. Levantam a vista, exclamam admirados, olham tentando reconhecer um Paulo Coelho, mas nunca leram nada. Acabam de ler meus livros e dizem que é um roteiro de filme, pronto. Mas é o roteiro de cada um leitor. Como não me estendo em descrições e sabendo que em nosso mundo imagético, todos têm uma grande coleção em seus cérebros, faço com que montem seus filmes. Quem vai ao cinema, assiste ao que o montador apresenta, Não há que imaginar. Ah, o livro é muito melhor. Sinto muito orgulho, felicidade, alegria, mesmo, por ser escritor. Sem juízo de valor. Desejo a todos, mais que sucesso, que sejam lidos. Parabéns!

sexta-feira, 19 de julho de 2019

70 ANOS DE PAZ E ÀS NOVAS CANDIDATURAS

Henrique da Paz completou 70 anos. É um dos grandes nomes do Teatro Paraense. Está à frente do Grupo Gruta, um dos mais antigos e perfeitamente atuante. Acabou de reler “Antígona”, no Waldemar Henrique. Além de ótimo diretor, exigente, sábio, estive com ele na condição de ator em dois momentos marcantes de minha vida. Em 1985 ele foi Francisco Vinagre no espetáculo “Angelim, o outro lado da Cabanagem”, apresentado em uma segunda feira, 7 de janeiro, no Teatro da Paz, data da revolta. Era empolgante vê-lo em cena, o ator em seu auge. Ele “era” Francisco Vinagre. Dois meses de ensaio, lapidando cada gesto, melodia de voz. Bons anos depois, “Hamlet, um Extrato de Nós”, do Grupo Cuíra, dirigido por Cacá Carvalho, fazendo Polônio, magicamente envolvido naquele processo genial, vivido por um mês, 24 horas de ensaio e compromisso. Como há muito a Secult e a Escola de Teatro estão distantes do teatro, a primeira retornando, a segunda com seus alunos não assistindo às peças em cartaz, mesmo que oferecidos ingressos gratuitamente, até agora, os 70 anos passaram sem qualquer nota. Que pena de um Estado que não festeja seus nomes, pessoas que contribuíram e contribuem fortemente para a formação de um povo, doam-se a um trabalho cansativo, embora, para eles, não exista saída. São artistas. Vi uma foto, no Face, de um encontro entre Salustiano Vilhena, Neder Charone e Claudio Barradas. Quanto talento junto! Tenho ensaiado com Barradas a volta de “Abraço”, que fizemos no Teatro Cuíra, claro, como era praxe naquele tempo, sem qualquer apoio oficial. O que podemos fazer para o grande Salustiano voltar aos palcos? E Neder e seus cenários inesquecíveis? Impressionante é assistir Cláudio Barradas, 90 anos, dando seu texto, sugerindo gestos, vozes, movimento, pleno de sua sabedoria teatral. Eles continuam, mas as pessoas não acompanham. Não notam. Não percebem que dão as costas à vida, à Cultura, ao talento.

E aproveito para sugerir, já que ando ouvindo comentários a respeito de candidaturas à Prefeitura – antecipação mais que necessária tendo em vista ao descalabro e abandono da cidade, algo para os candidatos pensarem sobre Cultura. Começa em considerar Cultura algo importante e não dar dinheiro para pequenos eventos apoiados por vereadores e que tais. Passa por analisar os bairros e locais onde poderá instalar mecanismos culturais. Salões paroquiais? Sedes de clubes? Nos maiores bairros, mais mecanismos. Levar oficinas, fazer com que crianças, jovens, adultos e idosos voltem a conviver com o fazer cultural. Realizar eventos nos finais de semana, principalmente à noite, entrando pela madrugada, evitando que esses jovens estejam à mercê do que não presta. Editais para artistas de várias áreas, de maneira a apresentar-se e conviver com as comunidades. Concurso arquitetônico para prédios a serem construídos nos bairros. Sugiro trabalhar com o Ibama para doação de madeira apreendida. Tudo feito de madeira, bem amazônico. Sugiro a construção do Teatro Municipal no Mercado de São Brás, onde como ápice, todas as ações estarão. Parece muito? Nada disso. Imaginem quanto já foi gasto no superado BRT. A última vez em que a cidade teve uma secretaria trabalhando Cultura foi quando Paes Loureiro lá esteve. Uma cidade inteira está sofrendo, brigando, morrendo, apanhando, sendo humilhada, sem qualquer horizonte, à espera de Cultura, acreditem, senhores candidatos.