sexta-feira, 31 de julho de 2015

MEU MUNDO

Quando dei por mim, meu avô já morava no décimo andar do Palácio do Rádio, pegando o elevador para ir trabalhar. Meu pai fazia o mesmo percurso que faço, hoje, de manhã e à tarde. No caso, dele, ia e vinha parando para conversar com amigos, contar piadas. Diariamente ando da esquina da Riachuelo até o quarteirão que começa na Ó de Almeida e também tenho amigos que cumprimento, mesmo não sabendo seus nomes. Quando saio do prédio, cumprimento o “perneta”, que pede esmolas e depois vai fumar pedra no canto com a Primeiro de Março. Vou à Banca do Alvino, pegar os jornais. Por perto, à tarde, está sempre o Baldo, baixinho, ágil, mesuroso, principalmente com as meninas bonitas. Nos identificamos pela torcida do Flamengo e nos unimos para trollar os vascaínos da banca. Temos um assunto proibido: Paysandu e Remo. Ele é bicolor roxo, mas evitamos tocar nisso, por respeito. O pessoal da banca vive provocando, ele faz que não ouve. Atravessando a Oswaldo Cruz, tem um ponto de taxi, quase todos de cabeça branca. Seu Wilson, que todos os dias pergunta por meu Golden Antonio e até já recebeu foto exclusiva. Há Lucivaldo, Juraci a quem também chamam de Tatu e outros, sempre de bom humor. Na esquina com a Aristides Lobo, outro que toma conta de carros, baixinho, rosto indígena, bigodinho Cantinflas, às vezes toma umas, transforma o balde em tambor e canta a plenos pulmões. Seu Carlos é um dos dois engraxates. Me conta que é aposentado, mas não quer ficar em casa sem fazer nada. Fica por ali, trabalha, conversa e no começo da tarde, encerra o serviço. O outro, não sei o nome. Trabalha mais pela manhã. À tarde, geralmente se abraça em uma pitchula e fica feliz, sorridente, até o dia seguinte. No quarteirão do abandonado Edifício Bern, em frente a uma horrorosa favela, travestida de camelôs, outro guardador de carro, organizado, responsável, com clientes fixos e orgulhoso por seu fusca, brilhando de tão bem encerado. Na frente do Palácio do Rádio, outros que tomam conta de carros, principalmente um, com barba por fazer e cuja voz, roufenha, adotei para um personagem que fiz no rádio, Tampa, no programa Rock Pan. Se venho pelo outro lado da rua, preciso cumprimentar a Betty e seu carrinho onde vende de um tudo, principalmente água e cigarros para quem aguarda ônibus. Atravesso a Aristides Lobo, falo com Iraçu, da Banca do Plínio e mais dois passos, cumprimento MC do Senhor Jesus, que trabalha muito e sonha demais, sempre anunciando um show, disco, revistas e outros que nunca chegam. Eles fazem parte da minha vida. Ao retornar de alguma viagem, cumprimenta-los faz sentir-me em casa. São personagens de vários dos meus livros. Adoro escuta-los, suas melodias, palavras, gírias. Mesmo a turma do favelão do Bern, jogando Fifa Game pirata ou disputando seríssimas partidas de baralho, concentrados, alheios à faina da cidade. Por trás, um imenso e imundo restaurante, além de um beco, feito por algumas tábuas, chamado de “banheiro”. Que poderoso charme essa galera tem que entra governo, sai governo e nada muda? E nem falei do Ceará, que tem um carrinho com refris e bombons no centro da Praça da República. O que vale, ali, é o papo. Experiente, pergunta, com poucas palavras e recebe torrentes de histórias do mundo. Pego uma pipoca Pantera e sigo com Antonio e Durval, passeando pela praça, repisando o local onde cresci, brinquei e agora continua sendo meu mundo. Abandonado, esburacado, quebrado, pichado, mas meu mundo.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

NÓS FICAMOS BEM

Meu amigo ligou no domingo à noite. “Li tua crônica sobre Mosqueiro. Estou na estrada. Na BR. Sabes há quanto tempo saí do Mosqueiro, Ariramba? Duas horas. E agora estou em outro engarrafamento. Derruba qualquer astral”. O que dizer? Nós, que ficamos, estamos bem. Quando a ilha era servida apenas por navio e nas férias era habitada quase que somente pela classe média, aos finais das tardes de sexta feira, desembarcavam os homens que trabalharam durante a semana. Chegavam com o Cecy ou de ônibus. Roupa de cidade, jornais debaixo do braço, revistinhas para as crianças. As esposas iam esperar à porta das casas. Na segunda, bem cedinho, estavam de volta à labuta. Sem grande comunicação, os que ficavam na cidade eram chamados de “solteirões de julho”. Colunistas sociais soltavam notas maliciosas de grandes festas onde compareciam apenas estes senhores, chefes de prole e agradáveis moças. Eles, claro, ficavam silentes quando perguntados, a maioria gostando daquele flerte com a verdade.
Nós estamos bem. Não aproveitamos as belas manhãs de sol, finais de tarde aplaudidos na praia, muvuca nos bares. Nada disso. Mas devo dizer que tentei ir ao Roxy Bar em uma terça feira, tipo oito da noite. Qual o quê. A porta parecia uma fila do SUS. Passei em outros estabelecimentos. Todos cheios. Moro no centro da cidade. É claro que o trânsito ficou melhor. É da cultura do paraense curtir as férias de verão. Acho muito bacana viver a sua cidade, a sua comunidade. Infelizmente, depois de adulto, prefiro ser do contra, talvez por mera vontade de ir contra a maré. Já não tenho mais crianças ou adolescentes exigindo praia, embora tenha saudade disso. Mas todos se vão. E agora, também, para Miami. E sempre foram para outros municípios, gente que volta para a casa dos pais, visitar parentes. O trânsito fica melhor. Os colégios fechados. Mas a cidade cresceu muito. Lá no clube, não deixamos de jogar futebol na tarde de sábado. Os cinemas, lotados. Restaurantes, assim assim, a não ser o Roxy.
Meu amigo voltava com toda a família. Na casa, sem espaço, dormem apertados. Ah, deixa de má vontade! Uns vão à praia. O dono da casa vai trocar o gás, que acabou. A bomba d’água, queimou. Ih, essa geladeira não anda boa. Não faz gelo. Manda comprar refrigerante. Acabou. Ao menos um maço de cigarro. Acabou. Quantas horas para chegar àquele estacionamento ao ar livre que chamam de praia? Hiluxes e motos passam em velocidade de Mad Max. Outra offroad estaciona e liga seus potentes falantes com a pior música do mundo. Camarão! Quanto é o camarão? Quê?!!! Alguém que venda cerveja? Quente?

Nós ficamos bem. Durante a semana, cumprimos nossos afazeres e à noite, circulamos nos points, com a galera que vai e volta numa boa, vivendo seu verão. Aos finais de semana, acreditem, os clubes funcionam normalmente, restaurantes e o vai vem de carros é até mais seletivo. Os solteirões de julho se foram. Hoje, com facetime e snapshot e outros “radares”, há pouco espaço para escapulidas. De parte a parte. Este é o penúltimo final de semana. O auge, quem sabe. Por favor, amigos com mais de 50 anos, evitem aquelas fotos constrangedoras, somente de sunga. O aviso vale para homens e mulheres. Quem será a menina mais bonita? De repente faz 15 anos, está tudo no lugar e sai desafiando o mundo. E o garoto que vai desmanchar corações? Então vão, vão todos, todos, mesmo! Só apareçam no mês que vem, rostos vermelhos de sol, moendo em um engarrafamento monstro, mas felizes. Nós ficamos bem.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

AS FÉRIAS

Acordo com aquela algazarra distante das crianças na praia e a doce melodia das folhas dos coqueiros embalados pelo vento de maré cheia. Rápido a expedição está pronta e partimos para mais uma manhã adorando o rei sol. Há quem instale o guarda sol, outros as cadeiras, toalhas, cangas, comece a operar o isopor com bebidinhas e delicinhas. Jogo-me em uma espreguiçadeira e primeiro dou uma conferida no ambiente, demorando-me, lógico, nas moças bonitas que vão naquele passeio malemolente, naquela catwalk em que fazem de conta que nem prestam atenção aos olhares, enquanto nós também disfarçamos e parecemos contemplar a paisagem. Suspirando, abro o jornal ou livro e começo minha leitura. Logo, aquela algazarra vai se transformando em um lullaby e mergulho em um soninho gostoso, distante o barulho das ondas e pimba! Desperto assustado. Uma garoto vem atrás de uma bola que alguém chutou com defeito e atingiu nossa tenda. Entre imprecações e outros gritos, o moleque recolhe seu material e retorna ao jogo. Balanço o jornal que guarda alguma terra trazida pela bola e tento retomar a leitura. Qual nada. Como uma grande onda, um grande lençol, os olhos vão fechando e agora talvez consiga uma soneca boa. Quem sabe, sonhar com a Ilha dos Amores.. Pimba! Assim não tem peruano que aguente! Uma horda de vândalos atravessa a praia, como um arrastão. Com nossos medos urbanos, alguns jogam celulares e carteiras para debaixo das cadeiras e levantam os braços na base do eu me rendo. Os cavalões passam por sobre nós e outros tantos. Estão atrás de um papagaio que chinou. Curiosamente, o vitorioso foi um moleque baixinho e marrento. E agora? Outro, maior, também arvora-se a ser o vencedor. Haverá briga? Há apartes de todos os lados. O grandão cede e o moleque sai com ar vitorioso, desfilando com sua presa, orgulhoso. O céu está coalhado como em uma batalha aérea em que papagaios de todos os tipos se enfrentam em combates mortais. Pergunto-me, afinal, qual a graça em estar nesta confusão quando as crianças gritam, querendo raspa raspa. Não adianta argumentar a respeito de condições higiênicas. O raspa raspa é sagrado e ao fim, todos tomamos um copo, que devolvemos para ser lavado em uma pequena bacia imunda. Nem bem sentamos e passa o vendedor de pirulito de mel ou karo, sei lá. Assim não é possível. Que tal um mergulho? O último lá, é.. É o quê? Olha o que vocês fazem com o avô de vocês.. Bom, agora vocês me deixam ler o jornal, tirar uma soneca.. Bom dia, amigos da praia! Vai começar o show de brega, promoção da Prefeitura para alegrar este verão!! Há um palco improvisado e pressinto o que virá a seguir. Quem quiser que fique. Volto para casa, tomo banho de água de poço, mas o tal show começa e mesmo distante da praia, o som é ensurdecedor. Que férias são essas!!

Quanto a mim, leitor vulgar, estou abraçado no terceiro volume do romance “Outlander”, de Diane Gabaldon, que já virou série e assisti à primeira temporada. Romance de capa e espada que me faz voltar no tempo, tal como a protagonista, embora não de sua maneira, radical. Assim, vou passando as férias. Há muitos outros livros à espera. Quem sabe, um dia? Não moro. Sou hóspede de uma biblioteca. Os livros me cercam. Me encaram, suplicando leitura. Fazem cara feia. Mostram seus encantos. Será que conseguirei lê-los?

sexta-feira, 10 de julho de 2015

PENSANDO NA VIDA. QUE VIDA?

Era um dia de meio de semana, em pleno julho. Os pais foram para Belém resolver alguma coisa. A ordem era não sair de casa, nem para a praia. Depois do almoço, aproveitando um descuido, fui para a pracinha do Farol, que ficava em frente. Me acomodei em um galho confortável de uma árvore que ainda está lá e me peguei pensando na vida. O que havia feito até ali e o que poderia fazer. Não lembro mais o que pensei. Mas lembro de estar ali, à sombra em um começo de tarde escaldante, o barulho das ondas, distante, os coqueiros, embalados pelos ventos, o cata-vento do hotel girando e um mundo inteiro se oferecendo como uma rosa que abre suas pétalas. Sinto saudade desses dias. Em Mosqueiro chegávamos no “Presidente Vargas”. O carregador era o “Sete”. A camionete, inglesa, era do Cecy. O caseiro era “Seu Bolachinha”, apelido dado por minha mãe, claro. Nos finais de tarde, Seu Harley, vizinho, botava para rodar seu kart, levando um moleque de cada vez para dar uma volta na praça. À noite, fazia mágicas para nossos olhos curiosos. Casa grande a “Celina”. Levávamos amigos, primos. O quintal ia até a Rua da Bateria. Pira, futebol, vôlei. Qual é hoje a brincadeira? E lá vem a querida Biá avisar que tem merenda, banana amassada com Toddy. Então vamos à praia. Aproveita a maré baixa e vai à Ilha dos Amores. Agora, à tarde, tem futebol no Farol. O Ivan Harley está convocando. À noite, os Panteras Negras, empresariados por Rosenildo Franco, tocam no Praia Bar, na Vila. No Netuno Iate Clube, o show era da Escuderia Esmeril, com Paulo Pimenta na bateria e Có no baixo. Luz negra. Toca uma música pra dançar colado. Cadê coragem para tirar as meninas para dançar? Os mais espertos chegavam na frente. Ficava à margem, prestando atenção nos olhos brancos e as camisas da turma, sob a luz negra. Depois era ir para casa e sonhar de olhos abertos com aquela menina que, prometo da próxima vez.. Lá vem Seu Rubem Ohana com a Kombi trazendo a garotada. Hoje a festa é no Tralhoto. O pessoal do Chapeu Virado visita a galera do Farol. Sergio Zumero passava as manhãs empinando papagaio. À caminho da praia, acenavam para meu avô que ficava no pátio, recebendo visitas. Meu pai tocava com os amigos. Uma noite, apareceu um “boi” na frente de casa. Curiosidade total. Cantaram, dançaram, comeram, beberam e se foram. Nunca mais esqueci. Ganhei uma eletrola portátil, quer dizer, quase isso. Pesadíssima, em madeira, funcionando com oito pilhas grandes. Um dia vieram e pediram emprestado. Nunca esqueci. Vôlei era na casa do Dr. Otávio Mendonça, mas eu preferia futebol. Basquete era no Netuno. Havia tempo para tudo. Ao final das férias, o Edgar botava para tocar “I don’t wanna say goodbye, for the summer”, de “Sealed with a kiss”. Chegamos em Belém, em casa, sobre a cama, “Beatles 65”, compilação absurda feita pela gravadora local. E quem queria saber? A mãe reunia e avisava, a cada um: de manhã, colégio, depois do almoço, inglês, datilografia, natação, ao que respondíamos com enlouquecidos “nãos”!

Mosqueiro, Farol, é o lugar da minha vida. Tomara que joguem minhas cinzas na ponta da Ilha dos Amores. De vez em quando vou até lá. Dia de semana, sem movimento. Olho aquele cenário e lembro de tudo. Passam correndo Zumero e os papagaios, Ivan e a bola, a eletrola emprestada, Seu Harley no kart,  e sorrio feliz, em paz. Contemplo a “Celina” e fico mudo, como naquele dia em que pensei na vida. Que vida!

sexta-feira, 3 de julho de 2015

O FOSSO

A extensa cobertura jornalística sobre o falecimento do cantor sertanejo Cristiano Araújo abriu discussão nas mídias sociais, pela surpresa de muitas pessoas que nunca tinham ouvido falar nele. Seus fãs reagiram indignados e já li que até música inédita, que alguém teria ouvido em gravação caseira já foi descoberta e deverá ser lançada com estardalhaço. Confesso, nunca tinha ouvido falar. Achei, até, que fosse uma dupla, Cristiano e Araújo. Passei a vida tendo a companhia da música, por conta de meu trabalho. Mesmo em épocas terríveis, como do brega de Sullivan e Massadas, mais os baianos infernais, deixei de saber quem eram as figuras. Mas compreendo, ainda que desolado. O fosso sempre existiu. Quando comecei a trabalhar, no comecinho dos anos 70, aqui em Belém, ouvíamos Caetano, Chico, Paulinho da Viola, mas o povão preferia Amado Batista, Waldick Soriano, e feras locais como Edna Fagundes, que cantava inclusive no arraial do Círio. A influência da Jovem Guarda foi extrema, como também a dos boleros e merengues, fazendo surgir, aqui, esse brega de expressão cultural feroz. Vieram rock brasileiro, bregas, baianos e finalmente, sertanejos. Com a queda brutal do nível da Educação e Cultura nacionais, os poderosos da indústria fonográfica, abriram apostas naquelas duplas chorosas, acrescentando instrumental pop e explodindo nas paradas. Os prêmios nacionais de música estão infestados. De outra forma, perderiam a razão de ser. Jornalistas que trabalham para revistas dedicadas à Música, sofrem. O que colocar na capa da Rolling Stone nacional? O que escrever nas seções de discos dos jornais? Parece cruel, mas à medida em que vem o conhecimento, a Educação, a Cultura, vamos nos distanciando do gosto da maioria. Como elogiar discos de duplas como Matogrosso e Sorocaba, Dan e Daniel, sei lá que mais? As músicas correm atrás de um refrão que muitas vezes é onomatopaico. As vozes chorosas, cantores gordos, enfiados em calças de couro apertadíssimas, com as banhas sobrando como biscoitos recheados. E chapéus de couro, cintos largos, camisas quadriculadas, emulando não o sertão brasileiro, mas o country americano. E tem a sanfona, meu Deus, que belo instrumento nas mãos de Dominguinhos, Gonzagão e agora, onipresentes. E vamos trazer a situação para Belém, nossa cidade, que vê aproximar seus 400 “dAnos”. Os mais alternativos vão em pequenos grupos assistir Tulipas Raiz, que não apresentam nada novo. Vejo uma casa noturna, lotada, no estacionamento, luxuosos carros importados, um maior que o outro e lá dentro, todos cantam em coro músicas breganejas, corrente agora chamada “sertanejo universitário”. Pior, muito pior, a grande, extrema, quase totalidade das pessoas, ouve, mesmo, brega paraense. Um mercado totalmente independente, com artistas e músicas circulando em mídias piratas, agora com viés eletrônico. Tanto o sertanejo quanto o brega, são gritos pedindo socorro. É o desespero dos que não têm emprego ou razão para viver. Falta Educação. Falta Cultura. Jovens querem gritar sua verdade. Compram programas de computador. Não sabem falar inglês mas inventam e fazem música de sucesso. Cantoras em rotação acelerada, voz gasguita, pedindo socorro. Pedem por amor, pedem por vida. Há um fosso entre o que nós, jornalistas, que já nem temos novos ídolos, gostamos de ouvir e o gosto do povo. E Cristiano Araújo, quem foi, afinal?