sexta-feira, 26 de setembro de 2014

ONDE O MUNDO SE DIVIDE

Para mim, o mundo se divide na esquina da Tiradentes com a Quintino Bocaiúva. Ao menos, para os que usam a Tiradentes, em direção ao centro. Explico: o trânsito é forte e recebe carros da Antonio Barreto, bem como da Doca. É uma subida intensa, e desafia a habilidade dos motoristas em manter o carro embreado, mas parado. Quase chegando à tal esquina, uma faixa contínua avisa, segundo as Leis de Trânsito, que está proibida a ultrapassagem. Portanto, quem quiser dobrar à direita, para a Quintino, deve, bem antes, escolher o seu lado, bem como os que seguirão em frente. Mas aí é que está. Enquanto uma minoria, que seguirá em frente, obedece às instruções, a maioria, fiel à máxima de “sou brasileiro e tenho de levar vantagem em tudo”, aproveita-se e vem, lépida, esperta, alegre e saltitante, ultrapassando os “idiotas obedientes”, seguindo em frente, ganhando alguns metros, se tanto. Vale a pena se preocupar com isso? Bem, eu me preocupo. Infelizmente, para mim, vem de dentro uma espécie de espírito punitivo, talvez de outra encarnação em que posso ter sido um daqueles legionários que surrava escravos na galé onde estava Ben Hur, sei lá, pois vem de dentro, num crescendo, e preciso reagir. Acho que faço a minha parte.
Há motoristas de táxi, e me vem uma baba sagrada, por sabê-los interessados em qualquer nesga por onde possam levar vantagem. Há garotos em carros fantásticos, enormes, ansiosos para demonstrar sua ousadia e competência, em driblar os bobalhões, ali, na fila. Há estúpidos, sempre aborrecidos, que cometem o ato, meramente por grosseria. E mulheres com falso ar ingênuo, tentando levar vantagem. Eu gosto. Antevejo. Percebo sua chegada discreta, atabalhoada, dissimulada, agressiva. Vejo nisso, um quadro da nossa sociedade. Toda a má educação, a falta de cultura e civismo que nos assola, não interessa a marca e o ano do carro. Eles se aproximam, certos que no momento preciso, me cortarão a frente e ganharão os tais metros, saindo felizes, sorriso no rosto, pensando “mais um idiota para trás”. Só de pensar, me dá um arrepio. Eles vêm, com a certeza da impunidade. Não tem a ver com superioridade econômica, luta de classes, sei lá. É preciso boa noção de espaço, domínio do carro e do tempo. Sangue frio. Dissimulação. Estamos lado a lado. Com um discreto olhar, de relance, percebo sua intenção, a respiração do carro, com seu pé no acelerador, a posição em diagonal para realizar a manobra. Percebo sua intenção. Permaneço estático, como um leso, mais um leso a ser enganado, vencido. Fico ali, inerte. É preciso manter mínima distância do carro à frente, mesmo que seja uma subida. É agora. Uma pequena aceleração e o bico do meu automóvel toma a frente, para susto do oponente. Ué, o que aconteceu? Pior, a partir daquela esquina, a Tiradentes fica mais estreita, exatamente para a esquerda, de onde vêm os obedientes “idiotas”. Assim, com o bico do carro à frente, resta ao então confiante e panaca do outro carro, a calçada, a não ser que freie, repentinamente, inesperadamente, um corte nas suas certezas, e aguarde a próxima nesga, para, ainda assim, fazer valer sua manobra irregular.

Depois, é só olhar pelo retrovisor suas pragas, reclamações, como garotos apanhados em travessura. Alguns vêm atrás, ligam farol alto, querem vingar-se, mas a rua é estreita, não permitindo ultrapassagem e alguns metros adiante, a maioria cai em si e percebe que estava errada, deixando para lá. Já vi outros “colegas” fazendo a mesma coisa. Que bom não estar sozinho nesta guerra. Alivia o peito. Amansa o tal “espírito punitivo”. Mas antes de tudo, é um pedido a cada um, para que retornemos à civilização e suas leis. No mais simples ato, como esse, na esquina da Tiradentes com a Quintino, está resumido todo o nosso problema. O mundo se divide ali. De que lado você está?

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

JULES E JIM

Acabo de assistir “Jules e Jim”, o clássico da nouvelle vague, dirigido por François Truffaut no começo dos anos 60, apresentando a maravilhosa Jeanne Moreau, grande estrela e personalidade. O filme inicia o que chamamos de “cinema de autor”. Veio em um desses brindes de jornal, em esplêndido p&b. O filme chocou na época, porque rompeu com os temas até então usados por cineastas franceses. Moreau tornou-se uma figura que após participou de outros clássicos, lançou discos e em um de seus últimos filmes, “Joana Francesa”, esteve no Brasil.
O ano é 1910, Paris e dois jovens escritores, desses bancados pelas famílias, passando a vida ensaiando livros, bebendo nos cafés e dormindo em camas de mulheres bonitas. Jules e Jim (Oskar Werner e Henri Serre), austríaco e francês, eram inseparáveis. O primeiro, romântico, tímido, o segundo um conquistador. Encontram Catherine (Moreau) e se apaixonam. Ela fica com Jules e Jim segura sua paixão. Em seu primeiro encontro, ela se traveste de homem e saem os três correndo, felizes, pelas ruas. É interessante a sugestão homossexual apresentada. Como se ela estivesse testando-os. Nada como o fogo da juventude e da amizade recém feita para dar felicidade. Vamos à praia? Catherine é a rainha. Quando os dois a ignoram perdendo-se em discussão intelectual, atira-se no Sena. Aos trinta e poucos, Moreau está no auge de sua beleza. Uma rainha que passa a governar os amigos, conforme seu humor instável.
Vem a guerra e os separa. Jules e Catherine vão para a Áustria. Participam da guerra. Ao término, Jim vai visita-los. Muito acontece. Jim e Catherine. Catherine e Jules. Um ménage a trois que não vai à cama.
Ali nos anos 80, creio, assisti a um filme chamado “Corações Loucos”, com Gerard Depardieu e outro ator que, ao que parece, suicidou-se pouco depois. Um quase remake do “Jules e Jim”. Moreau participa, como que para lembrar. Interessante porque, tal como no original, anos 60, havia uma leveza, uma pureza nas relações e a festa da nova amizade na qual todos querem contar sua histórias e mostrar sua personalidade, ao mesmo tempo que querem agradar aos outros. Amor. Lembro da cena em que decidem ir à praia. Pegam o trem. Baixa temporada. Invadem uma casa. Entram nos quartos. Abrem armários. Tiram lingeries. Riem. Filme em cores. Muitas. Não lembro mais nada.

Hoje, na minha idade, creio que não farei novas amizades tão fortes assim. Tipo abrir um feriado na alma em plena terça feira e sair sem destino. Encontrar um Mosqueiro, Salinas, com as casas fechadas, ninguém nas ruas, a não ser os residentes. Hoje parece que todos têm pressa. Muita pressa. O facebook, whatsup, Skype, aproximaram as pessoas, sem dúvida. Estimularam a escrita. Essas novidades também fazem com que fiquemos, todos em nossos castelos, protegidos e até mesmo podendo forjar personas. Não temos mais, como antes, tempo para tomar um café num fim de tarde. O celular nos encontra onde quer que estejamos. Estamos acessíveis o tempo todo. Viajamos e mandamos selfies. Estou aqui! Não me esqueçam! Assisti “Jules e Jim” e fiquei melancólico a respeito daqueles jovens vivendo seu encontro, sua amizade. A alegria, farra, felicidade. Não esqueça seus amigos. Eles são as testemunhas da sua vida. Escolhidos. Às vezes nem tudo vai bem. Mas depois melhora. Ah, como era bom.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

PARA NUNCA ESQUECER


Leio no obituário de um jornal carioca a notícia do falecimento de Aldo Lotufo, aos 89 anos de idade. Foi o Primeiro Bailarino do Teatro Municipal do Rio de Janeiro por 30 anos. A máquina maravilhosa que é nosso cérebro me trouxe sua imagem e de sua partner, Elizabeth Oliosi, flutuando no palco do Teatro da Paz, em algum momento da segunda metade dos anos 60, em um evento que contava com o Corpo de Balé Jovem do Rio de Janeiro, ou algo assim. Há alguns anos, antes de retirarem as placas onde grandes artistas registravam sua passagem pelo TP, havia o nome de Elizabeth Oliosi. Em ambos os casos, nunca mais tive contato com nada de suas carreiras. Mas aquele momento ficou gravado em minha mente. O ato teatral. O par. A plateia. A mágica. Estava lá, talvez porque meu avô Edgar Proença era diretor do teatro. Não lembro. Mas de Aldo e Elizabeth, nunca esqueci.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

ONDE VENDE SEU LIVRO?

Fui fazer um exame com meu amigo Arnaldo Lobo e ele começou a gabar as qualidades de meu livro “Crônicas da Cidade Morena II”, frente a seus auxiliares. Uma das médicas se interessou e perguntou se podia comprar na Saraiva. Não, eu disse. A Saraiva, quando vende livros de autores locais, fica com um percentual absurdo, um claro aviso de quem só se dispõe a vender os best sellers. Aconselhei-a a procurar a Fox, onde os autores paraenses, ou que exercem a atividade literária conseguem expor seus trabalhos.

É muito difícil a vida do escritor local. Sem qualquer política cultural para a Literatura, realizada pelas esferas municipal e federal, lançar um livro é desafio. É preciso encontrar uma Editora. Há algumas, locais. Normalmente, os autores procuram uma gráfica e com seus próprios recursos, imprimem a obra. Ou então são beneficiários de prêmios como os que existem na Academia Paraense de Letras ou no IAP. Qualquer que seja a maneira encontrada para publicar, o livro estará fadado a ter uma noite de autógrafos onde irão amigos e familiares, que a título de “prestigiar”, comprarão o livro. E depois? O encalhe. A Fox é o caminho. Mas não é o suficiente. Se, infelizmente, lê-se pouco no Brasil, imaginem um autor paraense. Nos cadernos dominicais, há sempre entrevistas com figuras da terra, declarando suas preferencias literárias. A maioria é por auto-ajuda. Ou então, best sellers. Nunca li uma preferencia por autor paraense. Também não sei do trabalho dos cursos de Letras, a respeito. O da Ufpa ficou em 14o. lugar, em pesquisa divulgada nos últimos dias. Com 15 livros lançados, nunca fui chamado, nem nenhum dos meus livros mereceu qualquer consideração até hoje. Talvez eu não valha nada, mesmo, mas certamente, posso dizer que sou um escritor paraense. Sem uma política cultural para fomentar, nunca haverá um mercado. Graças a Deus esse governo aí está de saída, para nunca mais voltar. Seu único feito foi realizar uma Feira Pan Amazônica do Livro, que nunca foi mais do que um evento comercial onde as poucas lojas e editoras montaram toscas barracas para vender livros encalhados, enquanto escritores famosos nacionalmente vieram se divertir, ser acarinhados pela plateia, visitar pontos turísticos, comer pratos típicos e voltar felizes da vida. Quanto aos escritores locais, uma barraca mal colocada, mal iluminada, uma esmola. Fomentar a Literatura é pensar em popularizar no Estado os autores atuais. Relançar livros importantes, fora de catálogo. Publicar livros de escritores iniciantes. Ao final do ano, e não no começo (sob a pueril desculpa de guardar dinheiro para o Festival de Ópera), realizar uma Feira como um ápice de todo o trabalho realizado. Talvez, em alguns anos, tenhamos um mercado constituído, onde o escritor local não será um “estranho no ninho”. Teremos livros importantes de volta às prateleiras. Novos escritores apresentando seu trabalho e os atuais, com a mesma importância dos “famosos colegas”. O resto é enganar as pessoas. É oferecer migalhas. A tal política de eventos que tão mal causou à Cultura do Pará nesses 24 anos, creio, de burrices e cretinices de gente despreparada e mal intencionada. Eu posso falar. Tive a grande sorte de ter uma Editora, a Boitempo que espalha meus livros por todo o Brasil. Em Paris, frente a 800 pessoas, em um teatro, que foram me ouvir, fiquei feliz e ao mesmo tempo chateado por não conseguir mover, em minha terra, nem 10% daquele público para meus livros. Mas eu acredito que tudo possa mudar.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

BELÉM, CIDADE MAL AMADA

Confesso que bateu o medo. Sou classe média. Estudei, me formei. Trabalhei feito um condenado. Eu e muitos outros estamos sendo caçados como ratazanas prenhas, lembrando Nelson Rodrigues. Os crimes saíram dos cadernos de Polícia e invadiram o Jornal das Oito, na Tv, as colunas sociais. Ando pelas ruas ligado, olho constantemente à minha volta, como um soldado em campo inimigo, camuflado e arriscando pisar em minas. Pego meu carro e a cada motociclista que zune à minha frente, corta em zigue zague, toma a frente, meus relés de segurança detonam adrenalina. Quando será minha vez? Quando serei sorteado? Há alguns meses, em uma das ruas mais importantes de São Paulo, fui assaltado. Por reflexo, reagi e o ladrão fugiu. Se estivesse armado, me atingiria. Ele devia estar observando minha caminhada, completamente desligado. Desatento. Foi esse meu pecado. Os sinais de trânsito hoje funcionam como fator de risco. Não de trânsito, mas de assalto. Escolha aleatória? A moça atingida no braço, ali na Pedro Álvares Cabral. No vídeo de segurança, o ladrão parecia estar indo escolher um carro no sinal, mais adiante. Resolveu pela moça porque ela estacionou. Um sorteio. Bingo, o escolhido foi vo-cê! Os caras, na Gentil, quatro da tarde, bum, vinte tiros. Te mete!
Um conjunto de situações, baseado na incompetência de nossos gestores, produziu essa crise. Nossa elite vive viajando pelo mundo, mas nada traz de bom para a cidade. Vive em prédios cada vez mais altos, luxuosos, mas quando sai em suas SUVs maravilhosas, mergulham na lama e nos buracos das ruas apodrecidas. Uma cidade com menos de 10% de esgotos não pode se considerar cidade. Precisamos de profissionais competentes. A cidade pulsa, pede. Organismo vivo. A cada dia, um número cada vez maior de desesperados chega procurando salvação. Não há empregos a oferecer. Não há comida, moradia, planejamento. De dia, vêm para o centro buscar qualquer coisa. Amontoados em barracas fétidas, passam o dia arengando uns com os outros. Vem a droga e chupa a vida dos mais novos, transformando-os em zumbis. Para quê assistir Walking Dead, se podemos tê-los, zumbis, 4D, ali na Primeiro de Março com Riachuelo, na Praça da República, Lojas Americanas e tantos outros points? A Polícia, com alguma razão, diz ser um problema social. Mas não há, claramente, presencialmente, ação da área social da Prefeitura.

Quer saber? Nós odiamos Belém. Essa Belém da qual dizemos ter saudades quanto estamos fora. Essa Belém que nos faz chorar quando toca a música da Fafá de Belém. Essa Belém da qual dizemos sentir orgulho de pertencer e por isso amamos. É mentira. Nós odiamos Belém. Tudo fazemos para agredi-la. Nós. Eu e você. As autoridades, preocupadas com suas questiúnculas, despreparadas tecnicamente para as funções que assumem. Nós que jogamos lixo nas ruas. Que construímos prédios gigantescos, sem preocupação com acesso, garagem, esgotos. Que fazemos dos nossos carros verdadeiras armas. Nós que votamos em governos que não dão mínimas condições da população mais pobre ter um porvir em todos os sentidos. Nós, que ainda assim, falamos mal dela, Belém, enquanto estamos aqui. E quando estamos fora, choramos em banzo sonso. Nós te odiamos, Belém, ao permitir que as ditas “artoridades” enterrassem nossa Cultura, nós que temos tanto a produzir. Sim, tenho medo de andar nas ruas, mas tenho refletido e procurado melhorar como cidadão. Mas sinceramente, a dura verdade é que odiamos Belém.