sexta-feira, 30 de dezembro de 2016
AS QUATRO ESTAÇÕES DE HAVANA
Sou
amigo de Leonardo Padura, o escritor cubano que recebeu há uns dois anos o
prêmio “Princesa das Astúrias”, o mais importante da língua espanhola.
Estivemos juntos em algumas apresentações em São Paulo e Recife, eu com meu “Pssica”
e ele com “O Homem que Amava os Cachorros” e ainda “Os Hereges”, todos lançados
pela Boitempo. É claro que as maiores atenções eram para ele. Um homem
tranquilo, observador, inteligente, que sabe usar as palavras e como bom cubano
não deixa nada sem resposta ainda que pouco tenha dito, se o assunto é o regime
da ilha. Mas sobretudo, digno. Estávamos em Recife, na Feira Literária,
abertura. Um senhorzinho fez nossa introdução, quer dizer, dele. Apaixonado por
Cuba, desandou a falar dos talentos de Padura. Diria, cantou em prosa e verso.
Esqueceu de mim. Fiquei sem graça. Não sabia o que fazer. Pomposamente, o
senhorzinho passou a palavra a Leo e ele: Senhoras e Senhores, o que há em
comum entre minha obra e a de Edyr Augusto é isso e aquilo. Eu e o Edyr escrevemos
desta e daquela maneira, enfim, Leonardo me repôs em cena com seu talento,
educação e generosidade. Quando terminamos, fomos aplaudidos de pé, ele mais
merecedor, claro. Poderia contar muito mais. Visitamos a sinagoga do Recife, a
primeira da América do Sul, mencionada em seu “Os Hereges”. Escreve mensalmente
uma crônica para a Folha de São Paulo. Vive viajando, mas retorna sempre para
sua casa em Havana. A Boitempo acaba de lançar quatro obras no gênero policial,
uma ou duas, não sei, anteriormente lançadas sem o destaque necessário. Em
todas está presente o Detetive Conde, seu alter ego. E por escreve-las quase
encadeadas, chamou-as de “As Quatro Estações de Havana”, localizando-as em
1989, ano terrível para os cubanos, com a queda do Muro de Berlim e outros.
Através de sua linguagem leve, gostosa e precisa, temos idéia da realidade
cubana, mais do que qualquer propaganda tendenciosa, seja para que lado for. A
Padura, interessa mais como os casos se desenvolvem do que sua resolução, quem
cometeu o crime. Interessa a convivência, a temperatura, as pessoas. Agora,
melhor ainda, a Netflix apresenta a série, com mesmo título, reunindo em quatro
capítulos, “Passado Perfeito” (que se passa no inverno), “Ventos de
Quaresma”(primavera), “Máscaras”(verão) e “Paisagem de Outono”. É uma produção
da Tv espanhola com a Tornasol Filmes, de Gerardo Herrera, com direção de Félix
Vistanat e o melhor, roteiro de Padura e sua esposa, Lucía Lopez Coll. Cenas
magníficas, casario muitas vezes parecido com Belém. Calor, suor. Mulheres
cubanas adultas, lindas e cheias de personalidade. E o Detetive Conde, que
afoga mágoas com bebida, divide acontecimentos com uma roda de amigos, assiste
a um deles partir com a família para Miami, desejando um futuro. O detetive é
interpretado por Jorge Perugorría, muito bem. Aconselho a lerem primeiro, para
depois desfrutar da série. Há muito nas entrelinhas, um mundo de fofocas,
corrupção, o eterno medo da turma “lá de cima”, que dá as ordens e muitas vezes
sufoca as investigações. Gostaria de ir a Cuba para conversar com Leonardo. Ele
me levaria aos locais certos, tenho certeza. Ah, esqueci de dizer que em cada
um dos capítulos/livro, há boleros apaixonantes, belissimamente tocados e
cantados, principalmente por cantoras. Metais, orquestras, cheguei a procurar
uma das músicas no iTunes, mas não achei. Se acharem, me contem.
sexta-feira, 23 de dezembro de 2016
ALCEU VALENÇA - VIVO/REVIVO
“Eu
desconfio dos cabelos longos de sua cabeça se você deixou crescer de um ano pra
cá. Eu desconfio no sentido estrito, eu desconfio no sentido lato”. Alceu
Valença apareceu como um furacão. Já havia gravado um disco em parceria com
Geraldo Azevedo. Ambos iniciantes. Então veio um festival de música e lá estava
ele, com roupas maravilhosas, cabelos longos, juntamente com Paulo Rafael, Zé
da Flauta e Zé Ramalho, tocando “Vou danado pra Catende”, um galope que
conquistou a todos instantaneamente. Era rock and roll e era o mais puro
nordeste. As letras misturando imagens belas, tortas, instigantes e um cantor
agitado, olhos em brasa, como um guerreiro que toma posse de tudo ao seu redor.
Veio o disco gravado ao vivo, com poucas condições técnicas e lá estava a banda
maravilhosa com um repertório inesquecível. Pouco tempo depois, via Projeto
Pixinguinha, Alceu desembarcou em Belém onde passou, talvez, uma semana,
circulando pelo centro da cidade, fazendo amizades (ia na discoteca da Rádio
Clube escutar discos locais) e principalmente, soando de maneira estrondosa no
Teatro da Paz. Sozinho, sobre um praticável, com seu violão, trajes, cabelos
longos e o canto, não deixava ninguém quieto. Poucas vezes a música pop
brasileira foi tão bem representada naquela mistura de nordeste e rock, mais
ainda, no TP, de maneira acústica, fazendo percussão com imensas botas. Alceu
prosseguiu grande e é realmente estranho, talvez seu gênio, sei lá, que ele não
seja lembrado juntos aos grandes da mpb como Chico, Caetano, Gil e Milton.
Tornou-se um artista popular, de inúmeros sucessos. Mas creio que retomar o
repertório daquele disco “Vivo”, agora “Revivo”, com praticamente toda a banda
original, com toda a tecnologia que temos vem matar a vontade de muitos, até
porque no disco original, muitas músicas do show ficaram de fora, por conta da
duração do vinil. O verso citado no início é como uma declaração de intenções
para quem era adolescente nos anos 70. É claro que desta vez a voz não tem mais
aquele tônus de juventude e vontade de conquistar. Mas Alceu é maravilhoso em
relembrar tanta coisa boa. São repentes, galopes, baiões, maracatus com um
cantador acompanhado por guitarra elétrica e flauta. Preciso dizer que a
mixagem tirou muito da força da guitarra de Paulo Rafael, preferindo viola e
flauta. Isso foi errado. Mas adorei “Espelho Cristalino”, “Punhal de Prata”,
“Descida da Ladeira”, “Pontos Cardeais”, “Casamento da Raposa com o Rouxinol,
“Papagaio do Futuro” e “Sol e Chuva”. “Não, não quero mais brincar de sol e
chuva com você. Para o seu dedo tenho dedal. Pro seu conselho cara de pau.
Tenho janeiro, tenho fevereiro, se essa vida é um desmantelo, me mate que eu
sou muito vivo, vivo, vivo!
E
sem sair de Pernambuco, mas mundo afora, recomendo “The Bridge”, com Lenine
acompanhado pela Martin Fondse Orchestra, ao vivo no Bimhuis, Holanda, creio.
Som maravilhoso e Lenine desfilando seus sucessos tendo como acompanhamento
arranjos lindos, violinos fazendo rabecas, saxofones cruzando o ar feito
cometas, piano e percussão na linha do jazz. “A Ponte”, “A Rede”, “Hoje eu
quero sair só”, “Relampiano”, “Leão do Norte” e muitas outras são cantadas. No
mais festejar a riqueza dos pernambucanos. Alceu e Lenine já são veteranos mas
o número de cantores, músicos, atores e filmes feitos por lá mostram o
resultado de uma política cultural feita de maneira profissional e técnica. E
nós ficamos a chorar.
segunda-feira, 19 de dezembro de 2016
PAPAI NOEL PORNÔ
Honesto, íntegro,
mas amante das piadas de sacanagem. Boca suja naturalmente. Desses que dizem
palavrão com tanta naturalidade que são perdoados gostosamente. Era a atração
das reuniões de família, procurando cabelos nas mãos dos pré adolescentes,
contando suas piadas indecentes, como as definia sua esposa, que sempre fazia a
chocada, parte do número. Aposentou-se e na falta do que fazer, descia para a
portaria do prédio onde ficava contando suas piadas, seus causos, para quem se
interessasse. Boa pessoa, não tinha filhos, adorava crianças. Elas também
gostavam do velho boca suja mas carinhoso. Veio o Natal e decidiu comprar uma
fantasia de Papai Noel. Percorreria todos os andares distribuindo presentes,
sonhos e recebendo carinho. Era conhecido e todos gostariam. Dito e feito.
Desceu do último até o primeiro andar, não esquecendo de aceitar os drinks
oferecidos, às escondidas das crianças. Eram 22 andares. Três apartamentos por
andar. Quando chegou no terceiro, 302, havia moradores novos. Entrou fazendo
seu número. Notou certa formalidade, mas com um sem número de doses de whisky,
champagne, cerveja, conhaque e até alexander, a boca suja estava absolutamente
solta. Abraçava as crianças dizendo Feliz Natal, porra. Vem cá seu caralhinho, vem
pegar o teu presente, viadinho do papai, vem cá. Não deu certo. Os vizinhos
eram crentes. Foi posto para fora. As crianças ficaram chorando. Não sabe se
foi dos palavrões ou por não terem recebido os presentes. Perdeu a graça.
Voltou correndo para seu apartamento, tirou a fantasia e ficou ali pela sala,
aguardando seus parentes. Tocaram à porta. Era o síndico, meio sem graça, pois
o conhecia e também lhe tinha oferecido uma dose e o vizinho, querendo dar
queixa. Falaram. Explicaram. Já estavam saindo. Não agüentou. Resmungou alto:
tanta confusão por causa de uns caralhinhos, ora porra...
Deu escândalo. Os vizinhos se mudaram. Papai Noel
continua.
sexta-feira, 2 de dezembro de 2016
NUM SÁBADO MODORRENTO
Era
um sábado comum. Depois da hora do almoço. Calor, modorra, bate papo furado.
Atriz, ela estava em temporada. Naquela noite, o penúltimo espetáculo de grande
sucesso. Trabalhador, ele fora ao comércio comprar dois terçados para sua lavoura.
Ao invés de pegar o ônibus no começo da Presidente Vargas, pensou em ir até as
Lojas Americanas, ver alguma coisa para a filha. Na Riachuelo, um casal começa
uma briga. Ele, desses que toma conta de carros. Ela, prostituta. Têm filhos e
boa relação com eles. Mas quando brigam, junta gente. Escutei o começo da
discussão. Essa gente que mora na rua, fala muito alto, claro, a casa deles é o
mundo. Fui até o pátio ver o que estava havendo. O casal se enfrentava em
círculos. Acusações, respostas, um ou outro tapa. Os passantes incentivavam.
Mas é que o trabalhador, com os terçados, resolveu intervir. Logo o casal
esqueceu a briga e passou a discutir com o interventor. Chamei a atriz.
Barulhão. Gritos. Buzinas. Ela não veio. Então os dois homens começaram a
brigar. Caíram os terçados do pacote. A cena seguinte era na faixa de segurança
de pedestres na Presidente Vargas. No melhor estilo capa espada, os dois
duelavam com os terçados. Troquei de janela para ver melhor. No caminho, a
atriz gritava de dor pegando o dedo mindinho. O que houve? Uma topada no pé do
sofá, na pressa de ver o que estava acontecendo. O sinal abriu, nenhum carro
avançou. Um dos terçados caiu no chão. O outro saiu correndo. As árvores me
impediram de continuar assistindo. Ouço uma freada brusca. Meus amigos
engraxates, taxistas, vendedores de balas, carimbo da sorte, traficantes,
prostitutas, olhadores de carro, todos correram. Sem pensar, peguei o elevador
e também desci. Foi na esquina com a Ó de Almeida, que na época tinha outra mão
de tráfego. Um fusca vinha apressado. O trabalhador estava correndo. O outro
atrás de terçado em riste. Atropelamento. Agora o fusca estava ofegante, saindo
fumaça e o trabalhador estava no chão, morto. O motorista abriu a porta, mãos à
cabeça, desesperado. Alguém chamava o Samu. O agressor sumiu em alguma esquina.
A vida é um piscar d’olhos. A atriz louca de dor. Saco de gelo. Remédio. Tem
espetáculo à noite? Tem, sim senhor. De sapato de bico fino e salto?
Exatamente. Tudo aconteceu normalmente. A plateia foi ótima. Agradeceu, foi
para os bastidores e largou o sapato no caminho. Sentou e uivou de dor. Ainda
chegavam pessoas para cumprimentar. Só então o pé começou a inchar para valer.
Na hora da cena, nem se pensa nisso e o corpo parece compreender a urgência do
instante. Direto para o Pronto Socorro. Bate chapa. Mindinho quebrado. Doutor,
eu tenho espetáculo amanhã. É a última noite. Preciso fazer. Minha senhora, não
vai haver espetáculo. A senhora quebrou o dedo. Vai fazer uma proteção. Não põe
gesso. A senhora é que sabe. Não houve espetáculo. No dia seguinte, inchou
ainda mais. Voltou ao Pronto Socorro para engessar. Isso foi o de menos. Num
sábado modorrento, perde-se a vida em poucos instantes, sem saber nem o nome da
mulher que tentou socorrer e que, em seguida, também ficou contra si. Esse povo
da rua é mesmo complicado. Na hora da confusão, é melhor ficar apenas
observando. Eles têm códigos diferentes. Em um momento estão brigando como se
fosse o fim do mundo e logo em seguida se abraçam, trocam baseados, petecas e
vida que segue.
sexta-feira, 25 de novembro de 2016
RÁ
Uma das melhores qualidades de
um escritor é a observação. Em qualquer lugar que estamos, ficamos sempre à
espreita, sobre o comportamento das pessoas, a melodia das palavras para
entender o real sentido e suas reações. Muito cedo isso aflorou em mim.
Crianças, estávamos no Lago Azul, antes de se transformar no condomínio de luxo
que é hoje. Minha avó era a motorista. Ao ligar o carro, a bateria não
respondia. Era preciso empurrar. Eu e meus irmãos precisamos da ajuda do
caseiro, Seu Otávio, caboclo forte, destemido e gentil. Ficamos naquela de um,
dois, três e já! E ao iniciarmos a ação, ouvimos aquele ruído de gases sendo
expelidos. Na estupefação geral, Seu Otávio, gentilíssimo, sincero, exclama:
Ôpa fui eu.. Na exclamação, estava o respeito pelos “branquinhos”, a admissão
de culpa, antes que qualquer um fosse acusado, e sua humildade. Nem precisava,
claro, mas era assim naquele tempo. Tudo causou grandes risadas, enfim.
E aquele produtor que viajava
pelo interior do Pará e achou de almoçar nessas tendinhas à beira do rio, onde
a higiene passa longe e as moscas voam em formações de esquadrilha. Almoçou sem
perguntar muito, porque a fome era maior que qualquer especulação. Quando
acabou, deixou escapar, quase sem querer, para a mulher que além de cozinhar,
lavar, servir, ainda tinha ao colo uma criança que tentava mamar a qualquer
custo: Por favor, a senhora poderia retirar logo o meu prato da mesa? Quando
acabo de comer, não suporto ficar com o prato sujo à minha frente. A mulher o olhou
demoradamente, ao redor, ao ambiente todo, estendeu a mão, retirou o prato e
exclamou : hummmmm... Embutido nisso estava o absurdo de, naquele lugar,
naquelas condições, após ter devorado sua comida, agir como se estivesse em
restaurante cinco estrelas. Também poderia ter exclamado :Tá, cheiroso..
No grupo de amigos com quem
jogo futebol nos finais de semana, tenho um amigo com grande humor. Grande,
zagueiro desses tipo “assim como ela vem, ela volta”, metendo medo nos
atacantes que fogem logo para uma das pontas do campo, é um ótimo imitador de
outros colegas, dá apelidos, faz comentários pérfidos durante o jogo, e é de
uma honestidade exemplar. Escala os times e ninguém se dá ao luxo de contestar
uma leve pendência, na escalação, para a equipe em que irá jogar. Não me
perguntem a razão, porque nem a explicação consegue fazer ninguém entender, mas
todos os sábados, precisamos ir ao clube ali pelas seis da manhã, para assinar
uma lista e jogar à tarde. Por favor, sem explicações. Após isso, vamos sempre
a uma padaria que fica na rua ao lado, para tomar café. Com sua voz de registro
incomum, fica livre para fazer comentários jocosos, apelidar, enfim, o seu
melhor. Uma das provocações é quanto ao proprietário. Quando quer pedir água
mineral, pede dizendo que se trata de água retirada da piscina infantil do
clube, que fica ao lado. O atingido pela acusação nem olha, só faz rir. É mais
uma das brincadeiras de sempre. Eu, no entanto, dessa vez, estava observando os
presentes, como recebiam essas brincadeiras todas. Me fixei em uma senhora, que
estava no caixa e que, desde o começo das piadas, tinha um olhar reprovador no
semblante, chegando a cochichar com outros atendentes. E na hora de irmos
embora, meu amigo, com todo seu tamanho, vai até o proprietário, o abraça, e
diz que gosta muito dele. Lá do fundo, atrás do balcão, escuto a exclamação:
Rá!
sexta-feira, 18 de novembro de 2016
GRIS
É
fato que o calor só faz aumentar, mas já começam as manhãs gris, anunciando a
chegada do inverno e do fim do ano. Ando pelas ruas e passam por mim
estudantes, ainda de uniforme, mas felizes, certamente tendo acabado de sair de
provas, comemorando a chegada das férias. Lembro de como era feliz quando ainda
estudante. Quase sempre passando por média, acordava, como dizia o saudoso Rui
Barata, para “o que ocorrer”. Pegava a bicicleta e partia para meu playground
que era a Praça da República. Lá encontrava colegas, também de bicicleta e
passeávamos descobrindo tesouros ou mesmo, brincando do que chamávamos de
“tranca”, que significava trancar o adversário e ali permanecer, juntos,
parados, mantendo o equilíbrio, para ver quem caía primeiro. Mais além, a casa
de meu grande amigo Abílio, onde decidíamos o assunto do dia. Podíamos procurar
outros moleques para jogar petecas. Ou ainda esticar até o colégio, onde muitos
ainda faziam provas, mas sempre havia a oportunidade de jogar um futebol.
Podíamos jogar botão. Chamamos os outros colegas para um grande torneio. Claro
que meu time era o Flamengo. O hoje respeitável doutor Sérgio Zumero decidiu
disputar com o Clube do Remo. Tudo bem. Era sua vez. Espalhou os botões sobre a
mesa. A mim cabia irradiar a contenda. Ao divulgar a escalação do time, lá
estava, de centro avante, a foto de Sérgio. Contestado, exigiu sua presença, no
comando do ataque. Foram horas e horas de debate. Não sei ao certo quem ganhou.
Mas foi muito criativo. Certa vez, descendo a Governador José Malcher, por
algum motivo, tinha a caderneta escolar em mãos. Conferindo as notas, percebi
que em uma matéria, apesar de ter notas para passar direto, havia a exigência,
estúpida, de assinar a prova final. E eu estava de calção, chinelas, enfim,
figurino de férias. Pior, a prova seria naquela manhã. Acompanhado de minha mãe
e após longa negociação, permitiram que fizesse a tal prova. No mais, a falta
de compromisso era a tônica. Quase sempre, havia um disco dos Beatles sendo
lançado e invariavelmente, meu irmão Edgar já o tinha. Solenemente, sentávamos
na sala de estar do apartamento e o ouvíamos contritos. Lá pela décima vez,
nossa mãe protestava, mas a essa altura, já estávamos à frente de um espelho,
tentando dublar as músicas. As mãos seguravam uma guitarra imaginária. Pobre de
mim, irmão mais novo. A mim cabia sempre a segunda voz, quase sempre um George
Harrison, afinal, o mais velho era Paul ou John nos grandes hits. Nessas manhãs
gris, chego no trabalho e coloco Beatles para ouvir. E todas as memórias desabam
no colo. E você? Tem alguma lembrança dessa época feliz de estudante? E com a
caderneta nas mãos, com a aprovação comprovada, descia até o Comércio, no
prédio em que funcionava o Basa, em que meu pai trabalhava. A busca era por uma
recompensa. Imagino, hoje, seu constrangimento em ambiente de trabalho por
aquele moleque a apresentar seus resultados e a exigir algum presente.
Primeiro, franzia o cenho e dizia “não fez mais do que o seu dever”. Depois
sorria, metia a mão no bolso e da surrada carteira tirava algum dinheiro para
que eu fosse até a “Quatro e Quatro”, fazer um lanche, o que era uma grande
novidade. Como era bom. Sei perfeitamente que o tempo passa e a garotada de
hoje deve ter outras prioridades, mas quanto a mim, sinto a tristeza por ter ficado
velho e com tantas responsabilidades. Aproveitem, tenho vontade de dizer.
Aproveitem.
sexta-feira, 11 de novembro de 2016
FRANK SINATRA
Acho
que a primeira vez que prestei atenção em Frank Sinatra foi com “Strangers in
the Night”, grande sucesso. Depois vieram todas as outras. Sim, eu adoro sua
voz, seu charme, os arranjos. Uma vez vi um filme onde havia uma viúva que
matava as saudades do marido ouvindo “It was a very good year”. Talvez seja
essa a que mais goste. Já era no tempo do cd, mas estando em Nova Iorque, fui à
Tower e desci até a seção de jazz. Não sabia o título da música. Cantarolei
para um vendedor velhinho, que rapidamente me trouxe o disco. Ganhou Grammy. Disse
tudo isso para finalmente revelar que fui invadido por Sinatra. Comprei um de
seus últimos lançamentos, gravação ao vivo no Sand’s, Las Vegas, com Quincy
Jones nos sopros e Count Basie ao piano e orquestra. Na época, estava lançando
“The Shadow of your Smile”, grande hit. Olho para a estante e vejo, enfileirados,
Sinatra – o chefão” e “Frank Sinatra – A Voz”, de James Kaplan e “Sinatra”, de
Anthony Summers, livros grossos, com tudo sobre a vida do “old blue eyes”.
Pensei se encarava quando caiu no colo o documentário “All or nothing at all”,
que passa no Netflix. Preguiçoso, preferi a tela. Repleto de depoimentos, cenas
de bastidores, shows e fotos, em dois capítulos, cada um com duas horas de
duração, dá realmente toda a idéia da grandiosidade de sua carreira. O garoto
de Hoboken consegue um lugar com Benny Goodman, atravessa para a orquestra de
Tommy Dorsey e se torna o ídolo do público feminino. Fez filmes bobos, mas de
sucesso. Casado, mas sempre viajando, tem várias namoradas. A principal, Ava
Gardner, belíssima e geniosa. Viviam às turras. Vai em uma espiral que combina
com drogas e bebida. Ninguém mais queria sua companhia. O filme nega a cena do
“Poderoso Chefão”, que vai até Harry Cohn e diz a famosa frase “gonna make you
an offer you can’t refuse”, para que contratasse Sinatra. Se foi mentira, Ava
disse que também pediu por ele. Pois foi bem, ganhou até Oscar. E agora assinou
com a Capitol. Ressurgiu e as ligações com a Máfia (negadas) o levaram a ser um
dos fundadores de Las Vegas, onde fez shows e recebeu convidados. Com Dean
Martin e Sammy Davis Jr formou o “Rat Pack”. Foi muito próximo de John Kennedy
e sua morte o abalou. Veio o rock e ele foi levado de roldão. Animou novamente,
viajou, esteve no Brasil, cantando no Maracanã para sua maior plateia (o filme
não conta), chamou Tom Jobim e criou uma gravadora, Reprise. Nelson Riddle, seu
melhor arranjador, dizia que era Sinatra quem criava tudo. Ele dava o apoio e arredondava
as idéias. Também apareceu Mia Farrow em sua vida. O cara gostava de uma
confusão. Ficou careca, botou peruca e foi adiante. Fumava e bebia em cena,
embora, duas semanas antes do show, parasse com tudo. Um profissional. Um
solitário, principalmente depois do período de baixa em que raros lhe
estenderam a mão. Abandonou a carreira. Dois anos depois, lá estava de volta. E
veio com “New York, New York”, que nem precisa apresentar. Além da citada lá no
começo, gosto de ouvi-lo cantar “I’ve got you under my skin. Dos filhos, Nancy
teve um brilhareco com “These boots are made for walking”. O Jr ainda está por
aí, cantando o repertório do pai. Quando morreu, teve enterro de rei. “The
Voice” ou “old blue eyes” é eterno. Quando era criança, meu irmão Edgar ganhou
o disco com a trilha de “High Society”, um luxo com Frank, Bing Crosby, Louis
Armstrong e a futura rainha de Mônaco, Grace Kelly. Um luxo. O maior cantor de
todos os tempos? Não sei, mas seguramente passa perto.
sexta-feira, 4 de novembro de 2016
PARA CAIO FERNANDO ABREU
Primeiro decidi chamá-lo por “Rino”. Depois, simplesmente
por “Ri”. Foi uma manhã em que acordei meio fora de hora, e me deparei com
aquele animal gigantesco, me olhando com aqueles olhos melancólicos. Lógico,
levei um grande susto. Pensei que era um pesadelo. Não me perguntem como, mas
nos comunicamos. Ainda não sei se realmente falo com ele e o escuto. Ou se é
telepatia, coisa que nunca imaginei poder fazer. Ele também não sabia o que
estava fazendo ali. E não havia como sair. Era grande demais para passar pela
porta. Pelo corredor. E ir embora para onde? Deveria chamar os bombeiros? O
Museu Emílio Goeldi? Ele me acalmou. Devíamos lidar com a situação. Era
necessário dar-lhe um banho. Arredei a cama, busquei um balde, gastei duas barras
de sabão. Precisava ir trabalhar. Antes, deixei leite, no balde, claro, para
ele tomar. Depois, pensaria no que fazer. Claro que não disse nada a ninguém.
Poderiam me encaminhar a um psiquiatra, no mínimo. Quando voltei, ele disse que
estava com câimbras. Era difícil ficar naquela posição, meio deitado, de lado,
entre o guarda roupa e a cama, o dia inteiro. Perguntei o que comia. Qualquer
coisa. Então lhe fiz uns sanduíches. E agora? Havia a faxineira que trabalhava
às quintas. Era quarta. Ele não parecia ter idéia da estranheza daquilo tudo.
De ser algo estranho, bizarro, ali. Queixou-se do calor. Liguei o ar
condicionado e ele suspirou, feliz. Levei a tv para lá e gostou, embora
parecesse enfadado com tantos humanos na tela. Sei. Conversamos, e chegamos à
conclusão que era necessário emagrecer. Precisava passar pela porta, tomar
banho, andar pelo apartamento. No fundo, eu manobrava para, um dia, ver-me
livre dele. Optamos por uma alimentação light, leite desnatado, nada de massas
e muita salada. Assim, em poucos dias, já se movimentava melhor, até que saiu
do quarto e embora um pouco espremido, atravessou o corredor até a sala. Ida, a
faxineira, assustou-se no início, mas depois se apaixonou. Preparei seu
banheiro com chuveiro particular, desses com vários jatos de ducha. Imagino que
no verão deva sentir mais calor que o normal. Mas leva vida boa. Quando saio
para trabalhar, já está na sacada, tomando sol, de óculos escuros, tomando
laranjada com adoçante. É um ótimo ouvinte. Conversamos por horas, quer dizer,
fora o tempo em que ele está dedicado a assistir ao Discovery Channel. Um
esnobe, o Ri. Tem até facebook. Ri não sai de casa. Não sei se o velho elevador
agüentaria seu peso e ele também tem muito medo do trânsito. Acha que ninguém
respeita a faixa de pedestres e se aborrece com os milhares de ciclistas na
contramão. O jeito foi comprar uma esteira, do maior tamanho, para ele se
exercitar. É meu grande amigo. Aquele corpo gigantesco e seu casco duro, sua
estética, como um animal pré histórico que permaneceu na terra, após todos os
seus semelhantes desaparecerem, esconde, na verdade, um cérebro ágil, moleque,
ladino, inteligente. E seus olhos melancólicos tentam disfarçar a vontade de
ser bípede, leve, livre, comum, talvez. E eu lhe digo que talvez essa seja sua
grande qualidade. Não ser comum. E exigir, dos amigos, a descoberta de tudo de
bom que ele guarda na alma. Ter a coragem de furar aquela casca grossa e
encontrar alguém tão receptivo. Até hoje não temos explicação para ter surgido,
de repente. Ele também não sabe. Como se uma maquina o tivesse sugado de seu
habitat e o despejado na selva de concreto.
Um
dia sumiu. Tal como tinha vindo. Acordei e estranhei o silencio na casa.
Procurei por todos os quartos e nada. Pensei em um acidente, que havia
desmoronado a sacada. Sumiu. Talvez tenha voltado para onde veio. Ou foi surgir
surpreendentemente na casa de algum outro solitário, como eu. Talvez ele fosse
isso. Um preenchimento. Com seu jeito pré histórico, olhos melancólicos, seu
casco grosso. Mas ágil, inteligente, compreensivo e sobretudo, bom ouvinte. O
vazio que havia antes, não voltou. Agora tenho mais facilidade em me relacionar
com outras pessoas e procuro namoradas com algo mais a oferecer, como amizade,
companhia, cultura e inteligência. E também não me isolo, não me deixo como um
casco grosso, impossível de ser alcançado. Quando sinto que a solidão pode
chegar e se instalar, lembro do Ri, tomo um banho, visto uma roupa e vou à
procura de amigos. Sei que, onde quer que ele esteja, pensa em mim. E eu nele.
Edyr
Augusto
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