sexta-feira, 28 de julho de 2017

A VOZ DOS OLHOS

Sempre tive a impressão de que Elza Lima já tinha nascido com uma máquina fotográfica nas mãos. Já a conheci alerta, perspicaz. Um olhar que procura o tempo todo pelo quadro definitivo. Conversa com a gente e o olhar passeia em volta, quem sabe, de repente, talvez pense. 
Uma das grandes fotógrafas paraenses, veio no pioneirismo de Miguel Chikaoka e da Fotoativa. Em algum lugar vi fotos em preto e branco, que me conquistaram. Algumas estão aqui neste livro da “Coleção Ipsis de Fotografia Brasileira”, lançado no ano passado e não suficientemente promovido aqui entre nós, o que não é novidade, com tantos torcendo, oficialmente contra, nossa Cultura. 
A foto “O Encantado”, feita em Capanema, 1992, é linda, bem como a “Rio Trombetas”, de 1997. São incríveis, como é ressaltado nos comentários e entrevista com ela, no livro, os numerosos planos a cada foto, a impressão que o quadro ainda era bem maior, excedendo os limites, convidando-nos a imaginar. Os cortes, nada convencionais e, principalmente, o olhar. Como ela diz, a voz dos olhos. 
A imaginação foi excitada ainda criança, pelos avós em incontáveis viagens pela Amazônia, esse mundo de possíveis e impossíveis, mundo em movimento, exercendo a cada instante fascínio sobre quem olha, sobre a voz dos olhos. 
Elza conta que muitas vezes espera. Olha, foca e parece faltar alguma coisa, que vem em seguida, absolutamente inesperada ou, diria, esperada, como se fosse a parte do quebra-cabeças necessária para compor o ideal. A convivência maravilhosa entre o homem, a natureza e os animais. O olhar de esperteza, ironia, do caboco, fotografado. Ou o homem forte, que encara uma iemanjá pintada na parede do bar. O garoto negro, todo ensaboado, tendo atrás de si vários outros planos, outras leituras. 
Nesse período, dos anos 1980 aos 1990, Elza fotografou em preto e branco, lembrando da ilha dos daltônicos, onde as pessoas viam tudo sem cor. A textura das asas de anjos nas crianças, nas procissões. A Santa, sentada em um banco corrido, circunspecta como uma imagem, tendo ao lado senhores com suas melhores roupas, respeitadores, uma corte, uma escolta à santidade. 
Sou um comum. Não tenho grande conhecimento técnico de fotografia. Acredito na força do olhar. Na poesia. Na voz dos olhos e a imaginação. Penso que a criação de Elza foi parecida com a minha, livre, inteiramente livre para imaginar e fazer o que quisesse. A leitura dos livros. Ouvir a música por trás da música. E olhar para o mundo com interesse genuíno. O que há para olhar de verdade? A vida. As pessoas. Como a natureza nos afeta. Pessoas simples, vivendo seu mundo perfeitamente integradas. 
Como diz Eder Chiodetto, a fotografia de Elza é irrequieta, indomável, passando por cima das convenções para obter a verdade. Fotografando uma Amazônia multicolorida, ela ousa procurar essa verdade nas fotos em p&b. “A Amazônia é muito imagética. Você vê o rio e uma árvore escondida. Daí passa um bicho, passa um homem. Não é tão linear quanto uma cidade construída; ela é feita de entremeios, de sombras... Acho que as pessoas que vivem na Amazônia têm essas nuances. É um treinamento do olho, natural de quem vive lá”. 
E essas pessoas nos olham, indagam. A foto de um menino. Ele parece quer saber o que há por trás daquela câmera que o foca. O caboclo que parece fazer troça. O casal que se beija na boca enquanto os outros contemplam. Belo livro. Que venham outros. Gostaria que o procurassem. Talvez na internet. Será que a Fox traz por encomenda? Vale a pena

sexta-feira, 21 de julho de 2017

O MELHOR LUGAR DO MUNDO

Assisti ao filme “Divinas Divas”, de Leandra Leal, apresentando famosos travestis e suas vidas, após longos anos sob holofotes. O resultado é muito bom, mas confesso que o que me tocou realmente foi o Teatro Rival, ali na Cinelândia, Rio de Janeiro, deixado pelo avô de Leandra e que ao longo do tempo tem permanecido vivo, apesar de todas as crises e concorrência. Seus bastidores, camarins, o palco nu ou já com cenário, mas ainda vazio, momentos antes da abertura das portas para a entrada do público. Se vocês soubessem da vida intensa que existe ali, nos bastidores! Para mim, um teatro é um templo, uma igreja. Para pisar no palco e nos bastidores, há de haver respeito por tudo o que representam. Lembrei do Teatro Cuíra, levado a ferro e fogo, sem ajuda dos órgãos de Cultura do Estado e Município, geridos, há tempos, por ignorantes irritados pelo teatro continuar existindo apesar deles. A epopeia, a luta desigual levou nove anos. Nove belíssimos anos, com grandes espetáculos, mas principalmente, uma vida interna gloriosa. O primeiro dia, quando o elenco se reúne, nos bastidores, em torno de uma mesa, nas poltronas, com o diretor no palco, definindo as primeiras tarefas. As sessões de leitura de texto. As primeiras movimentações, estudos de iluminação, os cenários sendo levantados, figurinos testados, a trilha sonora sendo composta. Principalmente, os atores vestindo, aos poucos, aqueles personagens, trocando ideias. No teatro, tudo se discute. O resultado é absolutamente coletivo. Me deu saudade. Um aperto no coração. E vem o dia da estréia. Há um público lá fora. Ouvimos seu burburinho. Atores terminam a maquiagem. Outros se alongam. Fazem exercícios vocais. Discutem as últimas situações. Iluminadores e sonoplastas estão em suas cabines. Fazemos soar a primeira campa. Alguns olham por algum furinho, através das cortinas, tentando reconhecer alguém. Ouvimos alguém rindo de alguma piada. Vem a segunda campa. Todos reunidos, mãos dadas, até o famoso grito de “merda”. Estamos prontos. Corações acelerados. Agora, apresentaremos o resultado de dois, três meses de ensaios. Somos uma família. Durante aquele tempo todo trocamos opiniões, fazemos confissões, reavaliamos nossas crenças. Alguém avisa que aguardará mais alguns minutos porque ainda há público entrando. Um fica em frente à parede, murmurando prece. Outro silencia. Aquele vai ao banheiro para um último pipi. Nos abraçamos, nos beijamos. As ferragens estão expostas. O piso é gasto. Nas paredes dos bastidores, reflexos de outras montagens. A mesa de maquiagem é improvisada. Em instantes eles estarão no palco e serão outras pessoas. A mágica é feita ali, frente ao público. Tudo é possível. As pessoas nào têm idéia como tudo foi ensaiado, cuidadosamente, para que pareça natural. Fechamos o teatro. Uma tristeza imensa. Ninguém veio nos salvar. Talvez tenham festejado. Retirar as poltronas. Desmontar o palco. As ferragens. Som, iluminação. De repente, um vão livre, um vazio. Um vazio nas nossas almas. Eu via e ouvia um mix de tudo o que se passou. As palmas, os risos. Atores dizendo textos. O caminhão partiu com as poltronas, doadas a uma igreja na periferia. O silêncio. Lá fora a cidade em sua correria. Ali dentro, personagens me perguntavam por quê? O silêncio era a resposta. O uivo do vento entoando uma canção triste. Mas o Teatro vive. Agora estamos em uma casa. Estamos, inclusive ensaiando. Vivendo novamente o processo. O melhor lugar do mundo está nos bastidores, antes de soar a terceira campa. Garanto.

sexta-feira, 14 de julho de 2017

BÁRBARA, BELA, TELA DE TV

A imagem transmitida para os mais diferentes receptores, a realidade transportada, a imagem inventada chegando até nós, se apresentando e se impondo, ficando gravada em nossas mentes, não diminuindo a capacidade de imaginação, ao contrário, aumentando, até colaborando, de alguma maneira armazenando, inclusive em quem não tem acesso à alfabetização, os fatos culturais. Quem será o dono das imagens? A quem interessa transmitir esta ou aquela imagem, manipulada ou não? Influir na opinião pública. Criando mocinhos e vilões. 
Londres é talvez a cidade mais vigiada do mundo. Todos são filmados nas ruas, recintos fechados, públicos - quem sabe também em privados? Razões de segurança. Em Belém, políticos usam imagens para mostrar que estão trabalhando bem, embora todos discordem.
É possível sobreviver em Brasília sem se envolver com irregularidades? Milhares de imagens, todos os dias. O que assistimos é a realidade? Ou é uma dança coreografada diariamente para nosso deleite? Olhos rútilos garantem honestidade. A falta de investimento em Educação e Cultura, a deterioração do tecido social, trocado pela sobrevivência diária. Quem lê jornais? Quem lê análises políticas? Quem lê tanta notícia? Nossas autoridades são mestras na dissimulação frente às câmeras. Não sabem, não viram, mas vão mandar apurar rigorosamente. Há um descompasso entre a imprensa, como tambor da sociedade, e a verdade anunciada pelos políticos, que parecem, hoje, atuar apenas para evitar que sejam descobertos em ações ilícitas. Qual será a verdade?
Há como que realidades superpostas. Diariamente, no “Jornal Nacional”, há cobertura da ação policial no Rio de Janeiro. Ou em Belém. Soldados camuflados, com armas pesadas e postura de guerra, escondem-se nos becos, apontando, procurando inimigos. Como nos filmes. Na mesma cena, despreocupados, moradores, homens, mulheres e crianças passam pra lá e pra cá, na sua azáfama diária. Lojas, casas, ambulantes, mais soldados. Como realidades superpostas. Como se filmados separadamente e depois sincronizados. A guerra de uns e outros, diferente da outra guerra, a da sobrevivência, à margem, criando outra sociedade, sem controle, a sociedade do descontrole, onde o lema é sobreviver. E os corpos empilhados, crimes sem solução. 
E nessa sociedade tudo é pirata, como uma sociedade cover, sociedade falsa, com outro padrão. É pirata porque não tem dinheiro para ser a verdadeira. Porque, ao contrário de morrer, desaparecer, luta para continuar viva e se reinventar a partir do instinto de sobrevivência. Não há Cultura ou Educação como conhecemos. Uma nova escala de valores é criada. A vida e a morte na TV. Está na imagem e a mídia, tem fome. A sociedade imagética. A sociedade espetáculo tem fome. A quem vamos devorar nesta semana? 
A nós não basta desnudar as pessoas em seus 15 minutos de fama, naquilo que representa sua vida, sua ação profissional ou particular. Queremos tirar-lhe a roupa, escanear poro por poro de seu corpo. Queremos ver sua vagina, seu ânus, saber se é depilada, se as fotos precisaram de Photoshop, se os seios têm silicone. Devoramos seu corpo e, após o gozo, queremos mais. Nos faces e instas, maridos expõem suas mulheres em ação que visa, com o exibicionismo, a excitação. O espetáculo. Pageviews. Ou aquela mulher, que como Jabor diz, é apenas uma bunda. Como é seu nome? Bunda. Em todas as telas. Das menores às maiores. Editadas ou não. Soa um ruído. Todos os olhares voltam-se para as telas. Está tudo na bárbara, bela, tela de tv.

sexta-feira, 7 de julho de 2017

AOS MEUS PROFESSORES

Acabo de assistir a uma reportagem na televisão sobre professores inesquecíveis de cada um de nós. Não conheço profissão mais nobre. A importância de alguém que nos ensina as primeiras letras, a escrever e ler. Tive ao longo da vida professores de fundamental presença e aproveito o mote para lembrar deles. Aos oito anos, meus pais conseguiram que Beatriz Kup, filha do cônsul da Inglaterra, quinze ou dezesseis anos, me ensinasse a falar inglês. Além de linda e inteligente, ela me passou o fascínio da Língua, embora a tenha feito passar vergonha. Em uma recepção, apresentou-me ao pai que, brincando, perguntou “How do you do”, ao que respondi, encabulado, “ainda não dei isso”. Cinquenta anos depois a reencontrei, com a mesma beleza e vivacidade. Parecia um encontro marcado. Semanas depois, repentinamente, faleceu. Estudei o Primário no Colégio Suiço Brasileiro. Lembro pouco. Mas no Colégio Nazaré fiquei até seguir para a Universidade. Logo no primeiro dia de aula, aprendi todos os palavrões que sei até hoje. Mas também aprendi muito. Não esqueço de alguns Irmãos, sobretudo Irmão Machado, nordestino, que criou um Clube de Leitura. Fiquei encarregado de ser um dos redatores do jornal “O Caminho”, impresso em mimeógrafo. Após as aulas matinais, voltava à tarde para reuniões onde aprendia Educação Sexual, Leitura e discutíamos Religião. Confesso que minha assiduidade era devida ao futebol que jogávamos ao final das discussões, mas sei, que toda a reflexão feita sobre os assuntos, me fizeram ser quem sou, hoje. Havia o querido Irmão Afonso, alemão que diziam ser vítima de guerra, o que nos dava curiosidade e um certo medo. É uma pessoa doce, adorável, ainda hoje com uma legião de amigos, ex-alunos. E os professores? Havia o Camarão, de Língua Portuguesa, excelente, boêmio, às vezes dando aula com muita ressaca. O Padre Tocantins, figura ao mesmo tempo engraçada e complicada. O professor Gabriel Leal, adiante, parceiro de jogos de futebol, que tocava em uma eletrola “My Bonnie” e caminhava pela sala, cantando. O professor Manoel Leite, apaixonado por sua matemática. Professor Nogueira, de Química Mineral de quem me tornei muito amigo, mesmo que faltasse, com outros, às suas aulas, para jogar futebol. O Irmão Porfírio, preocupado que não estudássemos demais e chegássemos ao Vestibular cansados. Lembro então de uma das pessoas mais importantes da minha vida, meu amigo Abílio Cruz, que estudava dando aulas para nosso grupo de estudo. Um professor, adiante, no Curso de Engenharia da Ufpa. Foi-se muito cedo e até hoje deixou uma lacuna enorme nos nossos corações. Mas quero prestar homenagem, principalmente ao professor Edson Berbary. Sua cadeira era Português. Embora eu já devorasse todos os livros de aventuras de capa e espada da biblioteca de meu avô, ele dividiu nossa turma em grupos, oferecendo livros de autores brasileiros diversos para que lêssemos e fizéssemos um trabalho a respeito. A mim coube “Menino de Engenho”, de José Lins do Rego. Meu avô emprestou-me. Havia uma dedicatória do escritor para ele. Li em seguida os outros dois livros e isso despertou em mim, definitivamente, a leitura, a reflexão e nunca mais parei. Berbary também estava sempre conosco em acantonamentos, projetos, diversão. Com sua inteligência, sua postura, sua integridade, é um Professor com “P” maiúsculo, que nunca vou esquecer. Muito obrigado. Há alguns bons anos atrás, também dei aulas no Curso de Jornalismo na Ufpa. Confirmei a importância da missão. Não há nenhuma profissão mais importante. O meu agradecimento a todos eles que me fizeram ser quem eu sou, hoje.