sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

CORRERIA

Acordo com o som irritante do despertador. O quarto está escurinho, friozinho. Penso em dormir mais um pouco. Tão gostoso. Ah, ninguém vai morrer se eu chegar um pouco tarde, hoje. Não posso. Há cheques para assinar, tarefas a cumprir. Pessoas aguardando comandos. Faço a higiene matinal, visto-me rapidamente. Pra quê tanta pressa? Rápido estou na banca pegando os jornais. Todos. É preciso saber tudo o que acontece. Troco duas palavras com o jornaleiro. Tenho pressa, vou trabalhar. Falo com tomador de conta de carro, engraxates que me perguntam se desta vez nosso time vai vencer. A resposta é a mesma. Na portaria, aguardo o elevador. Penso em tomar a escada. É chato esperar elevador. Assino cheques, delego serviços, leio jornais, ligo o computador. Checo facebook, aniversários, declarações e os costumeiros haters. Leio jornais de fora pela internet. Cumpro tarefas. Volto aos jornais e blogs. É preciso saber de tudo. Caiu um elevado em Brasília. Ligo a tv. Acompanho. Cumpro minhas tarefas. Acabo de ler jornais no computador. Saio para almoçar. Vou cedo porque assim o restaurante ainda está vazio e encontro mesa fácil. Chego rápido. Como rápido. Aproveito o espaço de tempo e resolvo ir à livraria. Pode ter chegado algum livro que preciso ler. Há muitos carros circulando. Há mais carros que ruas. É horário de saída ou entrada de alunos nos colégios. Buzinas. Bikes na contramão. Motos cruzando a frente. Fila dupla. Fila tripla. Também buzino. Tenho pressa. Que pressa? Olho o relógio. Penso que até chegar e voltar da livraria posso me atrasar. Não me interesso por nenhum dos livros novos. Há algum filme lançamento? Mas quando vou assistir, se hoje há jogo na televisão? Antes, tenho uma leitura dramática, tenho a namorada. Estamos todos com muita pressa, afoitos, ansiosos. Temos fome de consumir tudo. Todos os dias há jogos na tv. No Brasil, na cidade, no mundo. Não há tempo. É preciso ter tempo. Entro no carro. Ligo o som. É no carro que ouço minha música. Pesquiso e sei o que saiu e o que me interessa. Quando não há novidade, ouço os antigos. Vou andando até o trabalho e ouço nos fones mais música. Há tarefas a cumprir, textos para criar e escrever. Sinto falta daquela roda de amigos que se reúne, todos os dias, fim da tarde, para jogar conversa fora. Hoje, quando nos reunimos, o papo dura até soarem os celulares. Há tarefas a cumprir e cada um vai pro seu lado. Conversamos mais pelo zap zap. Meu grupo de amigos dos tempos de colégio é intenso. Um envia mulheres nuas e maravilhosas. Outro, em seguida, uma oração e a imagem de Nossa Senhora de Nazaré. Normal. Checo facebook, zap zap, e-mails. Desligo a tv porque a cobertura em Brasília já acabou. Odeio mas vou à academia. Som alto, pessoas conversando aos berros, jovens marombados passando como em uma catwalk. Ninguém tem tempo para instruções. Faço meus exercícios e escapo. Em casa, ligo a tv e passa um jogo na Inglaterra. No canal de notícias, a lava jato segue. Prefiro o jogo. Checo e-mails. Tenho pressa. Por isso achamos que o tempo está passando mais rápido. É muita coisa para processar. Tenho livro novo para ler. Bom, lerei depois de mais um capítulo de uma das séries que acompanho. Seria melhor ver todos os capítulos de uma vez, a madrugada inteira? Em cenas mais lentas tenho vontade de teclar Fast Forward. Tenho pressa. Todos passam correndo. Uns pela saúde. Outros pela pressa. Pressa para o quê? Correm para onde? Chegar primeiro onde? Penso que quando me aposentar, acordarei e pensarei no que farei naquele dia. Será que me aposentarei? Somos todos muito sós, vivendo essa pressa. Fechados nos carros, ouvindo fones, cabeça dobrada vendo celular. Olho o relógio, hora de dormir. Deito, fecho os olhos e durmo. Amanhã, repete tudo. Corro para quem?

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

CELESTE CAMARÃO PROENÇA DISSE ADEUS

Minha mãe faleceu. Prestes a completar 96 anos de idade, Celeste Magno Camarão Proença despediu-se de nós pouco depois das duas da tarde da segunda feira passada. Penso em tudo o que uma pessoa, nessa idade, viu em toda sua vida. Nasceu alguns anos depois da Primeira Guerra, da Revolução Russa, com alguns inventos surgindo. Filha da nobreza marajoara de Muaná foi irmã, entre várias outras, de Adalcinda Camarão, a grande poeta. Jovem, circulava no meio cultural como cantora, destacando-se quando passou a ser crooner de um conjunto chamado Bando da Estrela. Um de seus integrantes, Edyr Proença, tornou-se seu marido. E aí veio a Segunda Guerra Mundial, mais inventos e os filhos chegando. Cinco filhos. A cantora se tornou a grande mãe, assumindo crianças bastante danadas, envolvendo-as com a Cultura, através da poesia, da música, do teatro. Para aguentar o rojão, o pai tinha vários empregos e ela cuidava da retaguarda. Inventou até um jornal semanal que circulava com as aventuras da casa. Havia expedições à casa no Lago Azul, que àquela época parecia muito distante. E ali inventava de uma tribo de índios com um pajé que fazia mágicas incríveis. Ou então as expedições ao Mosqueiro, pelo Presidente Vargas, onde chegava levando a turma, com malas especiais, como aquela em que havia escrito “Farmácia”, muito importante, com moleques tão levados. Íamos à Ilha dos Amores e ouvíamos poemas. Nós adolescemos e os pais, também. Meu pai, antes tão assoberbado de trabalho, agora tinha mais tempo e retomou o violão. Ela retomou o canto. E tocavam, cada um dos filhos precisava cantar algo. Imagino a paciência deles, comigo. Comecei a compor letras e dar ao pai para musicar. Ela completava. Os dois saiam pela noite, circulando na casa de amigos em longas noites de seresta em que cantavam não somente clássicos, mas músicas de sua autoria. Quando cantava, sua voz tinha os volteios de uma Carmen Miranda, como estilo, o que era cheio de charme. Também compunha, letra e música. Publicava poemas amazônicos em A Província do Pará e Diário do Pará. Lançou dois livros, um deles dedicado ao primeiro neto, meu filho, Felipe Augusto. Participou de associações de escritoras e jornalistas. Mais do que tudo, reinventou-se. Os filhos casaram, bateram asas e ao invés de ficar jururu pelos quartos vazios do apartamento, tornou-se uma das mais elogiadas professoras de Redação para Vestibular, da cidade. Um sem número de jovens passou por suas mãos e até hoje lembram dela com carinho. Mais do que simplesmente ensinar as regras gramaticais, ela tinha o talento de puxar de cada um deles, a vontade de se expressar corretamente, em um aprendizado cuja vitória no vestibular era só um detalhe, pois essa Cultura, levamos para a vida toda.

A mim, deu-me tudo. Toda a imaginação que me fez escrever livros, peças teatrais, músicas, enfim, tudo, veio dela. De suas palavras, sua imaginação, seus sonhos de grandeza, talvez sem perceber que seu maior mérito, seu grande galardão foi criar cinco filhos naturais e depois, centenas de “filhos” que chegaram nervosos, temerosos à sua sala de trabalho e saíram para vencer no mundo. Isso não tem preço. E como disse no início, imagine tudo o que ela viu. Televisão, computadores, aviões a jato, foguetes para a lua, internet, ufa, Celeste, você foi demais. Como você brilhou! Você estará comigo, em meu coração, para sempre. Afinal, eu nunca passarei de ser o seu Kuí de farinha. Tudo o que faço, fiz ou farei é para você. Não quero outra coisa na vida.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

CEMITÉRIO DE VIVOS

O que aconteceu conosco? Nosso país vive um de seus piores momentos. Sempre achei que nossa mistura de raças era positiva e ao longo do tempo seríamos uma terra onde todos gostariam de viver. Ao contrário de alguns países que investiram em Educação e hoje já confirmam enormes melhoras na qualidade de vida, permitimos que a política, após a volta da democracia, se voltasse contra nós. Elegemos bandidos que, a partir de eleitos, passaram a pertencer a outro mundo, na capital, Brasília, onde disputam jogos de poder e enriquecimento ilícito. O resultado estamos vendo. 
Como escrevo para minha aldeia, não posso deixar de pensar no Pará. Em Belém. Todos os nossos números são baixíssimos, quando deviam ser altos; altíssimos quando deviam ser baixos. O Pará é potencialmente o estado mais rico e economicamente um dos pobres. Nosso tecido civilizatório está esgarçado, quase rasgando. A barbárie impera. Em todas as atividades, a corrupção é meio de sobreviver ao mercado. Liquidaram com a Cultura. Com as câmeras de segurança, assistimos diariamente a assaltos, sequestros, assassinatos, toda sorte de violência, feita com tranquilidade e autoridade. Não há o menor receio da Polícia. As pessoas que passam ao lado desviam o olhar, certas que se manifestarem qualquer gesto também serão atingidas. 
Há um egoísmo brutal nas classes mais favorecidas, construindo para si torres cada vez mais altas, onde vivem com grande luxo. No entanto, ao saírem em seus SUVs, trafegam em ruas de lama, buracos, sentindo-se mais seguras apenas por terem blindagem. Viajam pelo mundo, passeiam, desfrutam e, quando voltam, não trazem nada para a comunidade, somente para si. 
Grande parte da população, diariamente, é massacrada, humilhada, ao utilizar os meios de transporte, indo ou voltando, na região da Augusto Montenegro. Nestes dias de grandes chuvas, a cidade enche, a água invade as casas levando doença, desespero e prejuízo. 
De um lado, uma Prefeitura que não está nem aí para a população. De outro, o resultado dessa soma de desastres. Some a falta de emprego, alimentação, escolas, cultura, violência e o descaso das autoridades, e terá um povo conformado. Um povo que joga lixo nos piores lugares, como se suas casas, sua saúde, não fossem as primeiras a ser atingidas pelo caos e doenças resultantes. 
Não sei o quanto mais baixo deveremos chegar. É a ignorância. Retrocedemos. A selva invadiu a cidade, tomando de volta seu mundo, selvagem, onde a lei do mais forte impera. Já temos mortes diárias suficientes para rebaixar a nada muitos lugares que estão em guerra. O tráfico dita as leis. Os donos de ônibus, vans, táxis e motos também. Agora acabaram com o carnaval. A classe média inventou de brincar na Cidade Velha. Não se preocupou em perguntar se os moradores gostariam. Um caos. E quando deviam brincar o carnaval, nos próximos dias, viajam todos para Salinas, Mosqueiro ou Miami. 
Liga e Prefeitura agem contra o carnaval, humilhando a Cultura, segregando as escolas de samba a um trecho de rua invadida pela água. Antes, propositalmente, deixaram a Aldeia Amazônica apodrecer. Ódios pessoais que, mais exatamente, são contra o povo, contra a cidade. Enquanto todos ganham dinheiro em impostos e comerciantes com vendas, nos dias da festa Belém vira um cemitério. Um cemitério de vivos, se me entendem. 
Se o Brasil vive um momento terrível, sem saber o que virá, o Pará está pior ainda - e Belém já nem sei mais. As cidades, hoje, são organismos, sistemas complexos de administrar. Não podem estar entregues a políticos, principalmente nossos políticos incompetentes, despreparados. Eles continuam agindo tranquilamente e nós assistindo, conformados. O que os cabanos dizem, lá de cima, olhando para nós? Égua do povo frouxo.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

GARRA, MUITA GARRA

Juscelina e a mãe sempre sonharam com aquele concurso de fantasias no carnaval. Mas tudo às escondidas do pai que morria de ciúmes da filha. Soube de um rapaz que indicava candidatas aos clubes. Era chegado o momento. Não podia esperar mais. Tiraram o dinheiro da poupança. Pagou por um book com fotos. “Sem book eu nem começo a trabalhar”, disse o rapaz. Foi aprovada. Uma comissão do clube foi à sua casa, pedir permissão. O pai deu um show no início, mas depois, foi docemente convencido, após a promessa de uma ação de sócio do clube. O namorado foi mais difícil. Preferiu terminar. A mãe adorou. Ele poderia atrapalhar logo no início da sua carreira. Se dá problema agora, imagina mais tarde. O estilista veio com uma fantasia da fada que reinava sobre a Estrada de Ferro Bragantina. Ela protegia os viajantes. “Mas eu nunca ouvi falar que tinha trem em Belém..” Mas tinha. O coreógrafo queria uma estilização entre carimbó e funk. Uma luta. A menina gostava de sertanejo. Agora aprende carimbo. Tu não és daqui? E funk, basta esfregar a bunda no chão. Isso tu sabes muito bem.. O que tu precisas, minha filha, é garra, muita garra! No dia do concurso, no camarim, aguardavam o estilista com a fantasia e os últimos retoques. O tempo foi passando e nada. Celular fora de área. Essa biba me paga! Faltava uma hora! Chegou. Mas espera aí, esse trem com essa maria fumaça vai passar pelas costas de um braço a outro? Vai ser um choque, mana! Os jurados vão enlouquecer. Espera aí, tem de carregar essa bateria pesada, também? Te concentra, pensa nos flashes, pensa no prêmio, jornais, pretendentes cheios de dinheiro e carinho pra ti, mana. E vai! Ligaram a bateria e o trenzinho se movia com luzes piscando. Quando vestiu, deu um gemido profundo. Garra, minha filha, esse é o meu, digo, nosso grande momento! Foi pra isso que eu te criei! Vai lá e arrebenta! Quando a gente voltar com o prêmio vamos pisar na cara daquelas invejosas da rua! Gemendo, pisou na passarela. Tentou voltar. Não. Manteve o sorriso nos lábios, mas os olhos lacrimejavam. Tentava executar a coreografia, mas o peso não permitia. Olhou, buscando socorro para os bastidores, mas lá estava a mãe repetindo Garra! Garra! Então começou a sentir choques. A bateria dava choques. Aquilo a fez dar saltinhos. Poderiam pensar que faria parte da coreografia. A biba, lá dentro, gritava que isso não tinha sido ensaiado. Na plateia, diretores e parentes levantavam estandartes, gritavam pela vitória, enlouquecidos. Olhava os jurados por entre lágrimas. Havia, neles, uma curiosidade, não pela fantasia, mas pelo que poderia acontecer. Algo começou a descer pelas costas. O equilíbrio, frágil. A estrada de ferro, com o trenzinho piscando, descendo uma ladeira rumo ao chão. Por um lado tentava trazer de volta à posição. De outro, pulava a cada choque e chorava de dor. Mas foi à passarela atender ao público. Voltou aos bastidores com tudo desmanchando, após negacear duas vezes uma queda terrível. O pai queria agredir o estilista. A mãe, enfurecida. Pensa que é só chegar e ganhar? Tem de sofrer, tem de ter garra! Tu viste aquela pequena com o Teatro da Paz nas costas? Se ela aguentou, tu aguentas! Volta lá e ganha essa porra! Tira a bateria e as luzes! Mas é o meu resplendor, gritou a biba. Nào deu. Na volta pra asa, o pai dizia que tudo era carta marcada, que a filha merecia ganhar. Sabe de uma coisa, vamos viajar e relaxar em Fortaleza. Silêncio. A mãe olhou para a filha, a filha olhou para a mãe. Choraram mais.