sexta-feira, 24 de junho de 2016

A CONTADORA DE HISTÓRIAS

Nós passávamos férias no Lago Azul, que na época tinha poucas casas e não era o condomínio de luxo que é hoje. Quando nosso comportamento ficava próximo do insuportável, ela dizia que ia embora, se encontrar com o chefe dos índios que ficavam na curva do rio. Bem, era o lago que lá adiante fazia uma curva. Somente. Mas era o suficiente para nos derramarmos em desculpas e promessas de bom comportamento, que certamente não duravam muito tempo. Mas eram as histórias que ela inventava e faziam nossa imaginação voar para longe. Eram os livros que ela lia, dando interpretação especial. Um deles “A Ilha do Tesouro”, tinha ilustrações sombrias, feitas a nanquim. Ela lia trechos, inventava melodias para músicas que os piratas cantavam “por uma garrafa de rum” e de noite, tínhamos dificuldade em dormir, imaginando aquilo tão próximo. E as histórias dos encantados, como a Boiuna, a mítica cobra grande, em uma noite na casa do Mosqueiro, em que os primos tremiam de medo? Os apelidos, a maneira muito pessoal de transmitir aquilo. Outra vez, novamente por mau comportamento daqueles cinco capetas, todos geniosos, ela marcou um dia para morrer. Iria reencontrar o pai, no além. Ao contrário de nos meter medo, disparou nossa curiosidade. Contamos os dias para ver o que iria acontecer. Quando chegou, ficamos cercando e perguntando como ia se dar sua ida e o reencontro. Acabou por perder a paciência e botar-nos para correr. Ela é a contadora de histórias. Sua imaginação fértil me fez devorar livros de aventuras, “O Ladrão de Bagdá”, “Ivanhoé”, toda a coleção de Alexandre Dumas, “Robin Hood”, “20 mil léguas submarinas”. E tudo era possível, porque o gatilho da curiosidade já havia sido apertado. Tive uma infância muito feliz porque na companhia de meus irmãos e seu amor, seu desvelo e seu talento. Quando Belém fez 350 anos ela compôs um jingle para um concurso ao qual nunca se inscreveu. Mas não esqueço a música até hoje. Crescemos, batemos as asas e ela se reinventou como professora de Português e sobretudo, Redação. Alunos chegavam com o comentário dos pais na base do “não sei não, mas esse menino não dá pra nada, veja o que pode fazer com ele”. E depois vibravam com a classificação no vestibular. Despertava neles a curiosidade e junto o talento que por qualquer motivo, estava escondido. Retomou, com o pai, que se aposentou, a parceria dos tempos de solteira, em que era crooner do “Bando da Estrela”. E saíam por aí cantando suas parcerias, músicas lindas, várias ainda inéditas e que, certamente, ainda vou conseguir gravar e lançar para que todos possam, também, desfrutar da música e do amor que os uniu. Implicavam um com o outro, claro, mas de repente ela chegava com um verso ou ele com uma sequencia de acordes e logo estava pronta mais uma canção. Lembro dela falando de Adalcinda, a irmã, declamando a “Balada de Monte Alegre”, do alto de um despenhadeiro, o vento nos cabelos, tão linda, tão plena de vida. Tudo isso me fez ser o que sou. Em todos os meus trabalhos em Literatura, Jornalismo, Teatro, Música, em tudo o que faço, em toda a minha vida, ela está presente, porque é para ela que eu vivo e tudo o que faço, depende do seu sorriso, sua aprovação. Celeste Camarão Proença, minha mãe, completou ontem 94 anos. Lúcida, dona de sua vida, continua uma contadora de histórias, uma cantora de sonhos, cercada por seus filhos, netos, bisnetos. Parabéns, minha mãe. O mundo não é suficiente para todo o amor que tenho por você.

sexta-feira, 17 de junho de 2016

A NOITE DO MEU BEM

Meu pai adoraria ler “A noite do meu bem”, editora Companhia das Letras, escrito por Ruy Castro. Teve seu conjunto, inspirado no Bando da Lua e 4 Ases e 1 Coringa. Apaixonou-se por Francisco Alves e Silvio Caldas. Mas o estilo que mais lhe marcou foi o samba canção, que vicejou nos anos 50, no Rio de Janeiro. Conhecia todas as músicas e através dele, fez com que nós, os filhos, também soubéssemos. Seus novos ídolos eram Tito Madi, Dick Farney, Nelson Gonçalves, Elizeth Cardoso, Jamelão e principalmente Lucio Alves. É terrível que nos dias em que vivemos, ninguém mais cante esse repertório notável. Caetano, Gil, Chico, Bethania e Gal ensinaram à toda geração que veio nos anos 60 e 70, essas músicas. Quanto aos artistas de hoje, parece que nada existiu antes de aparecerem com esses arremedos de música que tocam nas rádios e festas de agora.

O livro é primoroso porque traça todo o panorama da então capital do Brasil, Rio de Janeiro, a Cidade Maravilhosa, não apenas musicalmente, mas com vários outros aspectos, inclusive políticos, com os detalhes que envolveram a morte de Getúlio e a chegada de Juscelino. O samba canção, aos poucos, no começo dos anos 50, foi chegando e tornando um tanto mais leve as músicas de então, valsas, polcas, com suas letras trágicas. Havia uma batida de samba mansa, que chegou primeiro às rádios que reinavam absolutas e aos cassinos da cidade. Vieram Angela Maria, Aracy de Almeida, Cauby Peixoto (tendo a roupa rasgada pelas fãs, tudo previamente combinado e as roupas com costuras fracas), Dorival Caymmi com seu charme e vozeirão, Ary Barroso e seu programa de calouros, Herivelto Martins e seu casamento feroz com Dalva de Oliveira. Quando os cassinos foram fechados por Dutra, um enorme número de profissionais foi despedido. Foi então que surgiram os nightclubs que infestaram Copacabana. Casas para 150 pessoas, no máximo, com grupos musicais e grandes cantores fazendo várias entradas. As pessoas iam de uma para outra casa, até o sol raiar. O samba canção baseava suas ações dramáticas na relação homem e mulher. Algumas letras muito trágicas, mas já à frente do que havia antes. Há capítulos especiais para personagens como a fabulosa Dolores Duran, que apesar de problemas cardíacos, era workaholic, bebia e se injetava drogas como se não houvesse amanhã. Um dia, após chegar umas nove da manhã, despediu-se da filha, deitou e não acordou mais. Outro foi Antonio Maria, compositor, jornalista, polemista, sempre às turras com Fernando Lobo (pai de Edu), e que apesar de gordo e feio, fez Danuza Leão apaixonar-se e deixar Samuel Weiner, dono da Última Hora. E não somente música, mas colunistas sociais como Jacinto de Thormes e Ibrahim Sued, Stanislaw Ponte Preta, magnífico, outro que morreu cedo por excesso de tudo, Carlinhos e Jorginho Guinle com suas mulheres estrangeiras duelando pelo brilho na noite. Casas como Vogue, Sacha’s, Night and Day, Golden Room (Copacabana Palace) e tantas outras. Tom Jobim no começo de carreira, tocando piano, conhecendo Vinícius e a partir daí, iniciando a bossa nova a partir do disco “Canção do Amor Demais”, de Elizeth, já com João Gilberto ao violão. Chegou a televisão, Brasília foi fundada, mandando para o planalto muitos dos frequentadores da noite e foi chegando também a moda de boates, com música mecânica. Os artistas foram envelhecendo e surgindo a bossa nova. Puxa, como era bom! Um livro para ler cantando verdadeiros hinos da mpb, cantores inesquecíveis, figuras notáveis de uma época feliz. E Ruy Castro com todo seu talento e facilidade de expressão. Uma beleza.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

TÁ LÁ UM CORPO ESTENDIDO NO CHÃO

Era pouco depois do meio dia. Sol a pino. Na calçada em frente ao Edifício Palácio do Rádio, um pequeno grupo cerca um casal que está deitado. Um homem forte tenta reanimar uma mulher. Pergunto a alguém que me diz que ela parece ter uma overdose. Há três soldados, dois homens e uma mulher, que parecem atônitos. Digo-lhes para afastar as pessoas de perto. Obedecem, mas logo tudo volta ao que era. Chega ambulância do SAMU. Os médicos e atendentes agem rapidamente. O homem levanta e parece também estar aturdido. Tenta evitar que os médicos imobilizem a mulher na maca, para que não se debata. É contido, mas está bem alterado. A mulher tem o olhar esgazeado. Murmura palavras desconexas. Tenta mover-se, levantar-se, mas já está presa. Um dos soldados me diz que era overdose de crack. Penso que junto a isso está a fome. Não pode dar certo. O SAMU age rapidamente e a leva para a ambulância. A multidão se desfaz. Encontrar essas pessoas jogadas ao chão é coisa corriqueira na Presidente Vargas. Há sempre homens e mulheres que parecem dormir um sono eterno, após bebida, droga ou até stress. A avenida principal da cidade está completamente abandonada. Há três enormes prédios apodrecendo sem que nada seja feito. O da Receita Federal, que sofreu incêndio e hoje é frequentado por drogaditos, bandidos e mendigos. O do INSS, na esquina com Manoel Barata e mais adiante, o do antigo Edifício Bern. Suas calçadas são imundas, com excrementos humanos e outros dejetos. Há uma favela na esquina com a Aristides Lobo. Passo por lá diariamente e não posso imaginar a força política daqueles lúmpens que passam o dia jogando cartas, arengando uns com os outros por conta de Remo e Paysandu, com um restaurante nojento que funciona à base do PF. De lá vem um cheiro terrível que empesta o ambiente. Entra governo, sai governo, eles se mantém. E carrinhos que vendem de um tudo. Estão sempre atentos à fiscalização que passa de vez em quando. À noite, na calçada dos Correios, uma multidão se reúne para fumar crack e aguardar grupos de pessoas que levam mingau, outros alimentos e tentam leva-los para a religião. Penso que essas pessoas saem com as almas leves, certas de ter feito uma boa ação. Será? A Polícia tem dificuldade em lidar com isso. São consumidores de drogas. Um problema social. Levar presos? Soltar logo depois? Ou prender justamente os municiadores dessa droga, que é da pior qualidade, misturada em tudo o que não presta? Na Primeiro de Março, esquina com Riachuelo, onde funcionava o Teatro Cuíra, passam o dia aguardando transeuntes para roubar e trocar por uma peteca. A Praça da República, que passa por lenta reforma que deverá ficar pronta às vésperas da eleição é outra chaga na avenida. Capim alto, cercados, excrementos, drogaditos, assaltantes, tudo o que não presta. Mais adiante, à frente das Lojas Americanas, há como que um corredor polonês para quem passa. A crise econômica parece chegar até nesse comércio absurdo e informal. Pelo menos uma barraca dessas que vende refeição, na esquina com a Manoel Barata, faliu. E continuam as pessoas sentadas na rua, se deliciando com pratos regionais preparados e servidos sem qualquer higiene. Nem todos sabem. A Presidente Vargas já foi muito bonita. Logo na subida tinha o Edifício da Booth Line. O Hotel Central, antes da C&A era belo. No Bern, funcionavam consultórios médicos. A praça e seus monumentos. O chafariz da Praça da Sereia. O Grande Hotel, majestoso. O prédio do café que funcionava onde hoje está o Basa. Mas isso é passado. O presente é triste.

sexta-feira, 3 de junho de 2016

CINDERELA EM NOITE DE CHUVA

Choveu torrencialmente alagando a cidade até momentos antes de começar o show “Corpo de Baile”, de Mônica Salmaso, no Teatro da Paz. A cantora agradeceu a todos que conseguiram chegar, apesar do tempo. Pra ser sincero, não acredito que sem chuva muitos mais chegassem até lá. A Cultura, o bom gosto, há muito se esquivaram de estar em nossa cidade. Em uma de suas falas, Mônica disse considerar-se uma Cinderela, por poder viajar pelo Brasil com o show, acompanhada de tantos grandes músicos. E tudo devia ao Bradesco, patrocinador através da Lei Rouanet. Curioso isso acontecer, no momento em que vivemos, um Ministério da Cultura extinto e depois retornando por conta da grita geral entre os artistas brasileiros, além da ocupação de algumas sedes, nas capitais, em protesto. É claro que fui contra a extinção do MinC. É verdade também que nos últimos tempos o ralo orçamento já tinha sido contingenciado e muitos artistas estavam sem receber. É verdade que apesar de tantos debates, consumindo dois governos de Lula, não podemos dizer que havia uma política cultural nacional. É claro que a Lei Rouanet vem aprovando projetos de ações culturais promovidas por artistas renomados, que sem a lei também obteriam êxito em suas iniciativas. Quando apresentam seus projetos aos maiores patrocinadores, é lógico que os departamentos de marketing os escolherão para expor suas marcas, em detrimento de outros fazedores de cultura. Essa era uma discussão que estava havendo. Também não sei como resolve-la, sem contrariar a livre concorrência. O que posso dizer é que sem a Funarte e alguns de seus prêmios, o Grupo Cuíra não conseguiria sobreviver mantendo seu teatro de cem lugares e produzindo espetáculos. Prêmios aos quais se habilitou e foi escolhido por equipes que analisaram todos os projetos que fizeram o mesmo. O Teatro chegou a funcionar como Ponto de Cultura, obedecendo todos os trâmites e tendo suas contas aprovadas. Sem isso, nada faríamos. Nunca recebemos apoio cultural do Estado ou do Município. Pelo contrário. Ficaram muito felizes quando fechamos as portas. E ali estava Salmaso acompanhada por uma banda irrepreensível, com Nelson Ayres, Neilor Proveta, Quarteto Carlos Gomes, cantando um repertório de canções que estavam esquecidas, inéditas, de Guinga e Paulo César Pinheiro. Ao menos nesse caso, a Rouanet funcionou bem. Foi inesquecível. Uma das melhores coisas que assisti na vida. Artistas ocuparam alegremente a sede local do MinC. Depois que o ministério voltou, resolveram ficar. Mas aí já por questão partidária. Estou fora. Gostaria que invadissem também as sedes da Fumbel e da Sectaria de Cultura. Há mais de vinte anos temos ali alguém, “lúcido e criativo”, que odeia os artistas paraenses. Vejo fotos da Feira Pan Amazônica do Livro. Gente feliz. Lembro de Chico Buarque em “vence na vida quem diz sim”. O cara os despreza e eles vão em busca dos holofotes que duram alguns minutos. Depois, novamente, a escuridão. E a Fumbel e a Sectaria de Cultura, não merecem ser invadidas? Participei do “Chega”. Faltou muita gente que agora sorri, feliz. Querem Rouanet? Quem, aqui se beneficia? O Cuíra conseguiu uma, com a Petrobrás. E só. E a Semear que ninguém consegue empresas patrocinadoras? E a da Prefeitura? Restou uma Cinderela em noite de chuva.