quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Uma visita ao "Edgar Proença"

Não concordo com a Fifa. Não concordo com a CBF. Não concordo com essa Copa Roca, nesse instante. Não concordo com Mano Menezes e sua seleção cheia de negócios. Não concordo com a seleção de Mano Menezes que sequer tem esquema tático. Não concordo com o beija mão a Ricardo Teixeira (argh!). Não concordo com o futebol local. Me emocionei com o público entoando o hino nacional. Eu estava lá, cantando. Não concordo com nada do que está aí, mas resolvi atender ao convite da Vivo para assistir a partida entre Brasil e Argentina, ainda que ambos sem equipe titular. Há muito não ia a um estádio. Comecei muito cedo, sentado, quietinho, ao lado de meu pai, irradiando, e Grimoaldo Gonçalves, comentando. Adiante, o velho passou a comentarista e ao seu lado, desde Jair Gouveia, Cláudio Guimarães, Zaire Filho, Edgar Augusto, Abias Almeida e alguns outros que agora esqueço. Ali, aprendi a ler o jogo, entender o que se passava. E tudo isso sem esboçar qualquer emoção, para não prejudicar a narração. Com meus amigos, fui algumas vezes às arquibancadas. Muito pouco. Já adulto, passei a ir apenas nos clássicos. Adiante, por diversos motivos, comecei a escrever sobre futebol em A Província do Pará. Logo depois, fui chamado para comentar jogos para a equipe da Mais Tv, primeiro com Edson Matoso, depois com Paulo Cecim, de saudosa memória. Quando isso acabou, deixei de ir aos estádios, vendo somente na televisão. Nos dias de hoje, desde campeonato russo, inglês, francês, holandês, alemão, português, espanhol e até argentino, além do brasileiro. Com as tecnologias, acostumei com o replay, com outros ângulos, com o som ambiente, com tira teima. Por isso, ao ficar confortavelmente instalado nas cadeiras do Mangueirão, senti falta, senti distância. Não ouvia o som ambiente, talvez porque havia apenas uma torcida. Às vezes a jogada ficava distante demais. Quem é? Quem entrou? Não tem replay da jogada? E nos momentos de perigo, aquela multidão de pé, gritando. Parem de gritar! Futebol é para ser desfrutado, analisado, percebido, entendido. Torcedor de tv ou de cabine, é o que sou. Por outro lado, que lindo o estádio iluminado, lotado, cantando. Os jornalistas queixaram-se do gramado. De onde eu estava, não percebi tanto, fora alguns buracos. Não era para isso. Não havia jogos por lá. Enfim. Mas com o foco totalmente ampliado, diferente da tv, disse a meu irmão, quando Lucas recebeu o passe, que seria gol. Além de conhecer suas características, a ampla visão deixava claro que ele não sofreria nenhum assédio até o chute definitivo. Também é interessante ouvir o comentário das pessoas, a maioria cheia de absurdos, mas que fazem pensar. A ida ao Estádio demorou uma hora e meia. Para voltar, rompendo a confusão local, o caminho estava tranquilo. Claro, há uma emoção fortíssima no estádio, no testemunho do que acontece, mas confesso que minha chaise, minha tv digital com suas ofertas me atraem muito mais. Ou ainda há muito a fazer. Meu filho passa uma temporada em Londres onde já compareceu a dois jogos do seu Arsenal. Comenta as facilidades, o conforto e a ampla visão de qualquer lugar. Conta também que qualquer coisa é vendida e tem o símbolo do clube, que fatura. E não é assim? Uma iniciativa particular, com milhares de gastos. Pois no "Edgar Proença", em certo momento, o locutor anuncia que houve um total de 15 mil pessoas não pagantes. Oi? Como disse? Isso mesmo. Um escândalo sem tamanho. Como pode uma iniciativa particular sobreviver com 15 mil não pagantes? É essa a capacidade do Baenão, da Curuzu, sei lá. Não dá para entender.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Meu Experiência

É muito bom, em meio ao deserto de idéias que vivemos, poder festejar o Grupo Experiência por sua carreira nos palcos paraenses e sobretudo por sua permanência, a despeito de tantas dificuldades. É claro que com tantos eventos, tantos espetáculos e figuras, muito tenha ficado de fora não sendo, por isso, menos importante. Como aqui é meu blog, posso escrever sobre "Meu Experiência", afinal, foi o grupo, foi Geraldo Salles a permitir que eu estreasse com um texto teatral., "Foi Boto Sinhá". Com 16 anos, eu e meus irmãos ouvíamos, líamos a respeito das ópera rock "Jesus Christ Superstar" ou "Hair". E também David Bowie, Alice Cooper e outros. O rock andrógino. Mas o que era mesmo ser andrógino era algo vago, embora moderno, ligado a tudo de novo na cena. Why not escrever uma ópera rock? Assim, veio a idéia do "Boto andrógino", que comecei a escrever, para musicar com meu irmão Janjo, ambos adolescentes efervescentes. Tanto que Janjo decidiu ser pintor e eu segui escrevendo. Como veio o contato com Geraldo, não sei. O que lembro é de estar em minha casa, na companhia do poeta José Maria Villar Ferreira, mexendo, colocando poesia, estrutura, no que se chamou "Foi Boto Sinhá", onde contávamos a famosa lenda até o momento em que, em vez do Bôto pegar uma caboca, pegava o caboco! E quebrávamos a estrutura regional e caíamos em algo de cabaré, em um deboche do macho amazônico, terminando em grande festa. As músicas, uma escrevi a letra, mas não lembro se a música foi de Waldemar Henrique ou Roberto Reis. As outras, faixa título do grande maestro e alguns carimbós tradicionais, já tocados pelo grupo de Mestre Venâncio. Estréia no Teatro da Paz, lotado! Nunca esqueci do começo. Black out e os tambores do carimbó fazendo meu coração dar saltos. Houve várias outras montagens, em todas havendo mudanças no texto, na maneira de encarar a questão do gay na sociedade. Seu ápice foi em um Mambembão onde o Grupo fez Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro, colhendo aplausos, bis, matérias entusiásticas. Lembro de SP. Estréia em uma quarta feira de cinzas. Estamos chegando ao Teatro Anchieta, do Sesc, umas cinco da tarde. Havia uma fila. Deve ser para o cinema. Não. Era para um espetáculo extra do Boto. E ao final, pedidos de bis para a última cena. Fizemos o Bôto em Barcarena e Abaetetuba. Nesta, em um ginásio de esportes, duas, três mil pessoas em profundo silêncio, com medo do boto.. O que veio depois? Talvez tenha sido "Angelim, o outro lado da Cabanagem". Eram 150 anos do movimento. Cacá Carvalho havia passado por aqui com seu "Macunaíma", de Antunes Filho. Muita gente no palco. Rui Barata me aconselhava. Escrevi. Meu amigo Rohan Lima decidiu fazer. Não era Experiência, mas lá estavam Paulo Fonseca, Rui Cabocão, Cleodom Gondim, Edgar Castro, tantos outros, mais Sonhão, então, apenas manequim, Henrique da Paz, emprestado do Gruta, mais Teka Sallé e suas bailarinas, Ronald, o saudoso bailarino e até Fafá de Belém que gravou, gratuitamente a música tema, de Antonio Carlos Maranhão. Foi a primeira peça patrocinada. Banco do Pará. Se estou certo, deu CR$80 mil. Pior, ao final de três meses em cartaz no Teatro da Paz, devolvemos a quantia, integralmente. Era assim. O que veio então? Uma comemoração pelos 20 anos do grupo? Sei lá. Decidiram encenar duas peças, com elencos diferentes, turma mais velha, turma mais jovem. A mais velha fez "Quem te fez saber que estavas nu", de Nelson Rodrigues, direção de Mercês, com Geraldo Salles, Natal Silva, Paulão e Beth Dopazzo em cena. Fiz a música. Pela primeira vez, a melodia. Até hoje acho bonita. A turma mais nova se deu melhor. Pegaram o texto de um jovem autor paulista e fizeram "A terra é azul". Fiz toda a trilha. Ganhei prêmios. Eu, Carlos Reimão e a gaita do Edgar Augusto, tocando em estúdio. Viajaram. Estiveram com Antunes e Gerald Thomas. Houve também "Dom Chicote", infantil, onde fiz a trilha, novamente. E aí fizeram "Quem te fez saber que estavas nu". Não lembro a autoria. Fiz novamente a trilha sonora. E então voltei de uma viagem disposto a escrever comédias tipo as que faziam no Rio de Janeiro e chamaram de "besteirol". Escrevi "A Menina do Rio Guamá" e foi mais um super sucesso. Teatro da Paz e Schivazappa lotados. Sessões extras. Festival do Experiência. Um espetáculo por dia. Era muito legal. Mas o tempo passou. Alguns saíram. Outros voltaram. Alguns foram e não voltaram mais. Me vi começando a trabalhar com o Grupo Cuíra. Veio Cacá Carvalho, mais próximo. Qual a razão de um texto? O que eu quero dizer com isso? Ficou o amor e a admiração por Geraldo Salles e a turma toda. Amizades eternas que se renovam a cada encontro, mesmo que esporádico. O "Meu Experiência" foi especial, emocionante, revelador e formador, sobretudo.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Eu já morri

Era para ser um dia normal, de aula. Mas Janalice percebeu algo diferente ao entrar. Não que sua passagem no pátio do colégio não provocasse, sempre, algum frisson, por conta da altura de sua saia. Mas era mais do que isso. Dentro da sala, cochichos e risos. Então a professora se irrita e alguém se levanta. Entrega um celular. A professora põe a mão na boca. Sai. O que é que tem no celular? Então Jacilene assiste a uma demorada cena de felação que ela protagoniza, junto a seu namorado Fenque, com direito a closes de sua genitália, a pedido. Chocada, não sabe o que dizer. A professora retorna. A diretora vem junto. Pede que ela saia. Que volte para casa. Que somente retorne com seus pais. E atravessando o pátio, agora ouve claramente o deboche de todos.
Jacilene tem 14 anos.
Em casa a mãe chora. Grita. Estapeia. Rasga suas roupas. Entra o pai, com a farda de cobrador de ônibus. Tira o cinto. Espanca. Expulsa de casa. Ela sai chorando pela rua. Em uma esquina, Fenque está com os amigos. Ela chega e pede ajuda. Ele a trata mal. Ri de sua cara. Os amigos também. Ela cobra. Ele dá um tapa. Sai fora.
Jacilene vai andando, pela noite, na cidade, até o porto. Pede esmola. Consegue o dinheiro da passagem. Está no barco. Belém ao fundo. Desembarca e vai à pé até a casa de uma tia, que vivia no centro, com um namorado, e era sua madrinha, embora estivesse brigada com a mãe, por suas posições. Jacilene espera a manhã chegar para subir. Conta seu drama. A tia precisa perguntar ao namorado, dono do apartamento. Tudo bem, pode ficar, depois a gente conversa. A tia vai trabalhar. Jacilene vai dormir. O namorado fica por ali, assistindo tv. De tarde, Jacilene toma banho. Penteia-se em frente ao espelho. O namorado da tia entra. É a conta que precisa pagar para morar ali. Não pode denunciar nada. Fazem sexo. A tia chega no início da noite. Nada é dito.
Agora, Jacilene passa os dias zanzando no centro, com medo de voltar para o apartamento e enfrentar o namorado da tia. Encontra uma putinha, Dionete, próximo a uma farmácia popular. Conversam. Se identificam. Brincam. Acham graça. Passa um cliente. Ela vai. Jacilene fica interessada. Está feliz. Arranjou uma amiga. No dia seguinte vai ao quarto da amiga, em uma pensão. Juntas, fazem confissões. Jacilene experimenta roupas. No outro dia, aparece um pivete, namorado da amiga de Jacilene. Conversam. Quer fumar? Ele presenteia a namorada com um cordão. Sentam em um bar. Outro dia, estão no quarto da amiga. Quer fumar um crack? Fazem sexo a três. Chega tarde. Leva bronca. Outro dia, estão juntas. Chega o cafetão. Expulsa o pivete a pontapés. Dá safanões na amiga. Olha com interesse para Jacilene. Ela volta para casa. Considera. Outro dia, com a amiga. Chega o cafetão. Vamos ali numa casa? Que casa? De quem? Um amigo. Vão. Ela entra e é agarrada. Grita, mas ninguém vai ouvir. O cafetão e a amiga pegam um dinheiro e se mandam. Entra em um quarto onde há mais quatro. Dois dias. No terceiro, tomam leite. Sentem sono. Mas cambaleiam em direção a uma Kombi de vidros peliculados. Circulam. Param. Jacilene está tonta mas vê que estão próximos de um colégio. Empurram para dentro uma menina. Assustada. Tremendo. Não consegue gritar. Alguém abafa. Escuro.
Agora estão em uma casa, com quintal, fora da cidade. Jacilene sente o ar, o cheiro de mato. Um sítio? Uma tiazinha negra, alta, fica tomando conta, levando no banheiro e tal. Ela pede, com sotaque forte, para se comportarem, serem boas. Que foram escolhidas. Que são especiais. Que vão viajar para a Europa. Chega com umas roupas. Calcinhas, minissaias, corpetes, tops, tudo bem sexy. Vistam. Jacilene faz amizade com uma das meninas. Ela conta que foi sequestrada num show de pagode. Perdeu-se, por instantes, das amigas. Agora estão vestidas com as roupas sensuais. Uma a uma, desfilam na frente de alguns negros altos, fortes, que falam outra língua. Algumas são escolhidas. A amiga foi. Ela, não. Não há despedidas. Janalice fica. Ela vai trabalhar com a turma que ficou.
A Kombi entra em um motel. Vai para o lado reservado. Uma piscina. Homens aguardam e saúdam a chegada. Alguns estão nus. Elas saem. Algumas gostam e já vão sorrindo. Uma churrascada. Dentro da casa. O cara é gordo, feio, bêbado. O cara estica umas carreiras de cocaína. Ensina como faz. Janalice já está muito dopada. Começa a vomitar. A fazer espuma. O homem a toma e faz sexo mesmo que ela nem reaja. Ele se aborrece. Dá um potente murro na cabeça. Ela se acaba pelo chão. Ele vai embora procurar outra. Ela acorda, junta roupas. Sai andando, meio dopada, atordoada. Não sabe como, acaba na rua. Vai andando sem rumo. Não dão por sua falta.
Agora ela faz confusão em uma esquina. O policial a repreende. Ela enfrenta o policial. Está muito diferente agora. Para pior. O policial a leva para a cadeia. Não há cela para menores. Muito menos para mulheres. Ela continua respondendo torto. É colocada na cela com 20 homens e ali fica, sendo usada por eles. Um deles tem pena. Você não quer sair daqui? Não quer viver? Não. Eu já morri.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Película para não ver a verdade

Mais uma vez, alguém olha meu carro e me sugere colocar película. Em seguida narra o assalto que foi vítima. Não uso película. Há muito. Por várias razões. Primeiro porque acho feia sua utilização. Cafona. Antigamente, essas películas eram usadas apenas por autoridades com medo da população. Depois, ressurgiu como moda e logo depois, como proteção contra a violência. Alguma lei imbecil liberou. Não uso película porque, ao ficar atrás de um carro peliculado, não consigo olhar através de seus vidros, antecipar qualquer problema de trânsito. Quando vou atravessar alguma rua e há um carro peliculado, não consigo ver se vem outro carro. Tem de ser uma lei errada. Não uso película porque, um dia, li uma matéria onde o sujeito, sequestrado, contava que os ladrões passavam frente guarnições da Polícia rindo, porque não eram vistos. E também me recuso a ser covarde, me esconder. Me recuso a prejudicar os outros carros por conta de meus vidros peliculados. E me recuso porque é cafona pacas. Sim, sei que hoje um assalto é uma questão de loteria. Sorte. Qualquer um de nós, a qualquer hora do dia, em qualquer local, pode ser assaltado. Acontece a todo momento em vários pontos da cidade. É uma terra sem lei e somos as vítimas preferenciais, burgueses, classe média, que estudaram, trabalham loucamente e mantém um mediano padrão de vida. Às vezes, quando me falam, até fico pensando, mas chego às mesmas conclusões. E também avisei aos amigos. Não adianta passar de carro e apitar, chamando minha atenção. Não vemos nada. Não podemos reconhecer ninguém. Talvez seja isso. Não queremos ver a verdade. Enquanto ficamos em nossos altíssimos prédios, onde temos academia de ginástica, piscina, tv a cabo, internet, todos os serviços, estamos bem. Quando pomos os pés na rua, pisamos na lama. Pegamos o carro e queremos ficar dentro de um cocoon, protegidos de tudo, quem sabe, blindados. Bucéfalos importados, off roads disfarçados, cheios de luxo, parecem tanques de guerra e sim, preparados para chafurdar na lama da selva, mas sem se sujar. Não encaramos a verdade. Vivemos na selva. Voltamos para a selva. Fiquei primeiro aborrecido quando mais uma vez fomos ao noticiário nacional e internacional com violação de direitos humanos. Mas como se aborrecer? Vivemos a selvageria. Adolescentes que já praticam sexo há muito, violentadas por presidiários. Presidiários que prestam favores sexuais a presidiárias. É o fim do mundo. Selva total. E isso vivemos no dia a dia, quando vamos às ruas. E quando vamos, não queremos ver nada. Ficou confuso? É assim mesmo que está.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Tropeçando em assuntos

Li por esses dias duas publicações de pensadores interessantes, o primeiro um sociólogo polonês, Zygmunt Bauman e o outro, Leonard Mlodinov. Entre eles, pode haver alguma semelhança, não sei, mas o que dizem é bom para refletir. Zygmunt está preocupado com mecanismos como Facebook, criando a ilusão de amizades, sendo que nada é face to face, e com um clic, desconectamos toda a amizade. Acha que somos solitários em uma multidão, cada um com seu headphone, alguns com headphone desligados, mas nas orelhas, apenas para evitar qualquer contato. Disse também que o mundo, a civilização, não pode viver sem dois valores essenciais: segurança e liberdade. O problema está na correta fórmula de equilibrar esses valores. Segurança sem liberdade é escravidão. Liberdade sem segurança é o caos. Encontre a mistura certa e seremos felizes. Zygmund diz que nosso caráter é que vai fazer a opção certa do destino que teremos. Sócrates acreditava que o segredo da felicidade estava em criar uma forma de vida para si. Uma maneira de viver, afinal, cada um é cada um. Pense. Escolha seu destino. Mas é preciso estar preparado. Leonard Mlodinov não acredita na existência de um Deus. Acredita no princípio da aleatoridade. Tudo é aleatório. O que é preciso, como Shakespeare escreveu, é estar pronto. Para tudo, é preciso estar pronto. Leonard diz que seus pais se safaram do campo de concentração e ele pôde nascer. "Que Deus é esse que decidiu matar toda a minha família mas poupou apenas meus pais para que eu pudesse nascer". Tudo é o acaso. Tanto que ele, físico, em algum momento largou tudo e foi para Hollywood onde escreveu roteiros para dois ou três grandes blockbusters. Depois virou escritor. Ele acha que é preciso perceber quando o acaso surge e ir em frente, aproveitar as chances, mesmo que isso signifique mudar tudo o que vinha fazendo. Até lembrei dos versos de Ferreira Gullar em "Onde andarás", que Caetano Veloso musicou, "e é por isso que eu saio na rua, sem saber pra quê, na esperança, talvez, de que o acaso, por mero descaso, me leve a você". E o garoto que de repente, começou a ter notas baixas na escola e queixas dos professores. A mãe chamou pra conversar. "Ah, mãe, eu não quero ser chamado de nerd!". A mãe argumentou que grandes e famosos se tornaram assim por estudar, por tirar notas altas. Nananana. O máximo que conseguiu foi que ele elevasse as notas, mas nada de tanto destaque. Que coisa! A professora Rosely Sayão está preocupada com essa sociedade do espetáculo em que mais importante de tudo é a aparência, estereótipos que deixam de lado o conhecimento, trocado pelos highlights de rápida pesquisa no Google. E você, o que acha?

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

A Feira do Livro

Havia decidido nada comentar sobre a Feira do Livro, que acontece anualmente em Belém. É que desta vez, após 15 anos, meu nome parece ter sido retirado da ficha negra, da censura, sei lá. Fui "reabilitado", digamos, como na União Soviética de Stálin. O Grupo Cuíra convidado a apresentar a peça "Abraço", que escrevi e dirigi, com Cláudio Barradas e Zê Charone. Não pude dizer não e assim prejudicar outras pessoas. Fomos bem tratados. Não posso dizer que recebemos o melhor dia da semana, segunda feira... Mas estava lá nossa caixa preta e mínimas condições. A Sala Marajó, de difícil acesso, recebeu bom e respeitoso público. Ao sair e dar uma volta, já com avisos de encerramento da noite, deparei, no stand do IAP, com o meu nome ao lado de famosos e excelentes escritores paraenses. Até uma foto havia. Bom, isso é que é reabilitação!
Nada disso pode retirar minha principal divergência em relação à Feira. A falta de uma razão sensata para sua existência, promovida por uma Secretaria de Cultura. Se um empresário resolve fazer uma feira. Aluga o Hangar. Negocia espaços com editoras e livrarias. Contrata alguns palestrantes de renome. Dá, como política de boa vontade um stand para os escritores locais, nada tenho contra. É negócio particular. Mas quando é o Estado que a realiza, inventando tratar-se de Feira Pan Amazônica, homenageando países, no caso, a Itália e escritores como a desconhecida Dulcinéia Paraense, mas sem ter NENHUMA política cultural para a Literatura, está errado. Se é o Estado que realiza, a Feira precisa ser o ápice de um trabalho anual que não somente republica livros importantes, esgotados; faz com que os escritores da atualidade circulem pelo Estado, com status de artistas e lança novos autores, na idéia de, futuramente, constituir um mercado. Então, a Feira seria esse ápice, onde os escritores locais seriam os destaques, muito embora se possa ter, também, escritores como Ignácio de Loyola Brandão, Veríssimo e outros. Assim, como está, é bom negócio apenas para livrarias. E olha que elas se queixam. O povão vai até lá dar uma volta. Poucos têm dinheiro para comprar. E raríssimos compram algum autor local. Afinal, quem ganha com o esforço da Secult? Os escritores de fora que chegam, são cortejados, bajulados, acarinhados, levados a passear e voltam contando maravilhas. Quanto aos escritores locais? Nada. Li que desta vez será lançado livro de Dulcinéia Paraense. Corretíssimo. Muito prazer, Dulcinéia, que com mais de 90 anos, veio do RJ onde mora. Mas não basta. Uma seleção de seus livros deveria estar sendo motivo de exame e discussão nos colégios estaduais, municipais. Assim a homenagem se justifica. Como está, não é correto, para dizer o mínimo. Mas fui "reabilitado". Qual a sensação? Nenhuma.

A MORTE DE UM PERSONAGEM

Estava aguardando o portão da garagem do prédio abrir quando veio o T. Rex (Kiko) avisar que o Ailton morrera. Ailton? Que Ailton? Ah, o Peito de Pombo. Acordou se sentindo mal. Levaram ao Pronto Socorro mas morreu logo. O corpo está ali no Gempac. O senhor vai passar lá? Mais tarde. Há poucas horas o havia visto com um corpo na mão. As noites de domingo, por ali, são quentes. A galera fica assanhada desde cedo. Ganha trocados tomando conta dos carros. Passa o Bento tocando merengue. Há uns três bares, certamente sem alvará nenhum, garantindo a cachaça. Fiquei triste. Partiu um personagem. Alguns não entenderam ou não fui bem claro no facebook. Não, ele não era meu amigo. Era personagem. Ele, a família e agregados. Nós os apelidamos de "imãs de geladeira". Por alguma razão, acamparam na esquina do Cuíra. Ouvi dizer que Ailton e Bete, sua mulher, tinham uma casa em área de invasão. Mas preferiam morar ali ao ar livre. Sujeitos às intempéries. Aos domingos, vinha um casal de filhos e criança de dois anos. Um dia desses, bebido, empilhou tudo na esquina e tocou fogo. Os bombeiros vieram. Virou tudo cinza. A Bete passou uns meses presa. Tráfico, claro. O velho ficou por lá. Um dia ela reapareceu. Gorda, aparência saudável e não como antes, quando parecia dissolver-se entre maus cuidados, fome, droga, sei lá. Reapareceu e ficou. O apelido de Peito de Pombo foi pela postura. Moreno, magro, cabelos quase brancos, olhar desafiador. Quando passava, rolavam a saudações respeitosas. Sempre. Mas que diabos, porque não iam para suas casas? Morar naquela esquina? Talvez fosse vida o que estivesse procurando. Morar em área de invasão, num dia a dia repetitivo? Morar ao ar livre. O mundo é sua casa. As discussões em voz alta, quem quiser que ouça. O mundo é minha casa. E eu assisti a várias discussões. Bebido, se abria em gestos. Braços se movimentando, aumentando a amplitude do que dizia. Batia no peito. Argumentava parecendo erudito. Traficante, certamente, mas a Polícia nada achava nas revistas. Um dia desses implicou com a Raimunda, puta velha, gorda, mas com boa clientela, chova ou faça sol, dias úteis e feriados, sentada na esquina. Ficaram se arengando. Será o imã do teatro que os atrai? De manhã, se espreguiçando na calçada, cigarro na boca, lendo jornais. Começo de noite, banho tomado, sapato branco, um dia pintou até paletó. Uma coisa! Todos ao seu redor. Em noite de teatro, tomam conta de carros. Procuram ser respeitosos, usam palavras difíceis, gentis. Até o Kiko, o T.Rex também já queria tomar conta. Agora não sei o que será da Bete. O filho, pivetão, anda por lá. E também um papudinho que há alguns meses trocou de turma e pode estar arrastando uma asa, se me entendem. Se dentro do teatro o público assiste às minhas obras, aqui fora sou eu que não perco uma sessão deles. E quando morre um personagem, fico triste.