segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Brownie Augusto

Nunca havia tido um cachorro pra chamar de meu. Até então, passaram pela casa de meus pais algumas figuras, que minha mãe deve saber o paradeiro. Mas é que vimos, em São Paulo, um labrador lindo, chocolate, atendendo pelo sugestivo nome de Brownie. Pesquisei e encomendei. O meu Brownie chegou com 45 dias, lindo, gordinho, calado, ainda comportado e instantaneamente, tomou conta de nossas vidas. Estava com quase sete meses, uns 33 quilos, gordinho, mimado. Nós o comparávamos a esses garotinhos com o cabelo partido ao lado, roupas vincadas, mauricinho total. Destruiu parte de nossas casas. Certamente concluiria o serviço. Aos finais de semana, vinha para o Edifício Renascença. Na sala não havia mais tapete, caixas de som, cds, livros e filmes subiram nas prateleiras. Mesas de centro, pés de mesa, cômodas e camas roídos. E logo na manhã de sábado nos acordava com a guia à boca, sugerindo seu passeio pela Praça da República, onde encontrávamos Zé Filé, Jambu, Rocky, Clark, seus amigos. No domingo, nem era um passeio, mais um desfile. Passava, majestoso, recebendo elogios, no local onde são vendidos cachorrinhos e adiante, onde são doados. Enorme, dengoso, lindo, adaptou-se às nossas vidas, com todas as danações de um filhote de labrador, amigo de todos.
Na última sexta feira, ele se foi. Chegou na garagem do prédio pouco depois das três da tarde, e em sua curiosidade absurda, engoliu pedaço de potente veneno para rato. Brincou conosco e ficou na cozinha, enquanto fomos ao Teatro da Paz para o ensaio geral do PRC5, a Voz que Fala e Canta para a Planície. Pouco antes das seis, fui apanhá-lo para dar de comer e passear. Encontrá-lo morto foi uma das coisas mais chocantes da minha vida. Ainda quente. Onde antes havia tanta energia e jovialidade, nada mais estava. E fazer os procedimentos. Deixa-lo até o dia seguinte, enrolado em toalhas, não mais ele, apenas o corpo e aguardar pela remoção. E conter a dor para consolar Z, tão apegada, apaixonada. Vivemos o vazio que ele deixou. Ainda não sabemos se queremos outro. Melhor deixar passar uns dias. Sonhei com ele. Como dói.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Eric Clapton não é nada disso

Acabei de ler Clapton, a autobiografia de Eric Clapton, um dos maiores guitarristas de todos os tempos. Estou decepcionado. Ao mesmo tempo em que popularizou o blues, mesmo sendo inglês e branco. Tocou com os Bluebreakers, Yardbirds, explodiu com o Cream e Blind Faith, era também um alcoólatra e viciado em cocaína e heroína. Na maior parte do tempo, nem sabia o que estava fazendo nos palcos. Apaixonado por Pattie Boyd, mulher de George Harrison, seu amigo, sofria e fazia propostas que ela ignorava. No meio do caminho, namorou outra mulher, a quem viciou em heroína e alcool de tal maneira que, internados separados, quando saiu do hospital, suicidou-se por não conseguir mais, viver sem drogas. Quando gravou I Shot The Sheriff, não conhecia Bob Marley e nem acreditava que faria sucesso. Tocava tão mal, por conta das drogas, que deixou os solos e ficou fazendo guitarra base. Roubou de JJ Cale a voz, a guitarra e as músicas, como Cocaine. Recentemente pagou a dívida, gravando um album inteiro em dueto. Quando Pattie separou de George, voltou à carga. Ficaram juntos. Ela, alcoólatra e cocainômana. Ele, na heroína. Fez um filho em uma italiana. Uma filha em uma mulher de Antigua. Trancou-se em casa até arrombarem a porta e o tirarem, totalmente drogado. No Festival de Bangladesh, chegou totalmente dopado no palco. Nem sabe o que tocou. O filho morreu. Foi um toque. Ficou apenas bebendo. Depois, casou com uma moça de vinte e poucos. Parou de beber. Ela engravidou. Aos 50 anos, começou a viver de verdade. Incrível que enquanto isso, tenhamos gostado tanto do que gravou. É estranho. Pensei em Jim Morrison, Janis Joplin, Jimi Hendrix. Será preciso estar no limite, ou inconsciente, viajando, sei lá, para fazer brilhar o genio? Sempre me perguntei isso, talvez porque escreva e não me drogue, nem beba. Já bebi, já experimentei drogas. Não gostei, nem gosto. Parece clichê, mas quanto mais sóbrio, mais meu cérebro viaja em suas loucuras, é o que penso. Não posso estar nem por um instante, fora de mim, sem controle. e há quem procure, exatamente, isso. Mas Clapton, que teve problemas de infância, é um doente. Uma decepção.

PRC5 no Teatro da Paz

Vai ser neste final de semana, sexta, sábado e domingo, a apresentação de "Prc5 - A Voz que Fala e Canta para a Planície", que escrevi para o Grupo Cuíra, comemorando os 80 anos da Rádio Clube do Pará. Será um grande momento e penso que ficarei muito emocionado. Os aniversários da emissora eram comemorados no TP, com a presença de artistas de renome nacional, além dos locais. Tenho uma foto de meu avô, ao microfone, naquele palco. Lá ele também encenou peças de sua autoria e foi diretor da casa. O final de semana é por conta de uma oportunidade que o Estado oferece, a título de política cultural, recebendo ofertas de ocupaçao pelos grupos locais de determinadas datas que por qualquer motivo, ficaram em branco, e que são oferecidas sem o pagamento de qualquer taxa. Normalmente, por noite, algo em torno de 1500 e 2000 reais é cobrado. Sei porque já fiz Convite de Casamento por lá, pagando a taxa. O Teatro da Paz também é o lugar onde estreei como autor, em Foi Boto Sinhá. Não esquecerei a emoção do blackout, seguido do som do tambor de carimbó, iniciando o espetáculo. Adiante, escrevi Angelim, o Outro Lado da Cabanagem, novamente com Geraldo Sales e Grupo Experiência. Foi a primeira montagem profissional local. Tão preocupada em pagar suas contas, que devolvemos, integralmente, o valor que o Banco do Estado do Pará emprestou, esquecendo tudo o que lhe demos em imagem promocional, durante três meses. Também lá estive com A Menina do Rio Guamá. Em todas essas oportunidades, tive casa lotada. É inesquecível. O que acontecerá agora, não sei. Vivemos outros tempos. Vai ser a oportunidade de muita gente, que ainda tem preconceito contra a localização do Teatro Cuíra, assistir. O ingresso também está indecentemente barato. Imaginem que a tal "política cultural", te dá o teatro sem taxa, mas não se pode cobrar mais de 15 reais o ingresso. Talvez, ganhar dinheiro com Teatro, muito dinheiro, seja apenas para o pessoal do Zorra Total, que vem bamburrando nos últimos tempos, por aqui..
Mas já está sendo uma grande alegria. Logo no primeiro dia de ensaios, a turma voltando a reunir. Elenco grande. Grande elenco. Eles cantam, dançam, atuam. E tudo isso com muito talento, felicidade. Um elenco feliz. Feliz por encontrar. Botar o papo em dia. Uma está grávida, outra volta de uma hepatite, outro foi contratado pela Globo e está em Malhação, por isso uma substituição. Vamos lembrar as coreografias. Diversas técnicas são empregadas e logo, tudo está certo. Memória cênica. E toca a música, eles se emocionam, eu também e todos cantamos. Miles Davis disse uma vez que felicidade era reunir um grupo de músicos para tocar um uníssono. Pois eu digo que felicidade é reunir um grande elenco para ensaiar e se apresentar. É claro que vou estar bem emocionado. Escrevi a peça para homenagear a emissora, falar de meu avô querido e muito mais, falar de meus pais, das pessoas. Me sinto honrado, feliz, de bem com a vida. Nem precisa muito, não é? Espero que tenhamos um bom público. O elenco merece. A Prc5, também. Muito mais as pessoas que não sabem o que perderam até agora.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

A Praça

Sou o que chamam de "garoto de apartamento". Nasci e cresci morando no quinto andar do Edifício Renascença, um dos primeiros de Belém, na esquina da Presidente Vargas com Riachuelo. A Praça da República, foi meu playground. Quando me vi como gente, lembro de ver, distante, a testada da Basílica de Nazaré, hoje inteiramente vedada pelos prédios da modernidade. Lembro da noite em que os operários liberaram para o passeio das pessoas, a Presidente Vargas totalmente asfaltada, no que antes eram paralelepípedos. Lembro de passear em minha bicicleta, sobre o betume. E lembro da Praça da República. É porque agora tenho um cachorro, sobre o qual escreverei próximamente. E aos finais de semana, levo-o para passear na Praça, em um ótimo exercício de observação de pessoas e do lugar que tanto amo. Primeiro bem criança, brincando de cowboy nos coretos, começando por aquele atrás da Banca do Alvino, que chamávamos "Gruta", com seus esguichos de água e iluminação à noite. O outro, junto a outro chafariz, próximo à Assis de Vasconcelos, onde pedras, em nossa imaginação, transformavam-se em cavalos e diligências a serem assaltadas, com muitos tiros, animado pelo seriado de Bill Eliott, que minha saudosa Babá Bia me levava, no Paramazon, ali próximo, na Piedade, aos domingos. Uma manhã, desci à praça, evidentemente armado até os dentes, como convinha a um pistoleiro perigoso e encontrei Jacinto Castro, de quatro, rosnando tremendamente. Era um leão. Preferia ser um leão, pelo barulho e medo que inspirava. Bom. Nas férias, todas as tardes, havia "Cemitério", um jogo disputado por meninas contra meninos, ali próximo ao anfiteatro onde Alberto Silva, recentemente, apresentou sua Mandrágora. E vieram as bicicletas. Tornei-me um ás. A brincadeira era de "tranca". Trancávamos a passagem de nossos adversários, com habilidade e equilíbrio, em volta do monumento, com suas estátuas belas, impávidas, seus postes no estilo Boulevard de Paris, seu piso colorido. Corríamos por toda a praça, feito cavaleiros da Távola Redonda em eterna ronda e procura pelo Cálice Sagrado. Por falar nisso, houve a onda de capa e espada. Na casa dos pais de Nelson Lima, cortávamos compensado para fazer escudos pintados conforme os Cruzados, bem como espadas. Chegamos a brincar, temerariamente, com chuços improvisados, correndo e tocando nos escudos. Certa vez, um de nós, querendo tomar de assalto o segundo andar, pela escada, tomou uma espadada na cabeça, abrindo um bom golpe. Houvemos por bem encerrar a batalha, por aquele dia, tendo em vista os castigos que vieram, por conta do acidente. Em alguma de nossas expedições, invadimos e exploramos a Escola de Química, onde hoje está a Livraria da Universidade, que fica fechada aos sábados, quando posso comprar alguma coisa. Pelo chão, jogadas peças de Química em vidro e borracha. Uma emoção. Nem tudo foram flores. Fui assaltado, na praça. À bordo de minha bicicleta, armado até os dentes com uma "besta" e uma espécie de alforje, feito a partir de uma capa térmica da mamadeira de minha irmã Ana Carolina, fazia minha "ronda" quando fui parado por um garoto, agressivo, com uma faca nas mãos. Não vão rir, mas o objeto de seu assalto não foi a bicicleta, o que seria normal. Bom, tambem não levava dinheiro, celular, relógio... Ele queria meu alforje. Levou. Pior, levei algum tempo até recuperar a calma. O garoto havia quebrado meu escudo pessoal de defesa, absolutamente ingênuo, infantil, mas um escudo. Boa lembrança. Bons tempos. No colégio, voltava e disputava renhidas partidas de peteca com motoristas de praça que ali faziam seu ponto. Mais adiante, estudando para o vestibular, parávamos no posto de gasolina que havia na esquina da Assis de Vasconcelos com Osvaldo Cruz e cada um comparecia com 1 cruzeiro. Era o suficiente para o Belair de Nelson Lima circular pelo Moderno, Nazaré, Gentil, enfim, o que nos interessava. Hoje, circulo com Brownie pela praça, tropeçando em minhas lembranças, ouvindo gritos de crianças, meus gritos, em uma época em que tudo se resumia em ser feliz, correr de braços abertos, contra o vento, pedalando firme, esquivando-me da bola do cemitério e disparando intermináveis balas de meu 45. Conheço cada centímetro da praça. Em cada um deles está impressa minha infância e pré adolescência. Ali acontecia tudo. A boate da Assembléia Paraense em frente. O Porão, tão convidativo, por conta do ar proibido para menores. O Papa Jimi, onde Ivan Novais, um de seus inúmeros discotecários me mostrou um vinil onde, em um lado, Jimi Hendrix tocava no Monterrey Festival. Praça da República, quanta saudade e quanta revolta sinto ao te ver violentada, cuspida, suja, imunda, fedendo, tratada como lixo, seja pelas autoridades, seja por seus frequentadores. E caminho, cabisbaixo, ruminando ações que deixo para depois, por imaginar ser um solitário, bradando no deserto. Nós, aqueles que estudam, que lêem, assistem, fazem, diminutos diante do gigantismo da cretinice vigente. A Gruta quebrada, imunda de fezes. Vagabundos dormindo nos bancos, fedendo. A maconha dividida entre jovens, com toda a tranquilidade, em qualquer dia da semana, como se a Praça fosse em Amsterdam. A falta de cuidado com a grama, que sumiu, trocada por imensos formigueiros, raízes a descoberto, lutando para segurar suas árvores. Os quiosques reunindo não somente jovens a namorar, mas a fazer sexo, pessoas mal encaradas, vendedores de bombom, cerveja e drogas, instalados à vontade, afrontando as pessoas de bem com sua sem cerimônia de se saberem seguros em sua avacalhação. O monumento todo pixado, quebrado, com guardas municipais mais interessados em namorar entre si, conversar, do que tomar qualquer medida mínima, justificando seu uniforme. A imensa sujeira que fica após os domingos, onde a praça deixa de ser somente um local ao ar livre, para seus habitantes respirarem, para incluir venda de bobagens e comida, bebida, com nenhuma higiene, absolutamente nenhuma, para um povo mal educado, que tudo joga no chão, como se o mundo não fosse sua casa. E mais tarde, estranhas crianças, vestidas de preto, sem nenhuma ideologia, objetivo, reunindo-se para conversar, fazer sexo, drogar-se, beber, sem que nenhuma ação seja feita. A praça é território livre, inclusive para ser agredida, violentada. Assim, a Praça da República, a bela praça, uma das mais bonitas que já vi, está, como a cidade, entregue à sanha de quem se apresentar. E a cada vez que volto para casa, estou dividido entre a emoção de pisar em local tão importante, para mim, e penso, para cidade e seus habitantes, e ao mesmo tempo, a revolta por encontrá-la do jeito que está.