sexta-feira, 30 de dezembro de 2016
AS QUATRO ESTAÇÕES DE HAVANA
Sou
amigo de Leonardo Padura, o escritor cubano que recebeu há uns dois anos o
prêmio “Princesa das Astúrias”, o mais importante da língua espanhola.
Estivemos juntos em algumas apresentações em São Paulo e Recife, eu com meu “Pssica”
e ele com “O Homem que Amava os Cachorros” e ainda “Os Hereges”, todos lançados
pela Boitempo. É claro que as maiores atenções eram para ele. Um homem
tranquilo, observador, inteligente, que sabe usar as palavras e como bom cubano
não deixa nada sem resposta ainda que pouco tenha dito, se o assunto é o regime
da ilha. Mas sobretudo, digno. Estávamos em Recife, na Feira Literária,
abertura. Um senhorzinho fez nossa introdução, quer dizer, dele. Apaixonado por
Cuba, desandou a falar dos talentos de Padura. Diria, cantou em prosa e verso.
Esqueceu de mim. Fiquei sem graça. Não sabia o que fazer. Pomposamente, o
senhorzinho passou a palavra a Leo e ele: Senhoras e Senhores, o que há em
comum entre minha obra e a de Edyr Augusto é isso e aquilo. Eu e o Edyr escrevemos
desta e daquela maneira, enfim, Leonardo me repôs em cena com seu talento,
educação e generosidade. Quando terminamos, fomos aplaudidos de pé, ele mais
merecedor, claro. Poderia contar muito mais. Visitamos a sinagoga do Recife, a
primeira da América do Sul, mencionada em seu “Os Hereges”. Escreve mensalmente
uma crônica para a Folha de São Paulo. Vive viajando, mas retorna sempre para
sua casa em Havana. A Boitempo acaba de lançar quatro obras no gênero policial,
uma ou duas, não sei, anteriormente lançadas sem o destaque necessário. Em
todas está presente o Detetive Conde, seu alter ego. E por escreve-las quase
encadeadas, chamou-as de “As Quatro Estações de Havana”, localizando-as em
1989, ano terrível para os cubanos, com a queda do Muro de Berlim e outros.
Através de sua linguagem leve, gostosa e precisa, temos idéia da realidade
cubana, mais do que qualquer propaganda tendenciosa, seja para que lado for. A
Padura, interessa mais como os casos se desenvolvem do que sua resolução, quem
cometeu o crime. Interessa a convivência, a temperatura, as pessoas. Agora,
melhor ainda, a Netflix apresenta a série, com mesmo título, reunindo em quatro
capítulos, “Passado Perfeito” (que se passa no inverno), “Ventos de
Quaresma”(primavera), “Máscaras”(verão) e “Paisagem de Outono”. É uma produção
da Tv espanhola com a Tornasol Filmes, de Gerardo Herrera, com direção de Félix
Vistanat e o melhor, roteiro de Padura e sua esposa, Lucía Lopez Coll. Cenas
magníficas, casario muitas vezes parecido com Belém. Calor, suor. Mulheres
cubanas adultas, lindas e cheias de personalidade. E o Detetive Conde, que
afoga mágoas com bebida, divide acontecimentos com uma roda de amigos, assiste
a um deles partir com a família para Miami, desejando um futuro. O detetive é
interpretado por Jorge Perugorría, muito bem. Aconselho a lerem primeiro, para
depois desfrutar da série. Há muito nas entrelinhas, um mundo de fofocas,
corrupção, o eterno medo da turma “lá de cima”, que dá as ordens e muitas vezes
sufoca as investigações. Gostaria de ir a Cuba para conversar com Leonardo. Ele
me levaria aos locais certos, tenho certeza. Ah, esqueci de dizer que em cada
um dos capítulos/livro, há boleros apaixonantes, belissimamente tocados e
cantados, principalmente por cantoras. Metais, orquestras, cheguei a procurar
uma das músicas no iTunes, mas não achei. Se acharem, me contem.
sexta-feira, 23 de dezembro de 2016
ALCEU VALENÇA - VIVO/REVIVO
“Eu
desconfio dos cabelos longos de sua cabeça se você deixou crescer de um ano pra
cá. Eu desconfio no sentido estrito, eu desconfio no sentido lato”. Alceu
Valença apareceu como um furacão. Já havia gravado um disco em parceria com
Geraldo Azevedo. Ambos iniciantes. Então veio um festival de música e lá estava
ele, com roupas maravilhosas, cabelos longos, juntamente com Paulo Rafael, Zé
da Flauta e Zé Ramalho, tocando “Vou danado pra Catende”, um galope que
conquistou a todos instantaneamente. Era rock and roll e era o mais puro
nordeste. As letras misturando imagens belas, tortas, instigantes e um cantor
agitado, olhos em brasa, como um guerreiro que toma posse de tudo ao seu redor.
Veio o disco gravado ao vivo, com poucas condições técnicas e lá estava a banda
maravilhosa com um repertório inesquecível. Pouco tempo depois, via Projeto
Pixinguinha, Alceu desembarcou em Belém onde passou, talvez, uma semana,
circulando pelo centro da cidade, fazendo amizades (ia na discoteca da Rádio
Clube escutar discos locais) e principalmente, soando de maneira estrondosa no
Teatro da Paz. Sozinho, sobre um praticável, com seu violão, trajes, cabelos
longos e o canto, não deixava ninguém quieto. Poucas vezes a música pop
brasileira foi tão bem representada naquela mistura de nordeste e rock, mais
ainda, no TP, de maneira acústica, fazendo percussão com imensas botas. Alceu
prosseguiu grande e é realmente estranho, talvez seu gênio, sei lá, que ele não
seja lembrado juntos aos grandes da mpb como Chico, Caetano, Gil e Milton.
Tornou-se um artista popular, de inúmeros sucessos. Mas creio que retomar o
repertório daquele disco “Vivo”, agora “Revivo”, com praticamente toda a banda
original, com toda a tecnologia que temos vem matar a vontade de muitos, até
porque no disco original, muitas músicas do show ficaram de fora, por conta da
duração do vinil. O verso citado no início é como uma declaração de intenções
para quem era adolescente nos anos 70. É claro que desta vez a voz não tem mais
aquele tônus de juventude e vontade de conquistar. Mas Alceu é maravilhoso em
relembrar tanta coisa boa. São repentes, galopes, baiões, maracatus com um
cantador acompanhado por guitarra elétrica e flauta. Preciso dizer que a
mixagem tirou muito da força da guitarra de Paulo Rafael, preferindo viola e
flauta. Isso foi errado. Mas adorei “Espelho Cristalino”, “Punhal de Prata”,
“Descida da Ladeira”, “Pontos Cardeais”, “Casamento da Raposa com o Rouxinol,
“Papagaio do Futuro” e “Sol e Chuva”. “Não, não quero mais brincar de sol e
chuva com você. Para o seu dedo tenho dedal. Pro seu conselho cara de pau.
Tenho janeiro, tenho fevereiro, se essa vida é um desmantelo, me mate que eu
sou muito vivo, vivo, vivo!
E
sem sair de Pernambuco, mas mundo afora, recomendo “The Bridge”, com Lenine
acompanhado pela Martin Fondse Orchestra, ao vivo no Bimhuis, Holanda, creio.
Som maravilhoso e Lenine desfilando seus sucessos tendo como acompanhamento
arranjos lindos, violinos fazendo rabecas, saxofones cruzando o ar feito
cometas, piano e percussão na linha do jazz. “A Ponte”, “A Rede”, “Hoje eu
quero sair só”, “Relampiano”, “Leão do Norte” e muitas outras são cantadas. No
mais festejar a riqueza dos pernambucanos. Alceu e Lenine já são veteranos mas
o número de cantores, músicos, atores e filmes feitos por lá mostram o
resultado de uma política cultural feita de maneira profissional e técnica. E
nós ficamos a chorar.
segunda-feira, 19 de dezembro de 2016
PAPAI NOEL PORNÔ
Honesto, íntegro,
mas amante das piadas de sacanagem. Boca suja naturalmente. Desses que dizem
palavrão com tanta naturalidade que são perdoados gostosamente. Era a atração
das reuniões de família, procurando cabelos nas mãos dos pré adolescentes,
contando suas piadas indecentes, como as definia sua esposa, que sempre fazia a
chocada, parte do número. Aposentou-se e na falta do que fazer, descia para a
portaria do prédio onde ficava contando suas piadas, seus causos, para quem se
interessasse. Boa pessoa, não tinha filhos, adorava crianças. Elas também
gostavam do velho boca suja mas carinhoso. Veio o Natal e decidiu comprar uma
fantasia de Papai Noel. Percorreria todos os andares distribuindo presentes,
sonhos e recebendo carinho. Era conhecido e todos gostariam. Dito e feito.
Desceu do último até o primeiro andar, não esquecendo de aceitar os drinks
oferecidos, às escondidas das crianças. Eram 22 andares. Três apartamentos por
andar. Quando chegou no terceiro, 302, havia moradores novos. Entrou fazendo
seu número. Notou certa formalidade, mas com um sem número de doses de whisky,
champagne, cerveja, conhaque e até alexander, a boca suja estava absolutamente
solta. Abraçava as crianças dizendo Feliz Natal, porra. Vem cá seu caralhinho, vem
pegar o teu presente, viadinho do papai, vem cá. Não deu certo. Os vizinhos
eram crentes. Foi posto para fora. As crianças ficaram chorando. Não sabe se
foi dos palavrões ou por não terem recebido os presentes. Perdeu a graça.
Voltou correndo para seu apartamento, tirou a fantasia e ficou ali pela sala,
aguardando seus parentes. Tocaram à porta. Era o síndico, meio sem graça, pois
o conhecia e também lhe tinha oferecido uma dose e o vizinho, querendo dar
queixa. Falaram. Explicaram. Já estavam saindo. Não agüentou. Resmungou alto:
tanta confusão por causa de uns caralhinhos, ora porra...
Deu escândalo. Os vizinhos se mudaram. Papai Noel
continua.
sexta-feira, 2 de dezembro de 2016
NUM SÁBADO MODORRENTO
Era
um sábado comum. Depois da hora do almoço. Calor, modorra, bate papo furado.
Atriz, ela estava em temporada. Naquela noite, o penúltimo espetáculo de grande
sucesso. Trabalhador, ele fora ao comércio comprar dois terçados para sua lavoura.
Ao invés de pegar o ônibus no começo da Presidente Vargas, pensou em ir até as
Lojas Americanas, ver alguma coisa para a filha. Na Riachuelo, um casal começa
uma briga. Ele, desses que toma conta de carros. Ela, prostituta. Têm filhos e
boa relação com eles. Mas quando brigam, junta gente. Escutei o começo da
discussão. Essa gente que mora na rua, fala muito alto, claro, a casa deles é o
mundo. Fui até o pátio ver o que estava havendo. O casal se enfrentava em
círculos. Acusações, respostas, um ou outro tapa. Os passantes incentivavam.
Mas é que o trabalhador, com os terçados, resolveu intervir. Logo o casal
esqueceu a briga e passou a discutir com o interventor. Chamei a atriz.
Barulhão. Gritos. Buzinas. Ela não veio. Então os dois homens começaram a
brigar. Caíram os terçados do pacote. A cena seguinte era na faixa de segurança
de pedestres na Presidente Vargas. No melhor estilo capa espada, os dois
duelavam com os terçados. Troquei de janela para ver melhor. No caminho, a
atriz gritava de dor pegando o dedo mindinho. O que houve? Uma topada no pé do
sofá, na pressa de ver o que estava acontecendo. O sinal abriu, nenhum carro
avançou. Um dos terçados caiu no chão. O outro saiu correndo. As árvores me
impediram de continuar assistindo. Ouço uma freada brusca. Meus amigos
engraxates, taxistas, vendedores de balas, carimbo da sorte, traficantes,
prostitutas, olhadores de carro, todos correram. Sem pensar, peguei o elevador
e também desci. Foi na esquina com a Ó de Almeida, que na época tinha outra mão
de tráfego. Um fusca vinha apressado. O trabalhador estava correndo. O outro
atrás de terçado em riste. Atropelamento. Agora o fusca estava ofegante, saindo
fumaça e o trabalhador estava no chão, morto. O motorista abriu a porta, mãos à
cabeça, desesperado. Alguém chamava o Samu. O agressor sumiu em alguma esquina.
A vida é um piscar d’olhos. A atriz louca de dor. Saco de gelo. Remédio. Tem
espetáculo à noite? Tem, sim senhor. De sapato de bico fino e salto?
Exatamente. Tudo aconteceu normalmente. A plateia foi ótima. Agradeceu, foi
para os bastidores e largou o sapato no caminho. Sentou e uivou de dor. Ainda
chegavam pessoas para cumprimentar. Só então o pé começou a inchar para valer.
Na hora da cena, nem se pensa nisso e o corpo parece compreender a urgência do
instante. Direto para o Pronto Socorro. Bate chapa. Mindinho quebrado. Doutor,
eu tenho espetáculo amanhã. É a última noite. Preciso fazer. Minha senhora, não
vai haver espetáculo. A senhora quebrou o dedo. Vai fazer uma proteção. Não põe
gesso. A senhora é que sabe. Não houve espetáculo. No dia seguinte, inchou
ainda mais. Voltou ao Pronto Socorro para engessar. Isso foi o de menos. Num
sábado modorrento, perde-se a vida em poucos instantes, sem saber nem o nome da
mulher que tentou socorrer e que, em seguida, também ficou contra si. Esse povo
da rua é mesmo complicado. Na hora da confusão, é melhor ficar apenas
observando. Eles têm códigos diferentes. Em um momento estão brigando como se
fosse o fim do mundo e logo em seguida se abraçam, trocam baseados, petecas e
vida que segue.
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