sexta-feira, 2 de agosto de 2019
SILÊNCIOS DE LAR
Estava
passando de carro e havia um engarrafamento. Aguardando, prestei atenção em uma
casa antiga, fechada, aparentando abandono. Me detive nos enfeites na fachada.
Havia uma data, como muitas vezes ocorre. 1913. Fotografei e postei no Facebook.
Muita gente comentou sobre o abandono, outros reclamando ação do Iphan. A casa
onde funcionou o Teatro Cuíra também é antiga, de 1915. Ali chegou a funcionar
até uma fábrica de algodão. Nunca morei em casa. Sou de apartamento. Mas quando
era adolescente, frequentei muito a residência da família de meu amigo
inesquecível, Abílio Cruz, ali na São Jerônimo, permitam chamar assim. Uma
porta grande, escada comprida, sala grande, alcova, outra sala e então o que
chamam de puxada, ou seja, longo corredor com vários quartos, até chegar à
cozinha e então o quintal. A Casa Cuíra, na Cidade Velha é assim. Na parte da
frente, grandes salas onde ensaiamos e apresentamos peças. Mais atrás, o antigo
proprietário como que construiu outra residência, moderna, mas guardando o
longo corredor e quartos. Há muitas dessas casas em Belém, sobretudo na Cidade
Velha. Não sou da área, mas penso que o Município, Estado e União já deviam ter
melhores idéias para sua preservação. Não vou fazer sugestões. Não é possível
que não pensem nisso, ou só acham possível com dinheiro oficial, que nunca
virá. Mas foi passando diante dessas
moradias, final da tarde, vendo senhorinhas na janela, banho tomado,
entalcadas, cheirosas, apreciando o movimento, que decidi escrever a peça “Toda
minha vida por ti”. O que atiçou minha curiosidade foi saber as histórias que
essas casas, essas senhorinhas guardavam. Os tempos de fausto. Da juventude. Os
amores. E aos poucos, a vida se esvaindo, os filhos e netos batendo asas e
ficando aquele espaço vazio, onde o vento chora, uivando de saudade. Minha tia
Adalcinda chamou isso de “silêncios de lar”, na “Bom Dia Belém”, musicada por
meu pai. Os móveis, ainda com as marcas de uso, ou envolvidos em capas brancas.
O relógio antigo, à corda, batendo melancolicamente as horas. A vida, agora,
está nas recordações. O relógio serve apenas para saber os momentos de tomar os
remédios, aguardando, aguardando. Mas tem a televisão com suas novelas. Ficam
ali, aparentemente prestando atenção, mas na verdade, passa um filme, talvez
seja o mesmo, repetindo, repetindo, dos grandes e alegres momentos, das
chegadas e partidas, das viagens, das cerimônias, da casa cheia. Não, não estão
sós, mas cercadas de todos os entes queridos, que enxergam em todos os cantos.
O sorriso da netinha, que havia nascido. É a cara de quem? O filho, bem
adolescente, aborrecido por não ter tido permissão para ir à festa de noite. O
mundo de hoje, com sua instantaneidade, nos escravizou e estamos sempre
correndo para algo que nos oferecem nas milhares de telas que nos dirigem. Sim,
o grande Irmão algoritmo que agora já sabe de nossas preferencias e opiniões
mais veladas. Entro no carro e o celular avisa que chegarei em meu destino em
tantos minutos. Estava me acompanhando? Sim. Lembro do “Prc5”, em seus 80 anos,
que aproveitei a deixa de Ítalo Calvino e suas “Cidades Invisíveis”, para
mostrar que muitos acham que o mundo começou no dia em que nasceram. Não querem
saber quem esteve aqui antes, construiu, amou, venceu, perdeu, pisou nestas
calçadas e proporcionou para que esses nascessem. Talvez, quando penso nesses
casas antigas e seu interior, esteja falando de mim.
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