Minha amiga cansou de seu
travesseiro velho, cheio de ácaros, completamente disforme e causando
torcicolos. Foi à loja procurar algo novo. O vendedor, solícito, mostrou um
artigo de luxo, travesseiro com penas de ganso. Uma beleza. Um conforto de reis.
Um sono tranquilo e reparador. A pessoa acorda disposta, alegre e feliz. Era
isso que precisava. Acordar disposta, alegre e feliz. Eu levo. Voltou para casa
cantarolando. Já era final de tarde. Não havia tempo para uma sesta/teste.
Aguardaria a noite. Fez quase um ritual para dormir. Copo de leite, pijaminha
perfumado, roupa de cama cheirando a amaciante, iluminação mínima, ar
condicionado na temperatura certa, crianças e pets a uma distância ideal.
Pousou a cabeça e sentiu a
diferença. Ah, mas que gostoso. Quero dormir assim a vida inteira. Afundou a
cabeça. Fechou os olhos. Sentiu um cheiro de galinha. Sim, cheiro de galinha.
Forte. E de repente, sua cama estava tomada por galinhas cacarejando, algumas
dando bicadas em suas pernas. Ah, dá uma espantada nessas galinhas! Em vão.
Quanto mais espantava as penosas, mais elas reagiam. Agora eram também patos
com aquele andar de gente mandona, circulavando seu corpo, na cama, feito os
Sioux cercando Custer, sabe lá, fazendo necessidades, um cheiro terrível. Meu
Deus, será uma vingança por conta desse travesseiro maldito que eu comprei? Vai
ver é condenado pelo Ibama. Sabe lá se há, até, penas de periquitos mortos
durante os fogos do Círio! Era por isso que eu sentia o cheiro. Logo eu, que
sempre fui ecologicamente correta. Eu que até criava umas galinhas no quintal.
E já lembrou da morte de frangos, com pescoço torcido, patos, perus, por conta
do Círio, Natal, Ano Novo. Fogos, periquitos caindo do teto sobre a cama! Acordou
num rompante suada, descabelada, a respiração forte e viu-se no quarto
tranquilo, silencioso, ar condicionado fazendo seu serviço. Olhou em volta.
Sentiu-se ridícula. O travesseiro. Imagine quantos gansos foram mortos, digo,
assassinados, para garantir um sono tranquilo e reparador. E se estou usando um
travesseiro desses, sinto-me parte desse morticínio. Decidiu. Levantou, pegou o
travesseiro com penas de ganso, foi até a janela e o atirou pela janela. Na
ida, tocou em algo e saiu espalhando as penas pelo ar, caindo em frente à casa.
Havia até um luar. Lá embaixo, aquelas penas todas. Bateu a dor na consciência.
Não podia deixar aquilo assim. Era errado. Os vizinhos iam passar e comentar.
Logo ela, toda certinha, cobrando civilidade de todos. Passando carão no
Cleber, o vizinho, que ouvia cd da Carroça da Saudade, bregas antigos, o
domingo inteiro. Sabe de uma coisa? Já estou acordada, vou limpar essa merda
toda que eu mesmo fiz. Onde já se viu, de repente, ter pesadelo com aquelas
galinhas e patos. Pior, não tinha um ganso enchendo o saco. Botou camisa,
short, balde e vassoura. Às primeiras horas da manhã, assoviando e passando a
vassoura para a limpeza necessária. E de repente lá vem Seu Oswaldo, seu
freguês, pegando encomendas das pessoas. Freguesa, vai querer um patinho pro
almoço do Círio? Seu Oswaldo, o senhor está vendo este balde aqui. Essas penas
todas. Eu, a essa hora, de vassoura em punho, trabalhando. Estou, mas porquê? O
bom senso veio antes da resposta certa. Seu Oswaldo, bom Círio pro senhor.
(Crônica em homenagem à querida
Papy Nunes)
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