sexta-feira, 10 de outubro de 2014

FELIZ CÍRIO A TODOS

Minha amiga cansou de seu travesseiro velho, cheio de ácaros, completamente disforme e causando torcicolos. Foi à loja procurar algo novo. O vendedor, solícito, mostrou um artigo de luxo, travesseiro com penas de ganso. Uma beleza. Um conforto de reis. Um sono tranquilo e reparador. A pessoa acorda disposta, alegre e feliz. Era isso que precisava. Acordar disposta, alegre e feliz. Eu levo. Voltou para casa cantarolando. Já era final de tarde. Não havia tempo para uma sesta/teste. Aguardaria a noite. Fez quase um ritual para dormir. Copo de leite, pijaminha perfumado, roupa de cama cheirando a amaciante, iluminação mínima, ar condicionado na temperatura certa, crianças e pets a uma distância ideal.
Pousou a cabeça e sentiu a diferença. Ah, mas que gostoso. Quero dormir assim a vida inteira. Afundou a cabeça. Fechou os olhos. Sentiu um cheiro de galinha. Sim, cheiro de galinha. Forte. E de repente, sua cama estava tomada por galinhas cacarejando, algumas dando bicadas em suas pernas. Ah, dá uma espantada nessas galinhas! Em vão. Quanto mais espantava as penosas, mais elas reagiam. Agora eram também patos com aquele andar de gente mandona, circulavando seu corpo, na cama, feito os Sioux cercando Custer, sabe lá, fazendo necessidades, um cheiro terrível. Meu Deus, será uma vingança por conta desse travesseiro maldito que eu comprei? Vai ver é condenado pelo Ibama. Sabe lá se há, até, penas de periquitos mortos durante os fogos do Círio! Era por isso que eu sentia o cheiro. Logo eu, que sempre fui ecologicamente correta. Eu que até criava umas galinhas no quintal. E já lembrou da morte de frangos, com pescoço torcido, patos, perus, por conta do Círio, Natal, Ano Novo. Fogos, periquitos caindo do teto sobre a cama! Acordou num rompante suada, descabelada, a respiração forte e viu-se no quarto tranquilo, silencioso, ar condicionado fazendo seu serviço. Olhou em volta. Sentiu-se ridícula. O travesseiro. Imagine quantos gansos foram mortos, digo, assassinados, para garantir um sono tranquilo e reparador. E se estou usando um travesseiro desses, sinto-me parte desse morticínio. Decidiu. Levantou, pegou o travesseiro com penas de ganso, foi até a janela e o atirou pela janela. Na ida, tocou em algo e saiu espalhando as penas pelo ar, caindo em frente à casa. Havia até um luar. Lá embaixo, aquelas penas todas. Bateu a dor na consciência. Não podia deixar aquilo assim. Era errado. Os vizinhos iam passar e comentar. Logo ela, toda certinha, cobrando civilidade de todos. Passando carão no Cleber, o vizinho, que ouvia cd da Carroça da Saudade, bregas antigos, o domingo inteiro. Sabe de uma coisa? Já estou acordada, vou limpar essa merda toda que eu mesmo fiz. Onde já se viu, de repente, ter pesadelo com aquelas galinhas e patos. Pior, não tinha um ganso enchendo o saco. Botou camisa, short, balde e vassoura. Às primeiras horas da manhã, assoviando e passando a vassoura para a limpeza necessária. E de repente lá vem Seu Oswaldo, seu freguês, pegando encomendas das pessoas. Freguesa, vai querer um patinho pro almoço do Círio? Seu Oswaldo, o senhor está vendo este balde aqui. Essas penas todas. Eu, a essa hora, de vassoura em punho, trabalhando. Estou, mas porquê? O bom senso veio antes da resposta certa. Seu Oswaldo, bom Círio pro senhor.

(Crônica em homenagem à querida Papy Nunes)

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