sexta-feira, 15 de março de 2019

LUGAR DE SONHO

Quando o Grupo Cuíra teve um teatro, ali na antiga zona de prostituição da cidade, seu primeiro espetáculo não somente falava daquele lugar, como também tinha metade de seu elenco formado, justamente, por prostitutas. O convívio com elas nos trouxe a possibilidade de uma convivência maravilhosa para ambos os lados. Ouvimos suas alegrias e amores, mas também percebemos o tanto de tristeza envolvido na profissão. Ali, no palco, elas se soltavam, livres, sem julgamento ou necessidades financeiras. Uma tarde de segunda feira, veio uma delas, andando pela Primeiro de Março, lateral do teatro. Estávamos ali, na porta de entrada e saída de atores. Conversamos e pediu para entrar um pouquinho. Ouvimos ruído e fomos ver. Corria em volta do palco nu, feito criança, feliz. O lugar do sonho. O lugar feliz. O Teatro é a nossa Igreja. O palco, nosso altar. Quem pisa ali não pode fazê-lo gratuitamente.

É o que fica após assistir “O Grande Circo Místico”, de Cacá Diegues, a partir de um poema de Jorge de Lima, contido no livro “A Túnica Inconsutil”. Antes, foi montado por uma companhia de balé de Curitiba, creio, com a trilha composta por dois deuses da música brasileira, Edu Lobo e Chico Buarque. O filme pretendeu ser o representante brasileiro no Oscar de melhor filme estrangeiro. Não conseguiu. Passou em Belém por poucos dias, uma sessão diária. A falta de público reflete perfeitamente o abismo, a escuridão cultural em que vivemos. Perdemos a percepção da Cultura. O sentimento, a reflexão, o conceito de beleza. Perdemos nosso intelecto. Não nos permitimos mais sonhar, vibrar, nos emocionar com a beleza. Conta a história de um circo chamado “Místico”, surgido em 1910. Na primeira parte, Bruna Linzmeyer faz “Beatriz”, a bailarina, imortalizada na interpretação de Milton Nascimento. “Me ensina a não andar com os pés no chão. Para sempre, é sempre, por um triz”. Tudo é poesia, amor e magia. Ela desce do teto, como uma rainha, seus belos olhos olham em volta uma simples plateia, como sempre, mas ali, como nos melhores picadeiros do mundo. Um palhaço tira a cartola e saem borboletas de um azul profundo e tudo vira sonho. O tempo passa e Jesuíta Barbosa não envelhece, continuando como mestre de cerimônia. Fora do picadeiro, na vida normal, nada é bonito. Amores trágicos, mortes e nascimentos. Gente que foge tentando algo mais, fora do Circo. Há vida fora do Circo? As maldades do mundo de fora são maiores. As pessoas vão passando, pais, filhos, netos. O ótimo Vincent Cassel surge, personagem malvado, querendo vender o Circo de onde acabou fugindo, levando todo o dinheiro. Juliano Cazarré faz um dos últimos donos, atrás da irmã que se foi e volta apenas para engravidar e a família seguir em frente. E então vem Mariana Ximenes, provavelmente em sua melhor performance da carreira, como uma pretendente a ser freira. Trapezista, forçada por todos a casar e ter filhos, tatuou o corpo inteiro com o rosto de Cristo e seus apóstolos. O marido não a tocou mas outro a estuprou, gerando gêmeas. O Circo segue adiante. Uma cena magnífica, momentos antes da função, trapezista rezando com uma vela, domador dizendo segredos nos ouvidos do leão, palhaços com o rosto pintado, melancólicos, fumando cigarros. O melhor lugar do mundo para estar é nos bastidores, cinco minutos antes do pano abrir. O palco é sonho. O mundo, aqui fora é uma desgraça.

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