sexta-feira, 2 de janeiro de 2015
CENAS DE UMA AVENIDA
Moro
desde que nasci na Presidente Vargas. Trabalho a pouco mais de cem metros de
meu apartamento. Convivo com um naipe de personagens de fazer inveja a qualquer
escritor. A cidade cresceu, eles invadiram a avenida que hoje está quebrada,
suja, invadida e mal falada. Diariamente vou passando e cumprimentando a todos.
Há Baldo, que toma conta de carros na praça. Magrinho, bigodinho, engraçado,
cheio de mesuras, é um bom homem a se queixar de “Navalha”, um moreno com
passagem na Polícia que o está ameaçando. Conversamos sobre o nosso Flamengo,
mas sobre Paysandu, seu clube de paixão, nenhuma palavra. Ele sabe que sou do
Remo. Há Zafá, que sempre me mostra no jornal, as “gostosas do dia”, com
comentário malicioso. Falo com o “Macho”, m cearense arretado que trabalha com
frete em uma camionete velha. Acabou de trocar por um carro novo, no qual passa
o dia passando o pano. Os motoristas de taxi do ponto em frente ao INSS. Seu
Wilson me pergunta pelo “bonitão”, que é meu Golden “Antonio”. Os engraxates e
outros que tomam conta dos carros. MC do Senhor Jesus, um rapper que vende
cartões de memória para celular e vive anunciando um grande show que nunca
acontece. Na esquina com Aristides Lobo, há uma favela no espaço que, ao que
parece, é dividido entre Prefeitura e Basa. Barracos fazem de conta que vendem
bugigangas. Homens jogam cartas. Atrás do paredão, um sem número de cadeiras e
um restaurante popular com zero de higiene, além de um banheiro improvisado,
imundo. Do outro lado da rua, calçada dos Correios, vagabundos, hippies e
camelôs afrontam quem passa. E na esquina da Manoel Barata? Um corredor polonês
é formado por vendedores de comida ao ar livre de um lado e do outro, os
clientes, comendo de maniçoba a caruru. Higiene? Passam os pratos em uma bacia
suja e vamos que vamos. Devem ser, todos eles, muito importantes, perigosos.
Sai governo, entra governo e eles ficam. Um homem caminha pela parada de
ônibus, entre as pessoas que ocupam o asfalto, não se restringindo ao passeio,
lotado por ambulantes, aos berros, fazendo leitura da Bíblia. Não há como não
ouvir a voz do Senhor naqueles decibéis, mas entra por um ouvido e sai pelo
outro. Atrás da “Presidente Vargas”, a “Primeiro de Março. Nela, ficam os
crackeiros, que expulsaram as prostitutas e agora passam o dia lagarteando ao
sol, arengando uns com os outros, aguardando a chegada de uma mulher franzina,
sem seios, que se veste e procede como um menino, e traz as petecas de crack. Lá
no Cuíra, nós os chamamos de “nossos imãs de geladeira”, pois ficam colados à
parede do teatro. Pessoas se juntam para olhar alguém que está caído. É Blake,
originalmente “Break”, por conta de uma deficiência física, provavelmente
poliomielite, que o deixou com uma das pernas mais finas e lhe causa andar
manco. Foi esfaqueado. Chamam o Samu que chega para socorrê-lo. Querem leva-lo
ao PSM. Blake não aceita. Está rebarbado. Cabelos como daquele colombiano que
jogou uma Copa. Voz de barítono. É largado com alguns curativos. A noite chega
e aquela multidão que circula por trabalho vai voltando para suas casas, o
silêncio toma conta do nosso centro. Carros de Polícia passam e inspecionam os
crackeiros que ficam contra a parede. Nunca acham nada. Impressionante. Vou até
a janela ver a lua e ouço o canto choroso de um lúmpen, sentado sobre um
colchão velho e imundo. Ele encerra a canção e olha para mim. Bato palmas. Ele
responde dizendo que a próxima canção, do Evangelho, seria para mim. E torna a
cantar.
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