sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

(OVENTO LÁ FORA)

Nós estávamos na casa de Rosenildo Franco, produzindo um programa que se chamou Sábado Gente Jovem e que apresentamos na Rádio Clube do Pará. Faltava um encerramento. Rosenildo foi até uma estante e trouxe um livro de Fernando Pessoa. Resolvemos abri-lo aleatoriamente e ler o que estivesse na página. “Nem tudo é dias de sol e a chuva, quando falta muito, pede-se. Por isso, tomo a felicidade com a infelicidade naturalmente, como quem não estranha que haja montanhas e planícies, rochedos e erva. O que é preciso é ser natural e calmo. Na felicidade ou na infelicidade. Sentir como quem olha. Pensar como quem anda. E quando se vai morrer, lembrar-se que o dia morre, o poente é belo e é bela a noite que fica. Assim é e assim seja. Ao fundo, o solo de flauta de “I talk to the Wind”, do King Crimson. A voz foi do mano Edgar Augusto. Não sei bem o que significou para os outros, mas em mim abriu uma janela para Fernando Pessoa, o famoso poeta português. Talvez pouco tempo depois, Maria Bethânia grava em disco seu show “Rosa dos Ventos”, onde declama um trecho do poema “Menino Jesus” e me arrebata. Primeiro, claro, pela beleza gigantesca dos versos. Segundo porque, trabalhando em rádio, mexendo com a melodia da voz, que dá todos os significados para quem ouve, Bethania levou-me para o mundo maravilhoso da poesia. Passei a consumir os livros lançados no Brasil. Passei a conviver com Pessoa e seus heterônimos (e o são, e não pseudônimos, porque tratam-se de personalidades e pensamentos distintos) Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Cheguei ao máximo de gravar o poema do “menino Jesus” e enviar aos amigos como presente de natal. A melodia é tudo. Mas não me tornei nenhum especialista no assunto. Apenas, de vez em quando, abro meus livros e releio meus poemas preferidos. Tenho a curiosidade em conhecer mais sobre sua vida, as circunstâncias. Por isso fiquei tão feliz em assistir o dvd “(o vento lá fora)”, onde Maria Bethânia e a especialista em Pessoa Cleonice Berardinelli declamam alguns poemas. É muito simples, como se estivessem na sala de sua casa. Tudo em p&b. A mesa, as pastas, alguns livros, copo de água, microfones. Cleonice brilha intensamente. Talvez tenha mais de 80 anos, mas é ativa e cheia de personalidade. Sua dicção é excelente. Sua melodia, reveladora. Tem o timing perfeito. A respiração. As pausas dramáticas. Chega a corrigir Bethânia aqui e ali. E revela detalhes, até mentiras de Pessoa que disse ter escrito em um jato, os poemas do “Guardador de Rebanhos”. Não foi bem assim. Nos extras, explica que há longos anos ministra cursos e profere palestras sobre o bardo português. Bethânia com sua voz poderosa, sua habilidade em encher de emoção suas interpretações. É tudo muito lindo e me pareceu imperativo recomendar aos leitores este dvd. Nosso mundo está cheio demais de realidade. Tiros são ouvidos, balas perdidas procuram por alguém. Vítimas em fuga, algozes em fúria, gente demais prometendo mortes em nome de seus deuses, enquanto outros oferecem a salvação em módicas prestações. Pessoas assassinadas por zombar de Deus. E nada é sagrado, não é? Não resisto em acrescentar um trecho de Pessoa/Alberto Caeiro, meu favorito: Mas se Deus é as árvores e as flores, e os montes e o luar e o sol, para que lhe chamo eu de Deus? Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar.
A leitura de Maria Bethânia e Cleonice Berardinelli foi apresentada uma única vez em público, na Flip de 2013. Soube que seria lançada em dvd desde o início do ano passado. Finalmente, chegou às lojas.



                                                            

Nenhum comentário: