quinta-feira, 3 de maio de 2012

Um Culto no Cinema Palácio



Achei o texto, que afinal nunca foi publicado, e resolvi postar aqui neste blog. 

Um Culto no Cinema Palácio 
 Dor, decepção, frustração. Impossível entrar no Cine Palácio e não sentir. Lembrei daquela música, “Almost Paradise”, que tocava para abrir as cortinas. Entrei, vestido sobriamente, para não despertar atenções. No lugar dos cartazes anunciando as próximas atrações, cartolinas com a “Corrente da Felicidade”, “Corrente Contra as Drogas” e outras “novidades”. Ao entrar na sala, a dor foi mais forte. Desânimo de estar em uma cidade tão anestesiada para com a Cultura. Ainda estão lá as luzes nas paredes laterais. Mas não estão ligadas. Agora há enormes fosforescentes. As cadeiras vermelhas, desiguais, culpa da última administração. E NÃO HÁ TELA! Ficou tudo devassado. O palco, quase nu e ao fundo, escadas mal feitas. Sobre o palco, foi construído há pouco e ainda está sendo pintado, uma espécie de pórtico e lá dentro, sob uma cortina de tule, parece um altar com cálice, algo assim. Mas tudo se passa embaixo.
Ao invés dos espadachins de “Scaramouche”, passam engravatados, solenes, sérios, imagino, pastores. Há um pequeno púlpito e um deles ouve o relato de suas senhoras. À minha direita, um senhor, humilde, de joelhos, gesticula para ninguém. Parece desesperado em suas preces. Chega outro. Primeiro, ajoelha com a cabeça no assento e ali fica vários minutos. Outros fazem a mesma coisa. Poderia estar em um filme de Buñuel, daquelas sessões inesquecíveis às 22.30, sextas feiras. Mas não. Está chegando a hora. O Palácio é grande e está quase lotado. Nos últimos tempos não conseguia isso. Ligam o sistema de som. Lá do alto, dois holofotes estão ligados e conforme a intensidade das orações aumentam e baixam. Ilusão. Truque. Como no cinema. Um piano toca uma melodia. O pastor pede a todos que estendam os braços para o alto. Obedeço mas, abrigado pela multidão, baixo. A prece começa lenta. Todos acompanham, não sei se repetindo as palavras, ditas lentamente, ou repetindo seus pleitos. As vozes vão ganhando volume. O pastor também acelera e de repente, canta um trecho da música. Todos acompanham. Ele sabe o break, pára e reinicia a oração. Agora fala dos desvalidos, dos que comem o pão que o diabo amassou, dos incompreendidos, dos que não têm chance, dos que vivem à margem, sem dinheiro, com as dívidas, as ameaças. E todos se encontram. A voz do pastor é teatralmente chorosa, ele diz o que todos sentem. Desespero. As vozes aumentam de volume, os holofotes aumentam a intensidade, estão quase gritando, chorando e vem mais um trecho da canção. Intervalo. Alguns enxugam os olhos. À minha frente, um homem forte, bíceps à mostra, não baixa os braços, firmes, olhando para o alto (os holofotes?), clamando. Os pastores passam reparando em quem está emocionado. Futuras vítimas? Como em “Amarcord”, de Fellini, onde a Gradisca está à disposição do príncipe.. Noto, pelo corredor lateral, a entrada de um homem forte, pasta tipo de representante de remédios. Vai para o interior do palco, onde antigamente era a saída pela Ó de Almeida. Rápido, retorna por dentro do palco, segurando sua Bíblia. Sem titubear, pega o microfone do pastor que até então chorava e comovia. Com uma voz forte, firme, transforma aquilo que era um choro, uma lamentação em uma certeza. “É Hoje! Hoje tudo vai mudar, hoje tudo vai acontecer, hoje tudo vai se transformar!”. Imediatamente as pessoas entram em transe. Gritam “é hoje!” e estão confiantes. Os holofotes piscam, o pastor fala forte, as ovelhas estão domadas. Lembro as bruxas de “McBeth” o filme de Polanski, sobre Shakespeare. A energia está no ar e ele, ciente do seu domínio, pega o break da canção que não cessa e canta, dando uma esfriada na galera. Bacanagem. Cessa a música. Ele vai começar outra jogada e de repente, lembra de “homenagear” os que pagam dízimo. “Correndo, vamos, venham deixar o seu dízimo”. Correm para pagar. Não têm medo de mostrar ternos bem cortados, poder. Afinal, Deus lhes deu a riqueza por serem fiéis. Não é isso o que todos querem? Então façam como eles. Paguem para receber em dobro. Achei que era suficiente. Saí discretamente, mas alguns olharam reprovando. Sair naquele instante? Paciência. Peguei um folheto, do Grupo Jovem, contra as drogas e perguntando se meu problema é espiritual, familiar ou sentimental. Há reuniões aos sábados e domingos. Agora reparo, na saída, uma cartolina onde está desenhada uma máquina registradora e pelos lados, sacos de dinheiro como aqueles do Tio Patinhas. É a “Corrente dos Empresários”, às segundas feiras, não lembro o horário. Vou saindo, uma mão me pega o ombro. Assustado, penso “pronto, o Edyr Macêdo mandou me pegar”. Não, era um pastor, lógico, ninguém ali passa despercebido, me perguntando se havia gostado, a que horas havia chegado e se voltaria. Perguntei pela sessão da Sexta feira, meia noite. Agora não tem mais. Pensei comigo que as sessões de cinema, aqui em Belém, também não deram certo. Disse que apareceria. Lá dentro, o clima fervia. E no térreo do Palácio do Rádio, lado a lado, várias lojas de crédito com vendedores disputando clientes, que depois vão se ajoelhar. O Cinema Palácio não merecia isto que todos nós deixamos acontecer como se não fosse com a gente. Imagino que ali, quando fecham a porta, devem aparecer os espectros de Fellini, Buñuel, Scaramouche, os grandes personagens, grandes diretores, se batendo, andando trôpegos em várias direções, perguntando “o que aconteceu?” ou “por quê???”. Não há resposta. Mais um já teve.
Cultura, quanto vales? Aqui em Belém, imagino que nada. O Cinema Palácio virou Igreja Universal de Deus e salvo algumas reclamações após as transações serem confirmadas, nada se fez. Todos nós fizemos de conta que não era conosco. Cinema é cultura. Claro que também tem sua metade comércio. Mas é Cultura, totalmente, em sua parte. A falta de público no Palácio e nos outros cinemas decorreu principalmente da ausência de Cultura na cidade. Secretarias de Cultura, Estadual (hoje completamente perdida em sua finalidade) e Municipal  não atuam. Hoje viceja o beber e pular até cansar. Ninguém quer pensar. Se vão ao cinema, teatro, música, perguntam se é drama porque já bastam os seus. Nenhum órgão público se apresentou a comprar o Palácio para mante-lo Casa da Cultura, tão bonito e luxuoso para shows, teatro, enfim. Nem os empresários que hoje só pensam em dez mil pessoas bebendo e pulando até cansar, desde que gastem, desde que paguem seu dízimo e não pensem, não tenham cultura a não ser para saber o que significa a palavra “abadá”. Nós, jornalistas, artistas, deveríamos ter feito barricadas, gritar por aí para salvar esta casa que era nossa e deixamos levar. O pessoal da Igreja faz sua parte e não temos nada com isso. Vai lá quem acredita e é trouxa, achamos. Direito de ir e vir. Mas a Cultura perdeu, com certeza. Experimentem entrar no Palácio, hoje. Dá vontade de chorar. O que fazemos conosco?

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