segunda-feira, 12 de março de 2012

Crônica encontrada no fundo do baú

PENSANDO ALTO
Escrevo, como se diz, pensando alto, ou seja, pensando e escrevendo, sem me deter em nenhuma questão. “Livre pensar é só pensar”, segundo Millor Fernandes, gênio brasileiro. Mick Jagger está percorrendo a passarela sobre a praia de Copacabana, assistido por milhões, lá e pela tv. O quadro tem luz forte sobre a figura pequena, mas articulada, corpo em movimento, músculos no lugar, pairando sobre cabeças e braços que vibram intensamente. É adorado. Todas as atenções estão sobre si. Todas as energias. E ele, aos sessenta e tantos, responde na mesma medida, injetando energia, através da música, do corpo, da voz. E no entanto, se entregasse o microfone a qualquer um, o mais alegre, quem sabe, muito provavelmente, este um não saberia dizer duas ou três palavras do hit. Do hit. Sim, porque, para a maior parte da população brasileira, algo cantado em outra língua, inglês, por exemplo, significa o mesmo que um sopro de saxofone, por exemplo. No fundo, amam a música instrumental. Ou entendem através da sensibilidade, do corpo, da voz, do som, o que Jagger quer dizer. Penso em como Mick ajudou a acabar com o mito da velhice, que a partir dos quarenta anos tornava todos os homens pessoas sérias, mais velhas. Penso também na perenidade de sua música. Hoje, isso não é mais possível. Canta “Satisfaction”, coisa de, talvez, pouco mais de quarenta anos atrás. Rapazolas, nos Estados Unidos. Keith experimenta, antes de dormir, um pedal na guitarra. Dorme, sonha, acorda e mostra para Mick. Está pronto o sucesso de todo esse tempo. E eles ainda não estão satisfeitos. Qual o segredo da banda? Algum pacto com o senhor do tempo?
Algumas vezes, tentaram acompanhar outras correntes. Quando a banda surgiu, imitava o blues dos negros que gravavam na Chess. Um dia, o empresário trancou Jagger e Richards em uma sala. Saíram quando compuseram alguma coisa. Não era possível que Lennon e McCartney já ganhassem dinheiro com isso e eles, nada. Havia Brian Jones. Ele queria sofisticar. Acompanhar Sargent Pepper’s. Quando se foi, veio um garoto bonito, excelente guitarrista de blues, embora branco, louro, olhos azuis. Até aí, Keith era guitarra ritmo. Só. Taylor foi embora. Chamaram Ron Wood, do Faces. Amigo farrista. Liberou Keith, que no entanto sola usando acordes. Estilo. E cristalizou. O estilo é esse. A partir do riff. Keith manda nessa área. Jagger ajuda na melodia e faz as letras. E vamos que vamos. No tempo da discotheque, tentaram algo mais dançante. Aqui e ali, deu certo. Voltaram atrás. Mick e Keith são donos do nome. Creio que nem Charlie Watts manda. É contratado. Bill Wyman, o “cara de pedra”, também desistiu. Contrataram Doug Wimbish, o negão do baixo. Os Stones recusam-se a fazer parte do circuito da velha guarda. Caem na estrada, mas antes lançam um cd. Mesmo que nenhuma das faixas chame atenção, tecnicamente eles excursionam para mostrar a novidade. E eu penso, novamente, guitarra e voz. Eles são diferentes. Os acordes de Keith são básicos, mas são marca registrada. A voz de Mick, potente e a imensa boca. A língua, criada por Andy Warhol. Mesmo assim. Os discos dos Rolling Stones são bons, mas já não causam tanta comoção. Qual o segredo, diante de tantos concorrentes, tantos jovens, tantas novidades, todos os dias, no mercado? Está bem, temos guitarra e voz, mas temos também uma cozinha potente, Charlie Watts e Doug. O veterano baterista, 64 anos tem um estilo maravilhoso, técnico, jazzista, básico, sem firulas. Serve ao grupo. Lá está Mick, pela passarela, sarado, barriga tanquinho e olho para o palco onde vejo dois ratos molhados, Ron e Keith. Magricelos, flácidos, Ron tentando mais uma vez escapar do alcoolismo e drogas, Keith já fora, mas para o resto da vida com as marcas da heroína. Quer dizer que esses dois ratos molhados reúnem esses milhões? Que força tem essa música, onde a maior parte nem entende a letra? Foi o chamado da Tv? Quem, lá atrás, mesmo com o auxilio dos telões, pode dizer que chegou próximo de Mick? E olha que o palco percorreu alguns metros, em trilho. Foi a muvuca? Ainda há outros aspectos a discutir. Mas já passo para o estádio Morumbi, São Paulo, onde quatro irlandeses reúnem mais de 70 mil pessoas, pagantes, para assistir o mesmo show que está nas locadoras, em DVD, divulgando o cd “How to dismantle an atomic bomb”. Super produção. Toneladas de equipamentos. Mais de cem caminhões. Cenário hitech. Nos telões, mensagens de paz, linguagem de hq, simbologia, muita velô. Eles pensam muito antes de cair na estrada. Quando vão, pisam sempre no mesmo palco, onde quer que estejam, no mundo. Tudo bem ensaiado, orquestrado, nada fora do lugar. E no entanto é rock. Ao contrário dos Stones, vinte aos mais jovens, surgidos nos anos 80, os irlandeses usaram o rock não como rebeldia, mas como veículo do catolicismo e com o tempo, da liberdade, justiça. As letras são sempre messiânicas. Bono também é baixinho, mas não tem os músculos de Jagger. Veste-se de maneira bem coberta, protegida, negro, jaqueta, óculos, enquanto o stone mostra o tanquinho o tempo todo. Um quer seduzir sexualmente, como o Peter Pan que sempre será jovem, olhar desafiador, andar altaneiro, rebolando, chamando “venha, venha ser jovem também”. O outro é o pastor, pensa nos pobres, na dívida do Terceiro Mundo, no amor incondicional. E chama uma moça para dividir as atenções. Sempre. Jagger, não. Bono foi visitar Lula. Jagger foi visitar a escola do filho que fez em uma brasileira. Bono é católico. Jagger compôs, no Brasil, o “samba “Symphathic for the Devil”. Mas tal como os Stones concentram tudo na guitarra de Keith, letras e vocais de Mick, o U2 concentra tudo na guitarra de The Edge, letras e vocais de Bono. The Edge é básico. Seus solos são simples e cheios de energia. Mas ninguém o chamaria em um concurso de guitarristas velozes e espetaculosos. The Edge é técnico. O U2 flertou com a música eletrônica. Os Stones, com a discotheque. Todos voltaram ao básico. Mas ao contrário do Stones, que fazem um som propositalmente tosco, cru, rhythm & blues, rock and roll, embora nos melhores estúdios do mundo, o U2 constrói suas músicas como uma cebola. Está nas bancas de revistas um DVD que mostra a gravação do histórico “The Joshua Tree”, álbum emblemático de sua carreira. Quando mostrada, em vários canais, a guitarra de The Edge é maravilhosa em seu trabalho de somatória, adicionando som por som, enriquecendo o todo com harmonias, enchendo os canais. E há, novamente, uma cozinha poderosa, baixo e bateria, Larry e Adam, ou o contrário, não sei. E há uma criança no palco. É durante “Miss Sarajevo”. Bono tenta fazer o garoto cantar. Mas é impossível. Ele não tem idéia do que está sendo dito. Para ele, para a maioria, Bono cantando é como um solo de sax. Não falam inglês. E fico pensando, mais uma vez, no segredo do sucesso, afinal, era um show pago, ao contrário do Rio de Janeiro. Sei que grandes nomes há muito não vinham aqui e agora chegam, aproveitando a queda do dólar. Acabam de me contar que no show dos Stones, em Buenos Aires, houve confronto com a polícia, gente ferida, mortes. Enquanto isso, percentualmente, o show em Copacabana foi absolutamente pacífico. Difícil. Dois milhões? De graça? Bebendo todas? No Rio, que vive uma guerra civil? Ou os brasileiros gostam tanto dos Rolling Stones que resolveram fazer uma trégua? Mas é fato. Percentualmente foi um passeio. Fico pensando se não é mais uma vez a alma de viralata dos brasileiros, desejando ardentemente ser aceitos no mundo. Comportamo-nos como uns bobocas, diante de gringos. Tudo o que queremos ouvir é que nos amam, nossa terra é linda, somos amigos e eles nos admiram. Pense bem. É isso. O show está sendo transmitido para outros países. Não podemos vacilar. E se Mick Jagger nos der uma esculhambação? A bela e idiota Luciana Gimenez não disse que os brasileiros deviam vibrar por Mick ter escolhido uma compatriota para ter filho? Não queremos que nada prejudique a transmissão, a gravação de DVD, de tal forma que possam dizer de nós “Brasil realiza o melhor e maior show do mundo”. Que fofos, que somos. Penso também que dificilmente outras bandas reunirão tanta gente para assistir, com dólar baixo ou o que for. O Oásis está vindo e vai tocar em casa menor. Talvez Paul McCartney. Elton John. Madonna, quem sabe. Os últimos moicanos. É que hoje há muita oferta. Diminui a perenidade. Antes, ouvíamos os discos durante semanas, degustando, decorando. Hoje, quantas vezes ouvimos o cd que compramos? Já há outro. Já há outro. Já há outro. Stones, U2 e Oásis. Curiosamente, britânicos. No mundo dos iPods, não há espaço para perenidade. A briga é grande. Bono pede e todos ligam seus celulares, iluminando o estádio. O que isso representa? Exibicionismo, tecnologia, globalismo, comunicação moderna, cerimônia da tribo, como se ao invés de celulares fossem tochas, diante do totem. Passo o show inteiro ao lado de um desconhecido. Ambos temos celulares. Não nos falamos pessoalmente. Mas estamos sempre ao celular. Somos da mesma tribo. Mandando sms. Torpedos. Fotos. Eu estou aqui, viu? Levantem os celulares, seus troféus de individualidade. Estamos em grupo, setenta mil, unidos pela música, mas não trocamos palavra com quem está ao lado. E com tanta gente indo assistir Stones e U2, penso que mais do que nunca, rock é situação. Antigamente, gostar de rock era rebeldia. O rock era um comportamento marginal, contra o mundo. Hoje, é o pai que compra a guitarra e dá para o filho. Claro, é uma forma de dizer. Continuamos sem dinheiro para comprar uma guitarra decente. Enquanto grupos de pagode, axé e calypso faturam, todas as campanhas publicitárias, todas, destinadas a jovens ou com espírito de jovialidade, atualidade, festa, usam o rock. A energia do rock. Moda, refrigerantes, tecnologia, cigarros, carros. Digo isso porque o rock não toca no rádio nem na tv. Há grupos iniciando carreira, em todo o Brasil, na linha independente, alternativa. E velhos, da década de 80, ainda em atividade, aqui e ali obtendo um brilhareco. Mas tocando na mídia, não. O jovem brasileiro quer festa. Não quer pensar. Não quer gostar desta ou daquela banda por esta ou aquela razão. Ele acha que música é apenas um veículo para se divertir, beber, pular, beijar, e depois ir para casa dormir. Não fica nada, depois do show. A música é qualquer coisa. E o rock pede atenção, pede cultura, educação, reflexão, entendimento das letras, do som, comportamento, discussão, debate, escolha. Qual a razão? A bomba Z. Há muitos anos atrás, o cearense Ednardo escreveu uma música sobre a bomba Z, que seria essa “massa atônita”. Isso. Direto. Tem muito tempo. Vinte, trinta anos. Nossa democracia é recente. No momento, há espaço somente para criminosos, ladrões, espertalhões, com raras exceções. Os bons, nesses instantes, se afastam. Vai passar, mas vivemos um momento punk. Não há investimento em Cultura, nem Educação. Não passa, pela mente dessas criaturas, sua importância vital para a vida das pessoas, para a construção de um país. Assim, o que temos é uma massa atônita. Que não sabe falar, escrever, pensar, ler. Que não tem opinião. Há pouco, a paraense Thaís esteve no BBB. Psicóloga, já trabalhando. Foi péssimo ver alguém tão despreparado para a vida. O resultado é esse. Pagode, axé, calypso. Nada contra os gêneros, mas tudo contra seus representantes, no momento. As músicas são horrorosas de letra, melodia e performance. São o grito da massa atônita. Outro dia conversamos mais sobre isso. O rock pode não ser brasileiro, mas sua força ultrapassou as fronteiras. Tanto que Copacabana e Morumbi lotaram. Não acho que o que é dos outros é melhor. Mas vivemos a globalização. É preciso misturar o que rola lá fora, com o que temos aqui dentro. Mas se não temos força em Cultura e Educação, ao invés de trocar, somos invadidos. E ouvimos Mick e Bono como se fosse um saxofone, porque não entendemos xongas. E os saudamos como caciques de algo que não entendemos. Queremos fazer parte de outra tribo, mais importante, no mundo. Queremos ser aceitos. Somos Brasil, Terceiro Mundo, capital Buenos Aires, mas temos carnaval e somos legais. Gostem de nós! Enfim. Chega, por hoje.

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