segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Dois mundos

Todo começo de ano vêm passar as férias conosco duas crianças, uma de Abaetetuba, outra que morava em Benevides e agora está morando mais próximo. O convívio é sensacional e altamente enriquecedor do que significa um outro mundo, outro universo que existe e funciona ao nosso lado. Eu diria que se fosse demonstrar naquela "teoria de conjunto" das aulas de Matemática, o nosso mundo estaria contido no deles. Começa pelo figurino, pela linguagem, pelos gostos, pela alimentação. Em tudo é diferente do nosso. O dos meninos geralmente inclui camisa de clube, bermudão e chinelos, cabelo pintado de louro. Bem, não é o caso do "nosso" menino, mas geralmente é assim. As meninas, vestem-se de dançarinas do calypso, da maneira mais absurdamente sensual/grotesca, bustiês mínimos, brilhosos, casacos jeans com tachas, saiotes ou mini shorts e tamancos de salto, não interessa se têm um, dois ou quinze anos de idade. Não têm nenhuma informação do mundo, porque não lêem jornais nem assistem a noticiários. Uma menina de quinze anos, estudando no melhor colégio de Abaetetuba, não sabe o nome das capitais brasileiras, sequer que existem continentes, nada de matemática, nada de nada. Mas conhecem toda a programação do SBT e Record, assistem clips na Rauland, não digo isso de maneira pejorativa aos meios de comunicação, mas falo de estética. É uma falácia o tal Ibope, medido no Estado de São Paulo. Audiência, mesmo, é do SBT e Record. Anos atrás, a menina que fez Tainá 2 foi ao programa do Faustão. "Quem é Faustão?" A alimentação é a mais condimentada possível, à base de mortadela, quilos de extrato de tomate e o que pintar, de Cheetos a peixe frito com açaí. A linguagem é um dialeto, mas penso que pelo número muito maior de pessoas, dialeto é o nosso. Têm concordância própria, figuras de linguagem diferente, enfim, difícil entender. Estética.
Estamos no estacionamento da Estação das Docas e lá fora, na pracinha, um vendedor de lanches toca a pleno volume (claro), um tecnobrega, acompanhado com grande prazer pelos meninos. Sabem todas as letras. São normais aquela rotação elevada, a voz do cantor ou cantora parecendo gasguita, as letras absurdas/grotescas. É o pessoal que lancha o "completo", por 1 real e eu pergunto o que pode ser completo por apenas 1 real, salgado e suco.. O cara do Media Lab está estudando o tecnobrega e como tiraram proveito dos equipamentos tecnológicos, do ritmo, sem entender nada, saber inglês, ter instrução, nada, apenas dando jeito, se virando, adaptando para sua linguagem, para seu grito por Educação, Cultura, querendo também participar do grande prato. As revistas nas bancas estão cheias de mulheres nuas. Nas novelas o sexo rola na hora do jantar. Nos programas infantis, o consumo desenfreado é estimulado e o sexo permeia as questões. Então as meninas se vestem de "periguetes" embora tenham oito, nove anos, namoram mais cedo, engravidam mais cedo, são estupradas por pedófilos, enfim, a série é longa. E desse mundo não queremos participar. Nós que estudamos em bons colégios. Que somos da classe média, falamos duas línguas, viajamos nas férias para Salinas ou Miami. Que passeamos no Boulevard Shopping e compramos roupas de griffe. Que ouvimos a Jovem Pan com suas Beyoncés e Rhiannas, falando de sexo, mas em inglês. Ou então de sertanejo universitário, ouvido bem alto nos caminhões/carros importados que passam. Que assistimos tv a cabo ou Tv Globo, com sotaque de Ipanema. Creio que deve haver diversos trabalhos em nível de universidade a respeito. Apenas não temos acesso a eles. Que merece estudo, isso merece. Depois de escrever sobre Gaby Amarantos, as crianças chegaram e penso sobre tudo isso. Penso que nossos músicos perdem seu tempo ainda influenciados por Milton, Caetano, Djavan, Chico. Influenciados por Nilson Chaves, nosso grande artista, que nunca deixou de tocar carimbó, adaptado a seu estilo. Penso que todos deviam mergulhar nesse tecnobrega, não para fazer igual, com vozes aceleradas, agressivamente agudas, pedindo socorro, as letras explícitamente sexuais, nada disso, mas fazer melhor, cantar melhor, tocar melhor, com melhores melodias e letras e estabelecer um canal de conexão, uma ponte que penso, seria muito estimulante para ambos os lados. Como está, não pode ficar. Convivemos, dois mundos, mas não nos comunicamos no que é essencial. Paralelo ao nosso que pensamos ser o verdadeiro mundo, há outro mundo de pessoas absolutamente deixadas à parte, sem Educação, Cultura, Saúde e Saneamento, mas dando seu jeito, dando nó em pingo d'água para aparecer. Quando ano pelas ruas do Centro, ouvindo os "falares", ouvindo os tecnobregas tocando de todos os lados, sinto-me estrangeiro, sinto que ando naquele outro mundo, este sim, dono do lugar.

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