sexta-feira, 23 de março de 2012

O ego falou mais alto

O pênalti no futebol é assunto até para filmes. O momento em que defrontam-se jogador e goleiro, distantes onze passos, um tendo a bola à frente e o outro defendendo um espaço de sete metros. O que se passa nesse instante? Já houve crimes, choros, decepções, vitórias em Copas. No mínimo campinho de várzea, sem grama, sem público, meio de semana e de expediente, eles estão ali, frente a frente, na cobrança do pênalti. Lembro de meu pai comentando Nelson Rodrigues, dizendo que na mais ínfima pelada existia mais drama do que em toda a obra de Shakespeare.
Pessoalmente, gosto de cobrar pênalti. Gosto daquela adrenalina, o instante, o pré climax. Para alguns, a trave tem sete ou até mais metros. Para outros, o goleiro cresce assustadoramente, vêm o medo da cobrança, a pressão que o ser humano sofre, aí vindo todas as pressões da vida, acumuladas naquele instante aterrador. Ao goleiro, todas as vantagens. Se sofrer o gol, normal. Se defender, herói. Ao batedor, a responsabilidade. Aprendi com meu pai e depois com Zico que pênalti é coisa séria e deve ser cobrado de maneira a não dar qualquer chance ao goleiro. Nada de firula. Um chute seco, forte, no canto e pronto. Se o goleiro não sair antes ou até mesmo se o fizer, não chegará a tempo. Pronto. Mas o ser humano é maravilhoso. O brasileiro, com sua malícia. Primeiro foi Pelé com a paradinha, hoje proibida, inexplicavelmente, em alguns lugares. Outro, chamado Djalminha, inventou um jeito, cheio de malícia, sangue frio, perícia e digamos, um tanto humilhante para o goleiro. Ele corre para a bola, mexendo o corpo, dando a entender que chutará em determinado canto. Com precisão de fração de segundos, seu pé como que espera o goleiro saltar e então, falso displicente, toca de balãozinho na bola, fazendo com que entra mansamente no meio do gol, enquanto o goleiro, desesperado, se arrebenta em outro lugar. Ao longo do tempo, outros jogadores mostraram-se capazes do mesmo estilo. Outros, não. Eu, por exemplo. Uma vez, tentei. Errei. Meu chute saiu certo, no meio do gol, o goleiro jogado em um canto, mas a bola, sem a velocidade correta, tocou nos pés do arqueiro. Perdi. Faltou-me malícia, perícia. Não faço mais. Um dito popular é que "pênalti é tão importante que deveria ser batido pelo presidente do clube". Meu pai contou-me, pelada no Joaquim Craque, e meu tio por afinidade Juracy de Brito, jogando na zaga, ele que se era um ótimo profissional de Anestesia, talentoso poeta e dulcíssima pessoa, no futebol era exatamente o contrário. Bola vai, bola vem, o juiz apita pênalti. Juracy, com a bola sob o braço, contesta. Não foi. Aqui não vai bater. Forma-se a confusão. Entre o respeito a meu tio e o respeito ao homem grande e forte que era, nada se resolve. Como a pelada, na época, acontecia nas dependências do Hospital da Aeronáutica, alguém sugere que chamassem o oficial do dia para "garantir a cobrança". Tio Juracy, imponente, declara: Este, nem o Alacid bate!
Todo esse nariz de cera para comentar a cobrança do jogador do Treze da Paraíba, contra o Botafogo, decidindo quem passaria à outra etapa da Copa do Brasil. Apesar da presumida diferença técnica, o jogo acabou empatado. Começam as disputas de pênalti. Entre erros e acertos, a última cobrança. Veio o jogador do Treze, um carioca desses que rodam pelo mundo inteiro, de clube em clube, procurando uma chance. Se convertesse, haveria outra série. Estavam em jogo a glória de vencer o Botafogo em pleno Engenhão, muito dinheiro para um clube da Paraíba, passando à outra etapa, a alegria da torcida de um Estado inteiro. No gol, Jefferson, goleiro reserva da seleção brasileira. O que você faria? Não, fechar os olhos e dar um bico não funciona. O que funciona é ser sério e preciso. Um chute forte, no canto, rasteiro e correr para o abraço. Mas vem o ego e joga tudo fora. Vem o jogador e joga fora a glória, o dinheiro, a alegria da torcida. O ego de um jogador que deve se considerar injustiçado na vida, que ao invés do coletivo, busca o brilho próprio, não apenas vencendo mas humilhando o goleiro da seleção, para sair correndo, mostrando sua própria camisa, consca, pedindo justiça para uma carreira inteira. Ele corre para a bola, desloca Jefferson que se joga em um canto e dá aquele totózinho de Djalminha, mas de maneira tão incompetente, tão infeliz, tão imprecisa, que ao invés de ir no meio do gol ou no canto inteiro que ficou vazio, vai lentamente na direção do goleiro que com uma das mãos a domina e sai correndo para, idiotamente também, xingar o bobalhão. Depois do jogo seus companheiros o desprezaram. O goleiro, chorando, que havia defendido alguns pênaltis. O presidente nem o deixou embarcar de volta à Paraíba. Coisas do futebol? Não. O ser humano, maravilhoso, insurgindo-se contra tudo e todos, mais do que tudo, o perdedor que mais uma vez, como sempre, quando tem tudo para ganhar, perde e fica dizendo que o azar o persegue. Enfim, é o homem e sua circunstância. Sempre.