Nunca tive muita simpatia por Magalhães Barata, o famoso militar e político que reinou no Pará durante grande parte do século XX. A implicância, inicialmente, talvez tenha a ver com minha mãe sempre lembrando da perseguição que um tio meu havia sofrido. Ela própria, em performance maravilhosa, conta de um enfrentamento que teria tido com o caudilho, na escola onde lecionava. Ainda hoje é difícil falar sobre Barata sem esbarrar em alguma pessoa, de mais idade, que também tenha algo a contar. Meu tio Líbero Luxardo lhe foi muito próximo, seja na política, secretariando ou como documentarista. Barata não era muito simpático. Baixinho, aborrecido, disparando ordens a torto e a direito, ameaçando, ouvindo, pisando forte, enérgico. Quase todos garantem que foi um homem honesto, mas que não reprimia como devia, atos escusos de companheiros.
E não é impressionante como essas pessoas acabam envolvendo milhares de outras que passam a dar o sangue, entregando suas vidas, passando a transformar seus objetivos em seus! E de ato pensado ou não, esses líderes sabem usar as palavras corretas, engolfando multidões. Não querem saber se seus seguidores serão prejudicado. Nem pensam. Para eles, é natural. Sinto isso em relação a Barata e a muitos outros.
Por outro lado, sou apaixonado por História. Estava lendo os dois tomos da biografia de Joaquim de Magalhães Barata, escrita por Carlos Rocque. Que beleza, pois ao contar a vida de Barata, também descortinou toda nossa história, principalmente até a primeira metade do século. Pessoas, lugares, momentos. Personagens que viraram nome de ruas. Viraram lenda. Parentes. E vem alguém e relembra o livro de Dalila Ohana, “Eu e as últimas 72 horas de Magalhães Barata”. Sabia da existência do livro, do sucesso de seu lançamento, na Livraria Dom Quixote, de Haroldo Maranhão, praticamente esgotando a edição. Mas não o havia lido. Compulsivo, corri ao Google e pesquisei até encontrar uma edição em sebo de Salvador. Foi o início do processo que resultou em “Sem dizer adeus”, que escrevi para Cláudio Barradas e Zê Charone apresentarem no Teatro Cuíra no ano passado e que agora retorna ao mesmo palco, durante os finais de semana de agosto.
Quando o Cuíra chegou na esquina da Primeiro de Março com Riachuelo, o prédio construído em 1905 era uma garagem abandonada. Ao iniciar a limpeza, uma prostituta, dentre as que perambulavam por ali, perguntou o que seria do lugar. Acabou em “Laquê”, o primeiro espetáculo, contando a história da zona do meretrício, ali. História. Em seguida, contamos os 80 anos da Rádio Clube do Pará. Há tanta coisa a revelar! E há Magalhães Barata, como um estandarte daqueles primeiros 50 anos. Barata no poder, traído, indo para longe e retornando, triunfal, recebido por multidão na escadinha do cais do porto e desfilando 15 de Agosto acima. Veio o projeto “Cuíra por Memórias”, apoiado pela Petrobrás e que resultará em uma grande montagem em 2012. Mas antes, movidos pela imperiosa necessidade de contar, de dizer, revelar como chegamos até aqui, veio “Sem dizer adeus”.
Como transpor para teatro o livro de Dalila? Difícil explicar. Dar a fórmula. Pior, fui levado à direção do espetáculo. Como dar um começo, meio e fim? Manter as tensões. Limitar a dois atores em cena. A cabeça de alguém que não costuma dirigir talvez tenha uma liberdade, uma falta de limites que acaba dando certo. Fui assistir aos filmes da época, feitos por meu tio Líbero e o Mendonça. Sim, as imagens. Tudo em p&b, claro. Assim será. Projeções. Personagens dialogando, instigando, traçando a teia de pequenas perversões que acabaram por expulsar Dalila de sua casa, do lado de seu homem. Como resolver questões técnicas. Difícil. E ensaiar? Cláudio Barradas, exemplo de ator disciplinado, correto, audacioso e talentoso, é de outro tempo. Ter o timing certo para responder à projeção. Difícil, bem difícil. E as roupas? As de Barata, após muita consulta, descobrimos guardadas no Museu do Estado, quando deviam estar no Museu Barata, cheio de visitantes. Fotografamos tudo e mandamos fazer. A realidade é outra, atroz. O museu está fechado, com problemas de infiltração que nunca foram resolvidos. O resto, que se esqueça. Se depender de nós, não.
Outro detalhe muito difícil foi evitar citações polêmicas, poupando familiares e até mesmo gente que está viva por aí. Queremos contar uma história, não promover um acerto de contas. Um trabalho de ourivesaria. De todos, o menos poupado talvez seja o arcebispo Dom Alberto Ramos. Barradas, padre, me diz que infelizmente, ele agiu dentro da lei da igreja, na época. No entanto, também podemos dizer que com um pouco de boa vontade, ele teria resolvido o assunto sem o toque perverso de obrigar a dona da casa a sair, por conta de extrema unção em um lar não católico, pois Barata e Dalila não eram casados.
Zê Charone entrou em contato com a família Ohana. Conversou com amigas. Cláudio conviveu com Barata. No início, pareceu incomodado, sem saber como lidar com o personagem e o respeito pela figura. Não o imite. Faça a peça. Rápido, encontrou o tom. Preciso, justo, correto. Faz uma melodia do texto falado excepcional. Aqui e ali sugiro algo, como escuto. Não tem idéia do tamanho do orgulho que sinto em trabalhar com ele. Zê é a melhor atriz de sua geração. Quem é essa mulher Dalila Ohana? Assistimos Vincere, de Belocchio. Indignação pelo desrespeito. Pela maldade. Perversidade que foi vítima. Faltava um devaneio. Está lá, no livro, quando lembra momentos a dois, especulando sobre sua morte. “Pára de falar em morte, homem!”. E como seria seu enterro? E riem, apaixonados. Não se despediram. Ele gritou e gemeu por seu nome, rodeado pela ex-mulher e filhas, mais parceiros políticos interessados até o final em dividendos. Ela, ouvindo na alma, em uma casa, quase em frente, onde morava seu irmão Rubem. Muitos vinham contar. De repente veio a notícia no rádio. Havia morrido. Ainda não. Algum tempo depois meu tio Líbero saiu do quarto e anunciou sua morte. O Pará chorou. Dalila chorou. O Pará perdeu seu grande político. Dalila perdeu seu grande amor. Tudo acabou e ficaram sem dizer adeus.
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