sexta-feira, 5 de abril de 2019

ADEUS BATUCADA

Como se fosse necessário para voltar. Não estou saindo da cidade. Mudei de endereço. Pela primeira vez na vida, saio da Presidente Vargas e Serzedelo Correa, um corredor que percorri diariamente. Meu avô dizia, como blague, que além do Grande Hotel ou Manuel Pinto da Silva, era outro município. Eu alongaria mais os limites até o final da Serzedelo Correa. Conheço cada detalhe, casa, calçada, prédios. Meu playground foi a Praça da República e lembro do dia em que a Presidente Vargas foi asfaltada pela primeira vez. À noite, as famílias desceram para passear e eu com minha bike. Brinquei no terrace do Grande Hotel, dancei nos bailes no Palace. Em casa, ouvíamos os apitos dos navios chegando ao porto. No carnaval, via os Boêmios da Campina, paletó vermelho, calças e sapatos brancos. Ainda desfilei pelo Quem São Eles, orgulhoso, cantando o samba enredo em parceria com meu pai. No réveillon, havia batidas nos postes de ferro. A Barbearia em frente ao Palácio do Rádio. A Mercearia O Vesúvio. O Cine Palácio, maravilhoso, onde assisti grandes filmes e tive a educação perfeita às sextas feiras quando Fellini, Buñuel e Godard, entre outros, eram exibidos. Mesmo quando morei mais adiante, na Serzedelo, o caminho diário ao trabalho, no Palácio do Rádio. Havia desfiles escolares e o mais importante, Trasladação e Círio. Nunca deixei de assistir em toda a vida. Agora que meus pais se foram, nem sei. Piso naquelas calçadas com respeito. Quando escrevi o musical sobre Barata, o Cuíra queria falar da história da cidade e lembramos de Calvino e suas “cidades invisíveis”. As pessoas, hoje, pisam naquele chão, onde tantos e tantas histórias passaram, como se o mundo tivesse começado no dia em que nasceram. Sem dar importância. A Presidente Vargas, hoje, é uma avenida destroçada, abandonada. Suja, esburacada, cheias de ambulantes, mendigos, párias e edifícios desertos. E é um monumento de Belém.

Morar ali é estar no centro de muitos acontecimentos. Carros guincham, ambulâncias gritam, prostitutas discutem, carros som (que deveriam ser coisa do passado) dizem propagandas. Já sinto falta de toda essa vida à minha volta. De falar com Baldo, que toma conta dos carros. Da Travestriste, detonada nas manhãs de sábado. Maria de Fátima, trabalhadora, desde as oito da manhã, esperando fregueses. Os motoristas de taxi, comandados por Seu Wilson. Dona Maria, desde as 5 da manhã vendendo cafezinho e cigarros. Alvino e sua banca de revistas. Raimundona e seu carrinho de guloseimas na parada de ônibus. Blake, que desafia as intempéries a que está exposto e continua vivinho, de vez em quando superando a deficiência motora e roubando cordões de senhoras desavisadas. Roni, Seu Carlos e José, os engraxates, que velam pela esquina com a Aristides Lobo. Não eles que precisam gostar de mim e siu, eu. Meus personagens. O corredor polonês absurdamente instalado na esquina com Manoel Barata, onde muitas pessoas comem, na calçada, em cadeiras de plástico, iguarias regionais. O Bento que aos domingos passa, impune, com seu som de. Ainda em adaptação, penso estar em uma capsula, sem nada em volta. Sem aquela vida toda que me cercava. Meu coração está enterrado lá, na Presidente Vargas.

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