sexta-feira, 7 de setembro de 2018

UM GORÓ

Você acorda assim meio tonto, pescoço doendo por conta da posição em que deitou, olha em volta e não sabe onde está. Sim, mas agora, como é que eu vim parar na escadaria do Arquivo Público a essa hora da noite? Apalpei os bolsos e estava tudo lá. Celular desligado, carteira intacta, chaves. Duas e pouco, não, quase três da manhã. Quer dizer que era só uma prova de nada e rápido eu ia acordar. Liguei para o Pedro e ele veio me buscar de moto. Estava de serviço. Uma turma que circula pelo comércio e pela Campina protegendo a galera. Primeiro baixei na Esther para comer alguma coisa. Nem havia almoçado. Hoje falei com o Ariosvaldo, o Bronco, disse ao Pedro. Quer dizer, me levaram pra falar. Hora do almoço, ia na Presidente Vargas, quebrei na Ó até a Primeiro de Março para chegar ao Largo da Palmeira. A rua é estreita. As calçadas, também. Alguém me tocou o braço. Mano, o chefe quer falar contigo. Um carro ao meu lado. Vidros negros. Abriu a porta. Me empurraram antes que pudesse esboçar defesa. Desculpa aí, cara, é só uma conversa. Chuta, põe a venda nele. Chuta? Porra, não aperta tanto. Doutor escritor, não encrespa com o Chuta. Ele é assim meio mão pesada, mas é boa gente. Sabe porque Chuta? Porque chuta pra caralho! Riram. Havia mais pessoas. Rodamos pelo comércio. Trânsito lento. Mas eu sei que acabamos na Primeiro de Março, ainda, mas para trás, depois da Carlos Gomes. Conheço a região na palma da mão. Abriu uma garagem. Tiraram a venda. Subimos. Taí, chefe, o doutor escritor, como o senhor pediu. Ninguém aperreou, até contamos piada, tudo limpeza. Boa tarde, cara, senta, por favor. Me disseram que tu és viciado em Coca Zero, é? Balancei a cabeça. Trás uma aqui pro doutor, estupidamente gelada. Deixa eu te dizer: eu sou o Ariosvaldo, mas a galera me chama de Bronco, apelido de infância. Tu sabes, a gente conhece quem mora por aqui. Sei muito bem onde é teu muquifo ali naquele prédio antigo, sei daquele teu cachorro que morreu de repente, pqp, o cachorro era bonito pra dedéu! Mas é que tu andas fuçando muito aqui e ali e aí, sabe como é, essa área é do meu controle. Porra, tu me vai na Paraíso Perdido com o Pedro, gente boa, me dou com ele, te protegendo, depois circula pelo Veropa, perguntando. Então já te encontram no 77, ali junto dos fundos do Basa, perguntando. Porra, eu nunca te vi metido onde não devias. Até soube dos livros e tal, mas sabe, eu não ando com tempo pra ler. Eu lia, verdade, mas dava sono. Lembras daquele livrinho que vendia na banca, da Brigite Montfort, o ZZ7, acho? Porra, escritor, me diz o que é que tu estás querendo, porque eu não deixei ninguém chegar junto por respeito. Gente letrada, gente boa, sabe como é. O que é que tu estás procurando?
Naquele dia, o movimento no cassino tinha sido pequeno. Eram o quê, umas quatro e meia e todo mundo havia se mandado. Tito, vigia noturno do estacionamento na esquina da Primeiro de Março com General Gurjão olhou quando passou um carro de bacana em marcha lenta. Acendeu um Carlton, que na verdade é Dunhill e se encostou. Alguém saiu. Se acocorou na porta lateral de onde era o Teatro Cuíra. Demorou uns três, quatro minutos, voltou pro carro e saiu rápido. Deixa pra lá. A essas horas, tudo pode acontecer nessas bandas. Quando estava entregando o serviço pro Boró às seis e tanto, passou um carro de Polícia e parou. Desceram. Umas putas gritaram. Alvoroço. Fui lá ver. O Matinho, porque era só na maconha ou crack, tava morto. Foi no pescoço. Um corte fino, quase degolava. Linha encerada. Aquela garganta exposta. O polícia perguntou se alguém tinha visto. Olhou pra mim. Eu não, cara, eu.

Expliquei pro Bronco. Era pesquisa para um livro. Não tinha nada a ver com os negócios dele e nem iria botar nada que comprometesse. Escrevo ficção, cara, fica tranquilo. Então, tá. Vou confiar em ti. Mas tu já me conheces e no meu negócio eu não brinco nem sou educado, tá? Valeu. Os caras vão te dar um goró aí, dose fraca, só pra tu dormires um pouco e não saber esse endereço aqui, certo? Porra, vê se não é muito forte, aí..

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