sexta-feira, 18 de maio de 2018
TODOS TÊM SEU DIA
Foi
o mau cheiro que chamou a atenção. Começou o disse me disse. O Pássaro Preto
morreu. Ninguém tinha coragem de entrar no barraco. Chamaram o Samu. Chama a
Polícia? Tédoidé? Os caras vão entrar quebrando tudo. Vai sobrar pra gente. Demorou.
O cheiro piorou. A ambulância chegou. Porta fechada. Bateram. Nada. Ele morava
só. Arromba ou não arromba. Entraram. Tudo humilde. Pequeno. Fogão, filtro,
televisão antiga, ainda de “bunda grande”. O corpo estava na rede. Ainda
chamaram. Seu Pássaro Preto! Nada. Estava começando a endurecer. Alguém foi até
a porta e disse que estava morto. Mas ninguém entrou. Medo. Até morto o cara
metia medo. Os enfermeiros ligaram pro IML. Mexeram nas coisas. O documento.
Ariovaldo Brasil de Seixas. Da porta, disseram: é o Pássaro Preto! Quem? Ele. O
morto. Vocês que são vizinhos, não viram nada suspeito? Ninguém entrou na casa?
Todos balançaram a cabeça. Nem que tivessem visto, diriam alguma coisa. Me
arranja uma vela? Deitaram o corpo do morto em uma mesa. Acenderam uma vela.
Foram embora. Outro chamado. Ali ficou. Ninguém em seu velório. Um dos
moleques, curioso, fez que entrava. Um grito da mãe e parou. Chegou uma
viatura. O que foi que houve? Desembucha. O vizinho morreu. O Samu veio, né?
Ligaram pra gente. Está morto. Sabem como foi? Silêncio. Viram alguém estranho
entrando? O corpo não tem sinal de luta, nada. Os policiais entraram. O mais
velho saiu abalado. O Pássaro Preto morreu. Todo mundo tem seu dia. Aí chegaram
uns e fizeram uma roda. Ele não prestava. Era muito calado. Não falava com
ninguém. Soube que ele matou uns caras aí. Quer dizer, ouvi falar, né? Sai
outro soldado com um revolver e munição. O mais velho disse que, se não tivesse
de apreender, ficaria com a arma, de recordação. Isso é uma relíquia. Sim, o
Pássaro Preto era pistoleiro. Matava por encomenda. Talvez o mais velho. Estava
acomodado. Superado. Agora tinha poucas encomendas. E tu contas assim,
tranquilamente? Porquê nunca foi preso? Esse monstro devia era estar na cadeia
pra vida inteira. Ele era esperto, matreiro. Não matava por prazer. Era um
trabalho como outro qualquer. Sem emoção. Matou um cara no banheiro do estádio
da Curuzu. O cara foi mijar durante o jogo. Matou e depois foi comer
churrasquinho de gato. Ficou assistindo a confusão. Um tiro. Não gostava de
gastar bala. Começaram a chegar outras viaturas. Uma romaria. A gente não dá
nada por ele, né? Baixinho, velhinho. É? Te mete. O moleque foi abelhudar pela
fresta da casa, ele pegou pela orelha. Foi pro hospital com a orelha descolada.
Pergunta se o pai do moleque foi tomar satisfação. Uma mulher perguntou se o
soldado sabia se ele tinha algum parente. Alguém para reclamar o corpo. Não.
Acho que ele era só. Ninguém vai entrar na casa por medo? O cara está morto,
gente. Sabe lá. Ele parecia ter parte com o diabo. Se vestia de preto. Usava um
desses chapéus de boêmio, sabe? Dormia de dia. Saía de noite. Uma vez chegou
bêbado, tropeçando. Não conseguiu abrir a porta da casa. Dormiu sentado. A
minha mulher disse que eu devia ir lá ajudar. Tédoidé? O IML chegou. Vai fazer
a autópsia. O camburão foi embora. Os vizinhos invadiram a casa para levar o
que pudessem. O corpo ficou na geladeira. Disseram que foi ataque no coração.
Fulminante. Mas o enterro foi de luxo. Ninguém sabe quem pagou. Caixão de luxo,
coroas e cemitério particular. Não tinha ninguém na hora de enterrar. Mas o
enterro foi de primeira. Todo mundo tem seu dia.
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