O apartamento está vazio. Ela não
mora mais aqui. Saíram móveis, quadros, lembranças. Estão arrancando o carpete.
Ressurge o piso de tacos, antigo e perfeito. O salão de entrada, vazio, parece
ainda maior. Construção antiga. Janelas grandes, pé direito alto. Olho para o
canto onde armava a árvore de natal. Do corredor vem um vento interessante, ao
mesmo tempo levando para longe tudo o que ali aconteceu, mas também trazendo
aquelas crianças levadas, correndo pela casa, circundando a grande mesa de
jantar em algazarra. Lembrei de Adalcinda, certa noite, de pé sobre uma
cadeira, declamando para convidados. Meu pai, após a passagem da Santa,
distribuindo bebida e já com o violão, para iniciar os “trabalhos”. E agora, de
onde assistirei o Círio? Nunca perdi nenhum. Sempre dali, abraçado a ela. Passo
à sala de refeições onde não há mais nada, apenas um armário velho. O pai
chegava mais tarde, da Radio, por causa do programa de esportes. Ela comandava.
Os danados, se provocando. Vocês sabem. Sabem? Sigo um itinerário nào
planejado. Deixo-me levar pelo vento, quem sabe, que desnuda os aposentos, já
desnudados. As paredes também estão nuas. Ela gostava de pintores
regionalistas. Amazônia, sempre. Um foto gigante, feita na fatídica final
Brasil e Uruguai em 1950, na entrada. Em breve vocês a encontrarão em um
bar/restaurante famoso. Existe um lugar. Passaram tantas empregadas, mas a
rainha foi Adelina, a nossa Biá, que nos criou e encheu de afetos e mimos.
Entro e me ponho a lembrar. Então percorro os quartos enormes, mais ainda, sem
móveis. Revivo as brincadeiras, lembranças boas de uma infância e adolescência
feliz. Uma vez, tão criança, outra mocinha, que trabalhava, me pedia para
chutar uma bola. Eu hesitava. “Achuta, bestão!”. Recebeu graves reprimendas.
Imaginem. Ou a cômoda, que não há mais, transformada em diligência de filme
de cowboys, perseguida por índios
terríveis. A cama em que meu pai sentou e tocou, ao violão, a melodia que fez
para meus versos, no samba enredo “Cobra Norato, Pesadelo Amazônico”, do Quem
São Eles, cantado pelo irmão. Outros dois quartos já estavam divididos há
muito, um escritório para cada um, pai e mãe. Seguro, apaixonado, uma máquina
datilográfica “manual”, as aspas são pelo peso que tem, onde meu pai teclava rápida
e velozmente, usando uns dois dedos de cada mão. Previdente, ela me inscreveu
em um curso de Datilografia. Ia emburrado, hoje agradeço. Penso se devo entrar
em seu quarto. Ela esteve ali nos últimos meses. Mesmo morando só, com
cuidadoras, sua presença ocupava todo o apartamento. Passo uma vista d’olhos em
seus escritos, à mão ou datilografados. Amazônia, sempre Amazônia. O quarto era
lotado. Móveis, santos, livros, tv, penteadeira. No criado mudo, um verdadeiro
exército, um time perfeito de imagens sagradas. Santo Antonio sempre foi o
preferido. Agora é um vazio. Posto-me ao centro e giro memorizando cada coisa
que ali fez a vida. O vento circula, talvez comece a chover. Será que vou
embora? Estático, a mente cheia de recordações. Meu pai dublava em casa,
trancado em um quarto, jogos do Brasil na Copa de 62. Ameaçados de torturas
terríveis, não podíamos fazer barulho. Horas terríveis para crianças tão
danadas. Nasci nesse prédio, onde passei infancia e adolescencia. Adulto, vim
duas vezes por dia, todos os dias. Agora é como se alguém estivesse apagando o
cenário em que vivi. Cenário físico. Na mente, nunca me esquecerei. Muito menos
dela. Minha mãe.
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