sexta-feira, 9 de março de 2018

ELA NÃO MORA MAIS AQUI

O apartamento está vazio. Ela não mora mais aqui. Saíram móveis, quadros, lembranças. Estão arrancando o carpete. Ressurge o piso de tacos, antigo e perfeito. O salão de entrada, vazio, parece ainda maior. Construção antiga. Janelas grandes, pé direito alto. Olho para o canto onde armava a árvore de natal. Do corredor vem um vento interessante, ao mesmo tempo levando para longe tudo o que ali aconteceu, mas também trazendo aquelas crianças levadas, correndo pela casa, circundando a grande mesa de jantar em algazarra. Lembrei de Adalcinda, certa noite, de pé sobre uma cadeira, declamando para convidados. Meu pai, após a passagem da Santa, distribuindo bebida e já com o violão, para iniciar os “trabalhos”. E agora, de onde assistirei o Círio? Nunca perdi nenhum. Sempre dali, abraçado a ela. Passo à sala de refeições onde não há mais nada, apenas um armário velho. O pai chegava mais tarde, da Radio, por causa do programa de esportes. Ela comandava. Os danados, se provocando. Vocês sabem. Sabem? Sigo um itinerário nào planejado. Deixo-me levar pelo vento, quem sabe, que desnuda os aposentos, já desnudados. As paredes também estão nuas. Ela gostava de pintores regionalistas. Amazônia, sempre. Um foto gigante, feita na fatídica final Brasil e Uruguai em 1950, na entrada. Em breve vocês a encontrarão em um bar/restaurante famoso. Existe um lugar. Passaram tantas empregadas, mas a rainha foi Adelina, a nossa Biá, que nos criou e encheu de afetos e mimos. Entro e me ponho a lembrar. Então percorro os quartos enormes, mais ainda, sem móveis. Revivo as brincadeiras, lembranças boas de uma infância e adolescência feliz. Uma vez, tão criança, outra mocinha, que trabalhava, me pedia para chutar uma bola. Eu hesitava. “Achuta, bestão!”. Recebeu graves reprimendas. Imaginem. Ou a cômoda, que não há mais, transformada em diligência de filme de  cowboys, perseguida por índios terríveis. A cama em que meu pai sentou e tocou, ao violão, a melodia que fez para meus versos, no samba enredo “Cobra Norato, Pesadelo Amazônico”, do Quem São Eles, cantado pelo irmão. Outros dois quartos já estavam divididos há muito, um escritório para cada um, pai e mãe. Seguro, apaixonado, uma máquina datilográfica “manual”, as aspas são pelo peso que tem, onde meu pai teclava rápida e velozmente, usando uns dois dedos de cada mão. Previdente, ela me inscreveu em um curso de Datilografia. Ia emburrado, hoje agradeço. Penso se devo entrar em seu quarto. Ela esteve ali nos últimos meses. Mesmo morando só, com cuidadoras, sua presença ocupava todo o apartamento. Passo uma vista d’olhos em seus escritos, à mão ou datilografados. Amazônia, sempre Amazônia. O quarto era lotado. Móveis, santos, livros, tv, penteadeira. No criado mudo, um verdadeiro exército, um time perfeito de imagens sagradas. Santo Antonio sempre foi o preferido. Agora é um vazio. Posto-me ao centro e giro memorizando cada coisa que ali fez a vida. O vento circula, talvez comece a chover. Será que vou embora? Estático, a mente cheia de recordações. Meu pai dublava em casa, trancado em um quarto, jogos do Brasil na Copa de 62. Ameaçados de torturas terríveis, não podíamos fazer barulho. Horas terríveis para crianças tão danadas. Nasci nesse prédio, onde passei infancia e adolescencia. Adulto, vim duas vezes por dia, todos os dias. Agora é como se alguém estivesse apagando o cenário em que vivi. Cenário físico. Na mente, nunca me esquecerei. Muito menos dela. Minha mãe.

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