domingo, 1 de abril de 2012

Eu fui George Harrison

Mal cabíamos no reflexo do espelho do armário que havia em nosso quarto. À frente meu irmão Edgar, que alternava entre ser John Lennon e Paul Mccartney, abusando de sua condição de mais velho e dono dos discos dos Beatles. Mais atrás, às vezes estava minha irmã Celina, não lembro bem fazendo o quê e então eu surgia, como George Harrison. O som rolava na pick up e nós fazíamos mímica, tocando guitarras imaginárias. Assim, eu fui George Harrison várias vezes. Escrevo isso porque acabei de assistir a primeira parte do documentário feito por Martin Scorcese sobre a vida do Beatle guitarrista. Ainda falta a segunda parte.
Naquele tempo, as notícias eram escassas. Às vezes chegavam em radiofotos nos jornais, nas revistas semanais. E aí, líamos que os Beatles flertavam com a cultura indiana, através de um guru, que se revelou, mais tarde, um charlatão. Que George praticava a cítara com Ravi Shankar. Quem? Uma gravadora lançou seu disco. Fomos ouvir. Muito estranho. Interessante. Ouvíamos sem graça de dizer que não entendíamos nada. Interessante.. Aí veio a primeira música no “Revolver”, acho. Hum. E “Within without you”, no “Pepper”, um primor de junção de duas culturas. George Martin diz no documentário que George apareceu com algo bem fraco. Ele avisou que precisava melhorar. Os outros estavam jogando pesado. E George voltou com isso.
As cítaras dialogando com as cordas. Palmas para Martin, também. E George? Ele sentia muito o peso de Lennon e McCartney. Desde o início. Era o mais novo, de gênio calmo, discreto, mas fervendo por dentro. “Era como se eu e Ringo fôssemos acompanhantes dos dois. A banda era deles, para muitos”. Realmente, parecia. George sofria para incluir suas músicas no repertório. Isso o irritava muito, mas agora, vendo o conjunto de sua obra, penso que ele teve o que merecia, pouco mais, pouco menos. Ao contrário do que se pensa, não aceitou com fleugma britânica a ida de sua esposa Pattie para os braços de seu amigo Eric Clapton. Quando foi comunicado, reagiu fortemente para, no fim, perguntar que ela queria mesmo ir com ele. Assim, de fora, acho que Pattie (quem sou eu?) foi uma idiota. Eric, naquela época e por muito tempo, foi um imbecil drogado, que embora tenha feito grandes músicas e solos, na maior parte do tempo nem sabia onde estava, segundo declarações em sua biografia. Mas George estava em outra. Abandonou as drogas. Levaram-no para passear em San Francisco, o mítico lar do flower power. Quando chegou lá, foi cercado por drogados, imbecis, vagabundos e se deu conta que uma coisa é experimentar, outra é mergulhar e estragar a vida. E a filosofia que encontrou na cultura hindu o interessou. Os deuses, a meditação, coisa que o acompanhou pelo resto da vida. Não seguiu adiante com a idéia de aprender a tocar cítara. “Quando percebi que por mais que praticasse, não chegaria aos pés de um razoável músico indiano, voltei para a guitarra.
Eu era ainda muito jovem e trabalhava na programação da Rádio Clube quando recebi o compacto, disquinho de vinil com apenas uma faixa de cada lado, com My Sweet Lord de um lado e Isn’t it a pity do outro. Lembro de chegar em casa e mostrar ao Edgar, triunfante. Ele ainda não recebera por estar agora devotado ao departamento de Esportes. Eu embarcaria naquele dia ou depois para o Rio de Janeiro em férias, o que aumentou sua revolta. Deixa comigo, pedia. Eu o torturava, como somente os irmãos fazem uns com os outros. No fim dei a ele. No lado B, George lamentava a separação de Pattie. “Não é uma pena? Não é uma vergonha, o jeito com que partimos nossos corações, um do outro”. Do outro, o maravilhoso hit maker pega o cântico dos hare krishna e o coloca no mundo. Há alguém, hoje, que não saiba cantar? Tempos depois, foi condenado por plágio de um hit dos obscuros The Chiffons, mas acho que foi coincidência musical. Ele não fazia a linha. E veio também o maravilhoso e triplo All things must pass, com vários hits que ele haviam sido negados pelos Beatles. E muitos outros. Penso que foi um grande guitarrista de rock and roll, o que pode ser notado nas gravações da banda e mesmo em seus discos solo. Um grande melodicista e letrista. Seu estilo com a slide guitar projetou a maneira de tocar, mas fixou o seu jeito. Seus solos foram incorporados de tal forma que se tornaram parte indissolúvel das canções. Cantamos as letras e assoviamos ou cantamos os solos. Isso é que é ser bom. Hoje não sei quem foi melhor. Houve um tempo em que o considerei mais equilibrado, talvez para discordar do Edgar. Ou Ringo, que foi gravar seu trabalho definitivo no primeiro solo de Lennon, aquele que tem “Mother”. É difícil vencer a massa musical de Lennon e McCartney. Se ainda assim, aqui e ali ele furou o bloqueio, como em “Something”, gravada até por Frank Sinatra, o cara era mesmo muito bom.
Bacana ver no documentário, seus pais e irmãos, que ele sempre manteve fora dos cliques. E Eric Clapton dizendo que muitas vezes, ao lado de George, completamente ignorado, teve que se valer do famoso “eu sou amigo de George”, para entrar aqui e ali. O cara era o tal, vivendo no mundo material. E olha, foi um prazer ser você, George Harrison.

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