Para mim, o mundo se divide na esquina da Tiradentes com a Quintino Bocaiúva. Ao menos, para os que usam a Tiradentes, em direção ao centro. Explico: o trânsito é forte e recebe carros da Antonio Barreto, bem como da Doca. É uma subida intensa, e desafia a habilidade dos motoristas em manter o carro embreado, mas parado. Quase chegando na tal esquina, uma faixa contínua avisa, segundo as Leis de Trânsito, que está proibida a ultrapassagem. Portanto, quem quiser dobrar à direita, para a Quintino, deve, bem antes, escolher o seu lado, bem como os que seguirão em frente. Mas aí é que está. Enquanto uma minoria, que seguirá em frente, obedece às instruções, a maioria, fiel à máxima de “sou brasileiro e tenho de levar vantagem em tudo”, aproveita-se e vem, lépida, esperta, alegre e saltitante, ultrapassando os “idiotas obedientes”, seguindo em frente, ganhando alguns metros, se tanto. Vale a pena se preocupar com isso? Bem, eu me preocupo. Infelizmente, para mim, vem de dentro uma espécie de espírito punitivo, talvez de outra encarnação em que posso ter sido um professor durão, um daqueles legionários que surrava escravos na nau onde estava Ben Hur, sei lá, pois vem de dentro, num crescendo, e preciso reagir. Acho que faço a minha parte.
Há motoristas de táxi, e me vem uma baba sagrada, por sabê-los interessados em qualquer nesga por onde possam levar vantagem. Há garotos em carros fantásticos, enormes, ansiosos para demonstrar sua ousadia e competência, em driblar os bobalhões, ali, na fila. Há estúpidos, sempre aborrecidos, que cometem o ato, meramente por grosseria. E mulheres com falso ar ingênuo, tentando levar vantagem. Eu gosto. Antevejo. Percebo sua chegada discreta, atabalhoada, dissimulada, agressiva. Vejo nisso, um quadro da nossa sociedade. Toda a má educação, a falta de cultura e civismo que nos assola, não interessa a marca e o ano do carro. Eles se aproximam, certos que no momento preciso, me cortarão a frente e ganharão os tais metros, saindo felizes, sorriso no rosto, pensando “mais um idiota para trás”. Só de pensar, me dá um arrepio. Eles vêm, com a certeza da impunidade. Não tem a ver com superioridade econômica, luta de classes, sei lá. É Cultura contra Barbárie, essa, mesmo, que se instala, lentamente nesta cidade de arranha céus desertos, mas com apartamentos vendidos, totalmente, ainda na planta. É preciso boa noção de espaço, domínio do carro e do tempo. Sangue frio. Dissimulação. Estamos lado a lado. Com um discreto olhar, de relance, percebo sua intenção, a respiração do carro, com seu pé no acelerador, a posição em diagonal para realizar a manobra. Percebo sua intenção. Permaneço estático, como um leso, mais um leso a ser enganado, vencido. Fico ali, inerte. É preciso manter mínima distância do carro à frente, mesmo que seja uma subida. É agora. Uma pequena aceleração e o bico do meu automóvel toma a frente, para susto do oponente. Ué, o que aconteceu? Pior, a partir daquela esquina, a Tiradentes fica mais estreita, exatamente para a esquerda, de onde vêm os obedientes “idiotas”. Assim, com o bico do carro à frente, resta ao então confiante e panaca do outro carro, a calçada, a não ser que freie, repentinamente, inesperadamente, um corte nas suas certezas, e aguarde a próxima nesga, para, ainda assim, fazer valer sua manobra irregular.
Minha mulher se irrita com meu ato, por mais que concorde ser um absurdo aquela esquina. Estamos juntos e vamos chegando ao ponto. Ela, no banco do carona, percebe o “adversário”. Sabe o que vou fazer. Reclama. Eu sei que ela me olha, mas estou ocupado, trabalhando. Digo para não torcer contra. Quero sua cumplicidade. Depois, é só olhar pelo retrovisor suas pragas, reclamações, como garotos apanhados em travessura. Alguns vêm atrás, ligam farol alto, querem vingar-se, mas a rua é estreita, não permitindo ultrapassagem e alguns metros adiante, a maioria cai em si e percebe que estava errada, deixando para lá. Também não é toda vez que venço a parada. Há alguns mais rápidos, sagazes, audaciosos ao ponto, último ponto, em que decido perder a parada a talvez, machucar meu carro. Fico irritado, mas alguns metros depois, já passou. Minha mulher não gosta, mas já me confessou ter feito a mesma coisa, estando ao volante, talvez, ela me disse, por estar na TPM. Não tenho TPM, nada assim, a não ser as irritações do dia a dia, mas para mim, o mundo se divide naquela esquina. É mais forte. Já vi outros “colegas” fazendo a mesma manobra. Que bom não estar sozinho nesta guerra. Alivia o peito. Amansa o tal “espírito punitivo”. Mas antes de tudo, é um pedido a cada um, para que retornemos à civilização e suas leis. No mais simples ato, como esse, na esquina da Tiradentes com a Quintino, está resumido todo o nosso problema. O mundo se divide ali. De que lado você está?
4 comentários:
Prezado Edyr,
Consciência aliviada após a leitura de seu texto... Ufa!
De que lado estou? Na faixa da esquerda, para seguir em frente, é claro!
Abraço
Fiquei assustado quando li o texto no Blog Trânsito Caótico de Belém. O susto decorre da trombada com um texto que, aparentemente, descreve tudo que eu penso, ainda mais em uma situação minha, na minha cidade.
Eu faço a mesmo coisa, o "besta" que vem na faixa certa desde onde seja preciso, mesmo que seja desde a Doca. E é incrível que faça a mesma coisa, sempre, e que seja tudo igual, até a bronca da namorada... Adorei o texto, muito bom mesmo.
é ótimo na tpm rsrsrsrs
Obrigado, amigos. Bom saber que não estou sozinho nessa..
Edyr
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