sexta-feira, 3 de julho de 2009

Ser ator no Pará e no mundo

Escrever sobre o papel do ator em Belém e em qualquer lugar do mundo é um tema tão gigantesco e difícil que tenho vontade de desistir já ao enunciar o título. Um olhar de fora, talvez. Assim como posso dizer, com orgulho, que vi Bibi Ferreira e Rubens Correa em ação, posso dizer, mais orgulhosamente ainda, que não apenas vi, mas convivo e sou amigo de um gênio chamado Cacá Carvalho. E que o teatro, seu mundo, seu palco, é o começo e o fim de todo o mundo. Que não há melhor lugar, que os bastidores de um teatro, nos poucos minutos antes de abrir as portas à platéia, todos em seus lugares, o espetáculo vai começar. Meu avô foi diretor do Teatro da Paz. E foi lá que assisti meus primeiros espetáculos. Então vieram Geraldo Salles e José Maria Villar me pedindo Foi Bôto Sinhá. Tímido, nem fui aos ensaios. Na estréia, blackout, tambor de carimbó, arrepio e emoção. Agora estou na coxia, vendo Cleodom Gondim, no papel de Malcher, na peça Angelim, sobre a Cabanagem. Aquele homenzarrão, espada em riste, dá seu texto, enfrenta a platéia, e no entanto, noto que treme de emoção, nervosismo, pelo embate. Como uma folha, ao vento. Tão forte, potente, tão frágil, leve. Naquele instante, pode tudo. É Malcher, tomado, visceralmente. Antes, veio Cacá Carvalho com Antunes Filho e mudou tudo, revirou a minha cabeça. Por isso escrevi Angelim. As cenas de multidão, congelamento de cenas, papéis prateados flutuam, iluminados frenéticamente em um quadro lindo. Não precisa ser visceral. Ou isso pode vir de outro lugar. Vêm Gilda e Convite de Casamento. E vem Cacá, de Pontedera. Agora, os atores traçam percursos no palco. Zê e Cláudio. Cada um o seu. Depois ele vem e mistura. E somente três dias antes da estréia, põe o texto. Quando o ator diz e mostra com o corpo algo relativo ao texto, para a platéia entender, o artista está, na verdade, pessoa, contando, exprimindo com toda sua verdade, algo pelo que passou intensamente. Emotivamente. Deu pra entender? Não. Pois é. Não é de primeira.
Na primeira cena de Hamlet, um extrato de nós, onde era mostrado o velório do rei, havia, de verdade, uma mulher na Igreja de Lourdes, pedindo bênçãos à imagem; uma mulher pagando a conta no caixa do supermercado; um vigia noturno que é despertado por um ruído possivelmente feito por um rato; uma adolescente em um banco de ônibus olhando-se no espelho e retocando a maquiagem; um rapaz entre as poltronas do cinema Ópera. “Saiam e me tragam pessoas. Seus gestos, emoções, sua compreensão do mundo”. O que se está mostrando, não é o que se está sentindo, mas o que se está sentindo é verdadeiro o suficiente para conferir emoção e verdade genuínas ao que se mostra, entende? Ser ator é muito difícil, dependendo do ângulo. É riquíssimo. Um poço onde mergulham para discutir suas vidas, suas verdades, crenças, a partir e à procura de personagens, de tal forma que possam enriquecer outros, a platéia. É o detalhe do dedinho do pé, das mãos, olhar, postura, sob o comando de um diretor, preso a uma estrutura, mas com todo o poder que uma pessoa com sua auto determinação tem.
No espetáculo PRC5 A Voz que fala e canta para a Planície, estive no palco, em um papel que misturava meu avô e meu pai. Não eram personagens. Era também meu próprio personagem. Nada me foi pedido em termos dramáticos a não ser a postura de um locutor das antigas. Uma vez, no ensaio, esqueci o texto. Ficou aquele silêncio, quebrado por uma das diretoras, dando a dica. Deve ser terrível o tal branco, diante de multidão, revelando a fragilidade onde havia até uma invencibilidade. Nos bastidores, mais do que nunca, o convívio. Paulo Santana, nervoso, detalhista, no pé dos mais jovens, aparentemente até desligados, menos de 1 minuto antes de entrar em cena. A troca de roupa veloz. O suor. A eletricidade. Não há melhor lugar no mundo do que coxias, ou bastidores, minutos antes de abrir a porta à platéia. Tem ator que é lento. Outros, velocíssimos. Já sabiam antes de começar. Agora estou dirigindo pela primeira vez. É Abraço, meu melhor texto. A volta de Cláudio Barradas e Zê Charone. Estive com Cacá em São Paulo, para aprender. É muito difícil. Pensar em tudo. Mas quando se começa, é como desenrolar um fio. Técnico, disponível, entregue, Barradas é uma revelação. De Zê nem precisa falar. Ela foi preparada por Cacá Carvalho. Ser ator é conjugar técnica e emoção, observação e talento. É deixar passar pela mente todos os argumentos que vêm, inicialmente, com o texto, depois pelas idéias do diretor, somadas aos demais técnicos como Iluminação, Som, Figurino. Tudo isso vem e também passa pelo seu intelecto. Quando atua, é o instrumento de divulgação de uma mensagem coletiva. Muita responsabilidade. Dependendo da iluminação, curiosamente, eles assistem à platéia, enquanto atuam. Sabem quem dormiu, beijou, bocejou. Mas quando há apenas aquele foco direto, que cega a platéia, que vira apenas fundo escuro, é como estar em um interrogatório, luz no rosto, fale, confesse, diga tudo, sem haver interrogadores diretos. O que é aquela luz que desnuda o ator, embora esconda a pessoa? Quem é essa personagem que parece alimentar-se daquela luz? Ser ator, no Pará, é alimentar-se de luz mesmo no breu em que vivemos. No mundo, é expressar o sentimento de todos. É anunciar os novos tempos, bons ou ruins. É entregar-se a uma causa. Refrear toda a vaidade em nome da disciplina, da mensagem, e ainda assim ser vaidoso, bonito, brilhante, correto. Na medida. Estou com Cacá Carvalho nos bastidores de “O Homem com a Flor na Boca”. Haverá mais uma sessão, já com ingressos esgotados. Conversamos relaxados, bebemos refrigerantes. Nem de longe parece aquele personagem perturbado, emotivo, no limite. E, no entanto, em cena, quem duvida disso? Sim, somos atores na vida e isso não é meramente uma citação, ou lugar comum. Muitas vezes, não escolhemos texto, direção, personagem ou palco. Basta estar vivo. Mas a mensagem depende de nós. Faço o meu possível. Ou como no poema “passo os dias maquinando meu suicídio perfeito. Nisso, vou legando a vida”...

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