quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Kelly - mas falta um título melhor

Kelly. Diz que veio lá de Ourém mas pra mim é maranhense. Vai ver já é até foló, disse a Irene. Péra lá, Irene, não força. A menina é jeitosa. Periguete, mas aqui vai fazer sucesso. Te mete! O macho dela vive rondando de moto. Distribui crack na João Alfredo. Eu, hein? Tenho mais o que fazer. E eu lá vou me meter!
E lá estava a Kelly. Morena de corpo bem feito. O que fazia na Primeiro de Março? Seus atributos poderiam leva-la a clubes noturnos com público de maior poder aquisitivo. Ali, em breve o corpo estragaria, a mente explodiria e puf, desapareceria. Andava de top e shortinho, mostrando tatuagens, pra lá e pra cá, rebolando. Andava rebolando, mas rápido, parecendo resolver vários assuntos importantes ao mesmo tempo. Batonzinho básico e esse frescor da juventude que ilumina por onde passa. Quantas kellys já passaram por ali? Que o digam a Raimunda, a Maria, Irene, coroas, algumas com casa montada e tudo e clientela seleta. Amor? Amor? Vem cá.. Tudo bem? Vamos fazer um amorzinho gostoso? Não, obrigado. Eu sou aí do Teatro. Ah, do teatro. Do pessoal que faz Cultura, né? E não tem uma vaga pra mim? Não, acho que não, mas de repente, quem sabe, eu te chamo, tá bom? Eu sou a Kelly. Tem certeza que não quer ir ali comigo? Também tenho umas coisas pra vender. Não, obrigado. Tchau. Tchau, amorzinho.
Riachuelo e Primeiro de Março. A primeira liga duas avenidas importantes, Presidente Vargas à Padre Eutíquio. Mas ali, naquela meiuca da Campina, funcionou uma lendária zona de prostituição. Hoje, acabou. Restam dois ou três bares. Quartinhos imundos. Putas velhas com alguns velhinhos que recebem a aposentadoria e vão pra lá. E de repente, algumas meninas novas, cada vez mais novas, atiradas, ousadas, desafiadoras. Rápido se tornam as donas do pedaço. A Primeiro de Março é a lata de lixo da Presidente Vargas. E há consumo de crack. A Polícia passa, faz revista, mas nunca acha. O Teatro e sua gente são respeitados. Muito. Relação ótima. O público nunca vai correr perigo. Isso é certo. Mas nem sempre a turma se comporta.
Domingo. Tarde da noite. A sessão terminara. Pela Primeiro de Março, uma birosca havia começado vendendo pipoca, cheetos, refrigerante, sabão, coisas básicas. Agora vendia bebida. Agora tinha som alto. A galera estava mamada. A festa começou desde que o Bento passou no final da manhã, pela Praça da República, tocando merengue. A algazarra perturbou os atores. Fomos lá, na boa e nada. Veio a baratinha, conversou e seguiu na ronda. Kelly dava um show de tecnomelody. O namorado, jogado num canto, apreciava. Apareceu a Rotam. Moradores ligaram. Correria. O motoqueiro se mandou. A birosca não tinha alvará pra nada. Lá vai o dono. A Kelly rebarbou. Encarou. Tu queres me dá-lhe tu me dá-lhe. Agora tu vai pagar se me encostar um dedo. Vamos, me dá-lhe que eu quero ver. Me dá-lhe. O guarda tentou pegar o braço. Levou na cara. Mão aberta. Foi demais. Devolveu. Rolou na calçada suja. Levantou com uma pedra. Veio o Peito de Pombo, de gestos largos quando está bêbado. O perneta, que pede esmola pra fumar crack. Puxaram pelo cabelo. Ela agatanhou. Jogaram na viatura. A Rotam foi e ficou o silêncio. Um olha pro outro. Cada um pro seu canto.
Passaram três, quatro dias. Vejo Kelly botando quente no Bom Paladar, na esquina com a Riachuelo. Rosto inchado. Murros. Na barriga. O namorado libertou. Não contou como. Nem eu sei. Agora tinha uma colega. Deusa. Uma moleca de 14 anos se tanto. Kelly sua heroína. Olhos esgazeados de crack. Top, shortinho e topando todas. Chegou o namorado. Montou na garupa. A moleca também. Saíram rindo e felizes. Poderosos. Fiquei com vontade de ligar pro Ismael. Ele faria uma bela reportagem. Foi bom não ligar. Acabei ganhando a matéria.
A Érica está se desfazendo aos poucos. Foi mais uma Kelly. Branquinha, bonitinha, olhos espertos. Pegou a coisa. Não tem mais cabelo. Um ou dois dentes. Corpo cheio de feridas. O que resta é um humor ácido e inteligente. Fez dois canudos de papel e botava na cabeça, dizendo que a Kelly já era e a dona do pedaço agora era a Deusa. A Deusa? A molequinha de peitinhos salientes, bundinha assanhada e que era aprendiz da Kelly? Essa não. O Ricardão veio e crau! E a risada da Érica? Tinha uma mordacidade feroz. E todo mundo rindo. O perneta se divertia. O Peito de Pombo, também.
Lá vêm as duas. A Kelly arrastava pelo cabelo a Deusa. Tinha uma faca de cozinha em uma das mãos. Havia sangue nas mãos da moleca. Parava onde tinha galera. Agora diz quem e a dona do pedaço. Diz. Quem é dona do homem. Do motoqueiro. Terminou? Pede perdão. Pede. Vamos adiante. Vai nada. O Peito de Pombo se meteu. Tu vais parar com isso agora mesmo. Aqui mesmo. Acabou. Tá doida? Dás ouvido pra qualquer uma? Isso não é contigo, velho. Sai que vai sobrar pra ti. Comigo não. Tu me respeita. Levou facada, mas foi de raspão. Não continuou. A Luana, mulher do Peito de Pombo, se rebarbou. Eles moram na rua. Na esquina. O Peito de Pombo lê jornal, despacha, conversa, trafica também. Ela até atende telefonemas. Mas agora Luana deu-lhe no pé do ouvido. O que é que tu tens com essa piva? Se ela está apanhando é porque merece. Me incomoda a violência. Ah, te incomoda? Tu pensas que eu não ouvi que tu andaste te engraçando pro lado dela? Hein? O Perneta me disse que pediu pra ela o xibiu mas ela deu foi pra ti. E foi esse o pagamento do crack. Cadê o dinheiro? Agora confessa se tu és homem. Diz aí se tu és homem, agora, na frente de todo mundo. Mulher, tu me respeita que eu não sou macho de ser peitado assim na frente da galera. Tu me respeita. Então diz aí, macho de merda. O Peito de Pombo se atacou. Saiu catando colchonete, roupa, sapato, fazendo um monte. A Luana tentou impedir mas levou safanão. Ficou de longe, xingando. O Peito de Pombo tocou fogo. Doido. Tocou fogo, o sacana. E virou pra ela e disse. Tu me respeita. Tu não mexes comigo. Agora tu vais ver. A fogueira cresceu. A Luana se mandou. O Peito de Pombo ficou com os braços parecendo aqueles bonecos de posto de gasolina. Vieram os bombeiros. Risco do fogo atingir a fiação elétrica. Mas não sobrou nada.
A Deusa ficou sem as duas orelhas. Alguém contou. Foi parar na Casa de Transição, depois foi pro ... de Menores. E o vício de crack? Sei lá. Naquela noite, o motoqueiro ficou girando por todos os quarteirões entre a Padre Eutíquio e Presidente Vargas, procurando, procurando. De manhã cedo os programas policiais de rádio, o Barra Pesada e a turma do Diário do Pará trabalhando ali perto daquele prédio grande da Importadora, na Carlos Gomes. O perneta contou. Tava na fissura por crack e nessa, o cara faz qualquer coisa. Nem raciocina. Quase não dava pra reconhecer a Kelly. Talvez pela tatuagem de um anjo, no calcanhar. O motoqueiro passava de moto sobre seu corpo quando a Rotam chegou. Eles se atrasaram um pouco. Kelly era a isca da armadilha, mas não deu. TRAFICANTE MATA NAMORADA PASSANDO COM A MOTO SOBRE SEU CORPO. Os repórteres vieram checar algumas informações. O único que quis falar foi o Kiko. Mas o Kiko não tem condições. Não diz coisa com coisa.
Noélia é o nome, a Irene disse. Aposto que esse cabelo dela é pintado e alisado. Irene, dá um tempo. Tu não dispensas nenhuma? E eu vou lá gostar de concorrência? Irene, tu já passaste dos 60, tens tua clientela, poxa. Mas sabe lá, de repente um boyzinho desses se engraça.. E olha que eu sou foló..

Um comentário:

Edyr Augusto Proença disse...

Ha reticencias (e faltam acentos aqui) antes do nome do local para onde os menores infratores sao enviados. vou descobrir e coloco depois, ok?