quinta-feira, 15 de outubro de 2009
A Praça
Sou o que chamam de "garoto de apartamento". Nasci e cresci morando no quinto andar do Edifício Renascença, um dos primeiros de Belém, na esquina da Presidente Vargas com Riachuelo. A Praça da República, foi meu playground. Quando me vi como gente, lembro de ver, distante, a testada da Basílica de Nazaré, hoje inteiramente vedada pelos prédios da modernidade. Lembro da noite em que os operários liberaram para o passeio das pessoas, a Presidente Vargas totalmente asfaltada, no que antes eram paralelepípedos. Lembro de passear em minha bicicleta, sobre o betume. E lembro da Praça da República. É porque agora tenho um cachorro, sobre o qual escreverei próximamente. E aos finais de semana, levo-o para passear na Praça, em um ótimo exercício de observação de pessoas e do lugar que tanto amo. Primeiro bem criança, brincando de cowboy nos coretos, começando por aquele atrás da Banca do Alvino, que chamávamos "Gruta", com seus esguichos de água e iluminação à noite. O outro, junto a outro chafariz, próximo à Assis de Vasconcelos, onde pedras, em nossa imaginação, transformavam-se em cavalos e diligências a serem assaltadas, com muitos tiros, animado pelo seriado de Bill Eliott, que minha saudosa Babá Bia me levava, no Paramazon, ali próximo, na Piedade, aos domingos. Uma manhã, desci à praça, evidentemente armado até os dentes, como convinha a um pistoleiro perigoso e encontrei Jacinto Castro, de quatro, rosnando tremendamente. Era um leão. Preferia ser um leão, pelo barulho e medo que inspirava. Bom. Nas férias, todas as tardes, havia "Cemitério", um jogo disputado por meninas contra meninos, ali próximo ao anfiteatro onde Alberto Silva, recentemente, apresentou sua Mandrágora. E vieram as bicicletas. Tornei-me um ás. A brincadeira era de "tranca". Trancávamos a passagem de nossos adversários, com habilidade e equilíbrio, em volta do monumento, com suas estátuas belas, impávidas, seus postes no estilo Boulevard de Paris, seu piso colorido. Corríamos por toda a praça, feito cavaleiros da Távola Redonda em eterna ronda e procura pelo Cálice Sagrado. Por falar nisso, houve a onda de capa e espada. Na casa dos pais de Nelson Lima, cortávamos compensado para fazer escudos pintados conforme os Cruzados, bem como espadas. Chegamos a brincar, temerariamente, com chuços improvisados, correndo e tocando nos escudos. Certa vez, um de nós, querendo tomar de assalto o segundo andar, pela escada, tomou uma espadada na cabeça, abrindo um bom golpe. Houvemos por bem encerrar a batalha, por aquele dia, tendo em vista os castigos que vieram, por conta do acidente. Em alguma de nossas expedições, invadimos e exploramos a Escola de Química, onde hoje está a Livraria da Universidade, que fica fechada aos sábados, quando posso comprar alguma coisa. Pelo chão, jogadas peças de Química em vidro e borracha. Uma emoção. Nem tudo foram flores. Fui assaltado, na praça. À bordo de minha bicicleta, armado até os dentes com uma "besta" e uma espécie de alforje, feito a partir de uma capa térmica da mamadeira de minha irmã Ana Carolina, fazia minha "ronda" quando fui parado por um garoto, agressivo, com uma faca nas mãos. Não vão rir, mas o objeto de seu assalto não foi a bicicleta, o que seria normal. Bom, tambem não levava dinheiro, celular, relógio... Ele queria meu alforje. Levou. Pior, levei algum tempo até recuperar a calma. O garoto havia quebrado meu escudo pessoal de defesa, absolutamente ingênuo, infantil, mas um escudo. Boa lembrança. Bons tempos. No colégio, voltava e disputava renhidas partidas de peteca com motoristas de praça que ali faziam seu ponto. Mais adiante, estudando para o vestibular, parávamos no posto de gasolina que havia na esquina da Assis de Vasconcelos com Osvaldo Cruz e cada um comparecia com 1 cruzeiro. Era o suficiente para o Belair de Nelson Lima circular pelo Moderno, Nazaré, Gentil, enfim, o que nos interessava. Hoje, circulo com Brownie pela praça, tropeçando em minhas lembranças, ouvindo gritos de crianças, meus gritos, em uma época em que tudo se resumia em ser feliz, correr de braços abertos, contra o vento, pedalando firme, esquivando-me da bola do cemitério e disparando intermináveis balas de meu 45. Conheço cada centímetro da praça. Em cada um deles está impressa minha infância e pré adolescência. Ali acontecia tudo. A boate da Assembléia Paraense em frente. O Porão, tão convidativo, por conta do ar proibido para menores. O Papa Jimi, onde Ivan Novais, um de seus inúmeros discotecários me mostrou um vinil onde, em um lado, Jimi Hendrix tocava no Monterrey Festival. Praça da República, quanta saudade e quanta revolta sinto ao te ver violentada, cuspida, suja, imunda, fedendo, tratada como lixo, seja pelas autoridades, seja por seus frequentadores. E caminho, cabisbaixo, ruminando ações que deixo para depois, por imaginar ser um solitário, bradando no deserto. Nós, aqueles que estudam, que lêem, assistem, fazem, diminutos diante do gigantismo da cretinice vigente. A Gruta quebrada, imunda de fezes. Vagabundos dormindo nos bancos, fedendo. A maconha dividida entre jovens, com toda a tranquilidade, em qualquer dia da semana, como se a Praça fosse em Amsterdam. A falta de cuidado com a grama, que sumiu, trocada por imensos formigueiros, raízes a descoberto, lutando para segurar suas árvores. Os quiosques reunindo não somente jovens a namorar, mas a fazer sexo, pessoas mal encaradas, vendedores de bombom, cerveja e drogas, instalados à vontade, afrontando as pessoas de bem com sua sem cerimônia de se saberem seguros em sua avacalhação. O monumento todo pixado, quebrado, com guardas municipais mais interessados em namorar entre si, conversar, do que tomar qualquer medida mínima, justificando seu uniforme. A imensa sujeira que fica após os domingos, onde a praça deixa de ser somente um local ao ar livre, para seus habitantes respirarem, para incluir venda de bobagens e comida, bebida, com nenhuma higiene, absolutamente nenhuma, para um povo mal educado, que tudo joga no chão, como se o mundo não fosse sua casa. E mais tarde, estranhas crianças, vestidas de preto, sem nenhuma ideologia, objetivo, reunindo-se para conversar, fazer sexo, drogar-se, beber, sem que nenhuma ação seja feita. A praça é território livre, inclusive para ser agredida, violentada. Assim, a Praça da República, a bela praça, uma das mais bonitas que já vi, está, como a cidade, entregue à sanha de quem se apresentar. E a cada vez que volto para casa, estou dividido entre a emoção de pisar em local tão importante, para mim, e penso, para cidade e seus habitantes, e ao mesmo tempo, a revolta por encontrá-la do jeito que está.
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