quinta-feira, 8 de setembro de 2011

A MORTE DE UM PERSONAGEM

Estava aguardando o portão da garagem do prédio abrir quando veio o T. Rex (Kiko) avisar que o Ailton morrera. Ailton? Que Ailton? Ah, o Peito de Pombo. Acordou se sentindo mal. Levaram ao Pronto Socorro mas morreu logo. O corpo está ali no Gempac. O senhor vai passar lá? Mais tarde. Há poucas horas o havia visto com um corpo na mão. As noites de domingo, por ali, são quentes. A galera fica assanhada desde cedo. Ganha trocados tomando conta dos carros. Passa o Bento tocando merengue. Há uns três bares, certamente sem alvará nenhum, garantindo a cachaça. Fiquei triste. Partiu um personagem. Alguns não entenderam ou não fui bem claro no facebook. Não, ele não era meu amigo. Era personagem. Ele, a família e agregados. Nós os apelidamos de "imãs de geladeira". Por alguma razão, acamparam na esquina do Cuíra. Ouvi dizer que Ailton e Bete, sua mulher, tinham uma casa em área de invasão. Mas preferiam morar ali ao ar livre. Sujeitos às intempéries. Aos domingos, vinha um casal de filhos e criança de dois anos. Um dia desses, bebido, empilhou tudo na esquina e tocou fogo. Os bombeiros vieram. Virou tudo cinza. A Bete passou uns meses presa. Tráfico, claro. O velho ficou por lá. Um dia ela reapareceu. Gorda, aparência saudável e não como antes, quando parecia dissolver-se entre maus cuidados, fome, droga, sei lá. Reapareceu e ficou. O apelido de Peito de Pombo foi pela postura. Moreno, magro, cabelos quase brancos, olhar desafiador. Quando passava, rolavam a saudações respeitosas. Sempre. Mas que diabos, porque não iam para suas casas? Morar naquela esquina? Talvez fosse vida o que estivesse procurando. Morar em área de invasão, num dia a dia repetitivo? Morar ao ar livre. O mundo é sua casa. As discussões em voz alta, quem quiser que ouça. O mundo é minha casa. E eu assisti a várias discussões. Bebido, se abria em gestos. Braços se movimentando, aumentando a amplitude do que dizia. Batia no peito. Argumentava parecendo erudito. Traficante, certamente, mas a Polícia nada achava nas revistas. Um dia desses implicou com a Raimunda, puta velha, gorda, mas com boa clientela, chova ou faça sol, dias úteis e feriados, sentada na esquina. Ficaram se arengando. Será o imã do teatro que os atrai? De manhã, se espreguiçando na calçada, cigarro na boca, lendo jornais. Começo de noite, banho tomado, sapato branco, um dia pintou até paletó. Uma coisa! Todos ao seu redor. Em noite de teatro, tomam conta de carros. Procuram ser respeitosos, usam palavras difíceis, gentis. Até o Kiko, o T.Rex também já queria tomar conta. Agora não sei o que será da Bete. O filho, pivetão, anda por lá. E também um papudinho que há alguns meses trocou de turma e pode estar arrastando uma asa, se me entendem. Se dentro do teatro o público assiste às minhas obras, aqui fora sou eu que não perco uma sessão deles. E quando morre um personagem, fico triste.

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