sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

GUERRA DE PAPAGAIOS


Durante onze meses do ano, aquele juiz federal temido, seríssimo em suas demandas judiciais, trabalhava quase quinze horas por dia, incluindo finais de semana. A família, os amigos reclamavam, mas compreendiam o acúmulo de serviço que tinha. A falta de um maior número de juízes, os milhares de recursos, tudo era motivo para aumentar sua tarefa. Mas, durante um mês apenas, ele trocava de vida. Em julho, tinha suas férias e ia para Mosqueiro, onde sem camisa, bermudas, havaianas, óculos escuros e um boné velho, entregava-se à prática de empinar papagaios. Na área, também era conhecido. O “tio do Gasgo”, como era chamado, não por ter qualquer sobrinho chamado Gasgo, mas por uma habilidade específica, em cortar os papagaios adversários “no gasgo”, ou seja, na “garganta”, digamos assim. Para isso, sua atividade começava bem cedo. Ele próprio construía seus papagaios, comprando papel de seda, tala, cola e utilizando sua grande experiência. Seu segredo estava, também, no cerol, mistura não revelada, mas que continha vidro esfarinhado e que servia, justamente, para “cortar” os outros papagaios. O juiz orgulhava-se de, há muito, não perder um único papagaio e dava-se ao luxo de utilizar um novo a cada dia, por mero capricho, tendo, também, uma sala em sua casa, onde pregava na parede os papagaios com maior pontuação, ou seja, adversários cortados.

Julho começou e lá estava o juiz saindo, solenemente, como se vestisse uma toga especial, à base de bermuda, chinela e boné, para sua atividade. Que os adversários tremessem. Bem, quase todos não tinham mais de quinze anos. Alguns prendiam, outros, treinavam o ano todo para derrota-lo. Outros, já passados da idade, sentavam para assistir e torcer contra, claro. O juiz adorava vencer. Não satisfeito, os mais bonitos, os que davam mais trabalho, saía correndo, deixando com um auxiliar o seu papagaio, “no treme”, e ia conquistar o papagaio que chinara. Com treinamento diário, na esteira, feito todos os dias, bem cedo, enquanto lia processos, levava vantagem sobre os garotos e com a altura, ganhava as disputas. Nesse dia, colocou o seu no ar e logo chegou próximo um garoto de uns nove anos. Ficou ali, olhando, sem dizer nada. Aos poucos, começou a fazer comentários. Por enquanto, estava fácil, mas o garoto dizia, olha o vento, foge pra cá, não vai conseguir dar no gasgo, dá cabeça, dá cabeça, ih.. O juiz foi se aborrecendo. Acabou por dizer que o garoto devia ir dar técnica para os outros, que ele estava cortando tão facilmente. O garoto, imperturbável, disse que ia era buscar o seu próprio papagaio em casa. Contente com este súbito adversário, o juiz o animou, dizendo que o dia estava, mesmo, muito monótono. E o garoto voltou. E colocou no ar. Começou um duelo que parou a praia. Claro, toda a torcida era para o menino, não somente por ser tão criança, mas diante do grande e imbatível campeão. Parecia ser um golpe de sorte, ou falta de atenção que acomete, às vezes, os grandes campeões, mas quando tentou a manobra para dar no gasgo e humilhar, o juiz foi cortado. Simples. Foi um oh! Toda a praia em silencio. Depois, palmas. O juiz nem se moveu. Controlado, fez um aceno para o garoto, como quem diz ter sido sorte e pediu para esperar. Ia buscar outro papagaio. Quando chegou em casa a mulher estranhou, fez algum comentário mas ele não respondeu. Saiu com outro papagaio. Foi cortado. Dessa vez, no gasgo. Salva de palmas. Tranqüilo, voltou novamente com novo papagaio. Agora foi cortado e aparado. Agüentou firme. Quando retornou, já babando de ódio, sem controle de suas habilidades, deparou-se com uma curica. Sim, o garoto agora empinava uma curica. Era demais. Uma curica, não. Queria desqualificar o oponente. Gritar que era gozação. Pensou em suas atribuições como juiz federal. Não, melhor era cortar, não no gasto, mas cortar, aparar e trazer até si a presa, para mostrar quem era, de verdade, o rei dos papagaios. Desta vez a disputa foi renhida, com muitos momentos de emoção, que a praia respondia, tal torcida de RexPa. Acabaram emaranhados. O papagaio e a curica, chinando, emaranhados. Não teve dúvida. Saiu correndo atrás. O garoto também. Agora, a praia assistia aquele duelo. Entraram na água, afastando criancinhas que brincavam no raso. Ao mesmo tempo, seguraram os papagaios. Não largavam. Se engalfinharam, ele, com o cuidado de não usar mais força física que devia, claro. Banhistas resolveram intervir. Acabaram na delegacia. Eu sou juiz federal, tenho imunidade! Foi somente quando bradou sua autoridade que deu-se conta do ridículo. Pediu desculpas a todos, sobretudo ao menino e saiu. Pediu revanche para o dia seguinte. Ia botar uma rabiola sensacional no ar.

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