sexta-feira, 20 de setembro de 2019

UM PAÍS QUE SE CHAMA PARÁ

Eu nunca tinha estado em Parauapebas. Em Carajás, sim, com uma peça de teatro, mas trata-se de uma cidade cercada. Semana passada, a convite da Secretaria de Estado de Cultura, que lá promoveu uma Feira Literária, iniciando um projeto que pretende alcançar todo o Estado, fui falar sobre minha carreira e meus livros. Fui de jato, com escala em Marabá. Pela janela, nota-se logo a mudança na paisagem, agora com muitos morros, serras. Começo a perceber a imensidão deste Pará, com o tamanho de um país. Conversei com muitas pessoas. Há naturais queixas contra o prefeito, como sempre acontece, mas nas áreas principais da cidade, tudo bem limpinho, apesar do sol inclemente, a queimar a grama dos canteiros. Raro encontrar um paraense. São quase todos piauienses, maranhenses, goianos e daí em diante. Grandes fazendas, grandes conflitos, grandes riquezas e muita pobreza. Há uma farmácia em cada esquina, como aqui. Lojas Americanas. Cada uma das pessoas conta sua história de vida, de como trocou de profissão e foi parar lá para ganhar dinheiro. O motorista é formado em Nutricionismo. Ou estudantes da Universidade lá com um campus. O trânsito é intenso e vez por outra flagro um Porsche Cayenne, desfilando pelas ruas. Fiquei hospedado em um hotel mais afastado, simplesmente porque todos os hotéis estão sempre lotados. Quase sempre com três andares, tudo limpo, simples, mas sem grande conforto. As pessoas não estão lá por turismo, a passeio. Vão trabalhar. À noite, no estacionamento, havia 32 carros estacionados. Acordam cedo e vão resolver seus assuntos. Penso que nenhum deles se considera paraense. Apenas parauapebenses. Por todos os motivos, o Pará, Estado, com sua cultura, seus costumes, seu sotaque, não chega, o que é um desperdício brutal. Vou a um restaurante, almoçar e jantar. À noite, ninguém sai para jantar fora, encontrar amigos e conversar. Comem rápido, churrasco, comida forte, para dormir e no dia seguinte, trabalhar. Entram três funcionários da Vale. Imagino que nós, paraenses, devíamos ser muito metidos a bestas, orgulhosos, pretenciosos, ricos, principalmente, se os contratos que até hoje vicejam, pagassem o que deviam pela retirada de todos os nossos minérios, deixando um buraco no lugar. Produzimos energia para todo o país e pagamos as taxas mais altas. Nossas fazendas têm o maior número de bois. Nossa produção de cacau, tudo enfim. Nossa floresta com sua brutal riqueza. Mas não somos. A Feira está lotada. Há interesse, mas não há uma livraria na cidade. Os autores locais formam Academias de Letras. Recomendo que ao invés de se fecharem, abram as portas e promovam encontros, onde possam mostrar suas obras. Após a palestra, dou entrevista para três emissoras de televisão. Há algum jornal? É uma cidade que cresce a cada segundo, pujante, mesmo. Deve ter uma das maiores arrecadações de impostos do Brasil. E só a Cultura pode unir todo esse imenso espaço. A Secult inicia seu trabalho. Os planos são bons. O Pará não é somente Belém, que agora, parece tão distante. Ninguém fala da capital por lá. Depois da escuridão que passamos na Cultura, por mais de vinte e tantos anos, é um trabalho hercúleo. Agradeço ao convite. No tempo da escuridão, nunca me chamaram. Atrapalharam mas não parei de produzir. Há muito a ser feito. Contem comigo.

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

BOB

Quando era bem criança, havia em casa um boneco chamado Bob. Ao que parece, minha avó tinha trazido da América, de presente, para o mais velho. Agora ele ficava meio esquecido, sobre um guarda-roupa, de onde me encarava. De pano. Não tinha pescoço. As feições eram desenhadas com tiras de pano. Não sei se aprovava os acontecimentos. Estava sempre ali, impassível, sério, observador. Mais tarde, tive miniaturas de cowboys e soldados Balila. Me ajudaram a exercitar a imaginação. Nem por isso fiquei agressivo. Bom, aos sábados, de pé, nas cadeiras de pau do Paramazon, despejava toda minha munição em espoleta, acompanhando as vitórias de Bill Eliott. Minha amiga, criança, andava adoentada, fraquinha e foi levada a uma senhora rezadeira. Após as cerimônias de costume, passou a ter uma boneca, sob sua rede, ou cama, por um ano, talvez, tempo suficiente em que se recuperou. A boneca sumiu. Parece ter sido parte das instruções recebidas. Outra amiga me procurou e disse que tinha uma história para contar. Criança, tão pobre que a família era de carapirás. Ganhava a cada ano uma boneca de presente. Curiosamente era o mesmo modelo, sendo que se caracterizava por ter um buraco na cabeça. Imagino que fosse onde estava um artefato de borracha que colocado ali, permitia que, amassando o corpo da boneca, emitisse um som. Apenas imagino. Todo ano minha amiga recebia a boneca do furo na cabeça. Ela detestava a boneca. Sei lá, talvez o buraco, talvez a pobreza extrema que nos impede de ter sentimentos felizes. Minha amiga contou que além de detestar, riscava a boneca o mais que podia. Imaginei que anos depois, adulta, atende à porta da casa uma mulher misteriosa, com o rosto riscado, como que arranhado, quem sabe, por unhas. Pediu um copo de água e ficou ali, fitando-a, terminando por separar os longos cabelos e mostrar um buraco. Diante da estupefação silenciosa, lenta e estudadamente disse que a protegia desde criança. Que sofria com os maus tratos que recebia mas mesmo assim não desviou de sua missão, simplesmente por amor. Outra amiga. Parece que tenho muitas, não é? Família pobre. Não havia presentes no natal. Ao lado da casa em que moravam, havia uma enorme, que servia de depósito para uma grande loja. Um dia a casa foi vendida e lá chegaram operários para fazer uma grande reforma, a principal delas, trocar o belo assoalho de tabuas corridas, bem deteriorado, por lajotas. Minha amiga e seus irmãos correram, curiosos. Acompanharam a retirada das tábuas, aos poucos descobrindo que, tendo em vista falhas no assoalho, encontravam brinquedos à farta, certamente fazendo parte do estoque antigo da loja, agora ali, à sua disposição. Havia mini cozinhas, bolas e bonecos Cláudio, um que tinha nos olhos uma espécie de adesivo, coincidentemente objeto de consumo de minha amiga. Como era a de menor tamanho, bem franzina, esgueirava-se por baixo das tábuas, sendo, após dar sinal, puxada pelas pernas pelos sôfregos irmãos, a cada vez voltando com um brinquedo novo, para gozo geral. E claro, um Claudio, embora com um dos olhos desgastado, digamos, caolho. Pois foi esse Cláudio que a acompanhou por toda a vida, como se Noel houvesse lembrado daquelas crianças e providenciado presentes de vários natais, de uma vez. São os bonecos da nossa vida. Seriam nossos guardiões? Nossos protetores, mesmo passando por momentos bem difíceis em nossas pequenas mãos? Anjos? Quem sabe?