sexta-feira, 29 de abril de 2016

CUÍRA APRESENTA "AUTO DO CORAÇÃO"

O Teatro e suas milhões de formas de se mostrar. O Teatro vive! Torce por dias melhores, mas vive e ninguém consegue segurar a emoção, a mágica que se verifica, no momento em que um ator diz seu texto, ou meramente, atua. Na próxima semana, estará de volta às ruas da cidade, o espetáculo “Auto do Coração, do Grupo Cuíra. Sim, de volta às ruas! Premiado pela Funarte com o “Myriam Muniz, o grupo, que fechou, por falta de apoio seu teatro com cem lugares e atualmente já está funcionando na Cidade Velha, Dr. Malcher, resolveu ir para as ruas. Seis das melhores atrizes da cidade, Sonia Alão, Sandra Perlin, Wlad Lima (que também dirige), Zê Charone, Olinda Charone e Leila Barreto resolveram falar do Amor, cada uma com sua dramatização. No meio do processo vieram Renato Torres e sua música, Patrícia Gondim com iluminação e cenário e outros participantes, todos eles movidos pelo Amor ao Teatro. E foi tanto Amor que surgiu a magnífica idéia de apresentar o espetáculo dentro de um ônibus, rodando pelas ruas da cidade. Inusitado, diferente, interessante. E não um ônibus especial, com ar condicionado, nada disso. Um coletivo comum, com seu tempo de uso, que foi totalmente “dressado”. “Auto do Coração” estreou ano passado e quem participou ficou encantado. A saída é ao lado do Teatro da Paz, esse monstro criado pelo Sectário de Cultura, onde os atores paraenses não conseguem se apresentar. São poucos ingressos, claro, a lotação do busão. Ele sai e entra no ar a rádio do coração, tocada por Renato Torres. Então, alguém faz sinal e o ônibus para e recolhe um passageiro. Não um passageiro comum, mas a primeira atriz que vem contar seu texto, passar suas emoções. E assim segue o percurso. O que posso dizer é que me perdi. Tentei olhar para fora e já não sabia em que lugar de Belém estávamos. O ônibus funciona como uma bolha, um casulo onde mergulhamos no Teatro, no maravilhoso Teatro, a mágica da encenação, luzes, cores, cenário e música. Muitas vezes o ônibus emparelha com outros e os passageiros ficam intrigados, interessados. Outra vez, Zê Charone, vestindo seu personagem, bate na lataria do ônibus, apreensiva. Pessoas que passavam ou esperavam ônibus também se estressaram. Fiquem tranquilos, é somente Teatro. Somente? Quando retornam ao local de partida, estão todos transformados. Assistiram seis grandes atrizes em grandes momentos. Participaram de uma iniciativa corajosa, audaciosa, mais uma, do Cuíra, ignorando todos os gigantescos obstáculos colocados para eliminar o Teatro do dia a dia das pessoas, e que, a bordo de um ônibus, engrandecem a Cultura do Pará. Sonia Alão lembra o primeiro amor, vestida com uniforme do IEP. Wlad Lima fala do amor que não revela como um náufrago procurando uma corda para voltar à tona. Leila Barreto não quer mais fugir dos relacionamentos e procura amor maduro. Olinda Charone chora por uma separação muito dura de viver. Zê Charone faz todas as mulheres que apanham de seus maridos e Sandra Perlin, depois de levar chute dos amores que a achavam “esquisita”, encontra seu lugar no Teatro. E tem a música de Renato Torres, a iluminação de Patrícia Gondim e uma equipe fantástica, com muitos jovens, que se juntaram ao Cuíra para prosseguir no sonho. Eu os convido a assistir.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

LIVROS DE AVENTURAS

O ambiente, de maneira geral tem estado meio pesado em todo o Brasil, por conta de assuntos políticos. Por onde se passa, há pessoas discutindo. É saudável que de repente, o assunto finalmente tenha entrado em pauta. Foi exatamente por nem lembrarmos em quem votamos nas eleições passadas que Brasília tornou-se uma Camelot, um reino à parte, com suas próprias leis e habitantes de três dias por semana, trabalhando, ao que parece, apenas por seus próprios interesses. Para desanuviar, nada melhor do que um livro de aventuras. Eu gosto de livros de aventuras. Eles foram o começo de meu encanto pela Literatura. A biblioteca de meu avô, que aliás, foi cedida à Biblioteca Arthur Vianna com a promessa de uma ala especial e outros badulaques e certamente está jogada em algum canto, era meu lugar preferido. Lia todos os Alexandre Dumas, desde Os Três Mosqueteiros, Visconde de Bragelone, Máscara de Ferro, Conde de Monte Cristo, ou Sir Walter Scott em Ivanhoé, mais ainda Simbad, o Marujo, Robin Hood, a Ilha do Tesouro, em que minha mãe nos botava medo, dando interpretação especial para uma canção que os piratas cantavam. Todos esses heróis e suas mágicas atiçavam minha imaginação e certamente meu conhecimento, minha cultura, minha desenvoltura com o idioma. E então veio “Menino de Engenho”, de José Lins do Rêgo e a Literatura Brasileira me invadiu. Contudo, livros de aventura ainda me despertam muita curiosidade. Como a série de livros “Outlander”, de Diana Gabaldon, que acaba de ter lançado o Livro Quatro – Parte 1. Também foi transformada em bela série de tv, com sua primeira temporada encerrada e aguardada a segunda, com excitação. Uma mulher, pós guerra, juntamente com seu noivo, ela tendo trabalhado como enfermeira e ele como decifrador de códigos, resolvem ter uma rápida lua de mel na Escócia onde ele aproveitaria para pesquisar sobre um antepassado. Ela entra em um lugar com um círculo de pedras e é transportada para trezentos anos atrás. Apaixona-se por um escocês aventureiro, engravida, entra no círculo, retorna aos dias atuais e vinte anos depois, volta ao escocês para viver para sempre. Diana aproveita os conflitos entre escoceses, ingleses e franceses para nos envolver em situações interessantes. A essa altura, o casal está na América, passando por Jamaica, subindo até o norte, a cada capítulo enfrentando perigos terríveis, conspirações, aventuras de capa e espada, que parecem não ter fim. Apesar de estar nos 40 anos, médica cirurgiã, o que serve para intervir aqui e ali, eles são incansáveis, inclusive em seu romance interminável. Ela se chama Claire Randall e ele é Jamie Fraser. Enquanto isso, a filha de Claire, Brianna, em 1969, casa com um pesquisador, descendente do clã MacKenzie e ele descobre que os pais de Brianna teriam morrido em um incêndio. A filha descobrirá o incêndio fatal dos pais? Tentará de qualquer maneira, também, retornar ao passado para mexer com os acontecimentos? O marido tentará de todas as maneira evitar que ela descubra o que aconteceu? Estou na metade do livro. Por enquanto, estão na Carolina do Norte. Querem saber, vou encerrar por aqui. Estou cuíra para continuar minha leitura. Até.

sexta-feira, 15 de abril de 2016

SCOLA CARONTE FELLINI

Ali pela década de 70, havia uma “sessão maldita” no cinema Palácio, todas as sextas, não sei se às dez ou meia noite. Para mim, um período de fantástico enriquecimento cultural, algo que moldou toda uma vida. Semanalmente víamos filmes de Rosselini, Buñuel, Antonioni, Polanski e Fellini, entre muitos. O ator Henrique da Paz me contou que vinha com sua turma, lá de Icoaraci, para assistir aos filmes e depois debater o que haviam assistido. Esse tipo de sessão foi comum durante muito tempo. Lembro do Cinema Um também fazer isso, nas manhãs de domingo, acho. Era uma sexta feira gorda, de carnaval. Chovia e eu estava no Palácio assistindo “McBeth” de Roman Polanski. Especialmente marcante. Não sou um cinéfilo, apenas, como muitos, gosto de assistir. O grande filme da minha vida é “Amarcord”, de Federico Fellini, que reúne todas as sensações de uma existência. Fed coloca toda sua infância em Rimini e nos fala do mundo. É o que humildemente procuro fazer em minhas obras, seja no teatro, na crônica e na literatura. Há pouco tempo revi. Junto, em dvd, um documentário sobre as pessoas retratadas. Sensacional. A moça a quem chamavam “Gradisca”, a outra, lasciva, o pecado, que estava sempre próxima, o menino, na verdade, uma soma de Fed com seu melhor amigo. A excepcional cena dos moradores, após longa espera, em botes, assistindo a passagem do grande navio, filmada em estúdio, com o mar revolto feito de plástico. Ali está a magia do cinema, misturada com as emoções tão humanas!
Acabo de assistir “Qu’il est étrange de s’appeler Federico”, filme do maravilhoso Ettore Scola sobre seu amigo. Ambos começaram no jornal satírico Marc’Aurelio. Insone, Fellini o levava para longos passeios de carro pela cidade. Ambos com seus personagens primeiro desenhados, vindos da imaginação. O narrador é o mesmo de “Amarcord”. A música bem semelhante à de Nino Rota. Também dividiram Marcelo Mastroiani em vários trabalhos. O maravilhoso Estúdio Cinco, da Cinecittá, onde filmou na maioria das vezes. “O cinema é muito mais pintura do que literatura ou teatro. Os objetos e a luz sobre eles. Qual é o componente fundamental da pintura?”. A melhor cena? O final de Amarcord, casamento de Gradisca, noivos se despedindo, todos acenando também para nós, e o acordeonista cego tocando bravamente enquanto chuta terra nas crianças que o perturbam. Vale por uma vida.

E se me permitem, também quero recomendar “Youth”, de Paolo Sorrentino, que ficou famoso com “A Grande Beleza”. Aqui, em um desses spas para pessoas ricas, nos Alpes, um famoso compositor e regente (Michael Caine), um diretor de cinema (Harvey Keitel) e uma atriz (Jane Fonda) nos encantam com seus diálogos. A cena em que Caine e Keitel, nús, em uma piscina, contemplam extasiados uma miss universo caminhar e entrar na piscina completamente nua, completamente jovem, completamente opulenta, vale o ingresso. Há vários dramas, vividos também por Rachel Weisz e Paul Danno. Não sei quando passam por aqui, mas nestes tempos, vale baixar na internet. Mas é só uma recomendação. Não sou crítico, nem cinéfilo. Apenas, publico.

sexta-feira, 8 de abril de 2016

CAPITÃO MARVEL

Não fui, nem irei ao cinema assistir o blockbuster “Batman x Superman”. Não gosto mais desses filmes de ação onde o barulho, a explosão e não a razão, o argumento são mais importantes. Nada contra quem goste. Há, principalmente em torno de “Batman” um culto interessante como ícone pop e com certeza, muito o que discutir a respeito do homem morcego. Curiosamente, nesses filmes atuais, o melhor está justamente nos vilões, caricatos, inteligentes, sarcásticos, confrontando duas mensagens subreptícias, uma do cidadão obediente à lei e de outro, um vilão que à parte vilanias, ousa quebrar essa linha de conduta. Superman, surgiu em 1938, nas HQs. Os americanos saindo do crack da Bolsa em 1929, a chegada da Segunda Guerra, todos tentando se recuperar. Então vem o super herói, com uma identidade secreta, personagem frágil, carente, contrastando com seus poderes. Quando a corrupção, a bandidagem começa a se impor diante da lei e os habitantes da cidade não têm a quem apelar, surge Super Homem. Indestrutível, voando e com identidade secreta. Não importa onde e se ele faz necessidades fisiológicas, só de pensar já fico sem graça. Sim, eles têm sempre uma namorada, uma eleita, com quem não fazem sexo e apenas prometem algo que nunca acontecerá. O incompetente Comissário Gordon, está sempre a projetar na noite de Gotham, o socorro de Batman, que prontamente coloca-se a serviço, sem nunca receber nada em troca, bem como nunca sequer ralar o joelho, mesmo enfrentando a cada semana vilões poderosos. Agora, colocar Batman x Super Homem é uma covardia, se este último é indestrutível e voa! Qual a chance de Batman? Circular nas bocas e conseguir uma muca de kryptonita? Francamente. Nos dias de hoje, em que vivemos aprisionados em nossas casas e carros blindados (quem pode pagar); em que todos os índices de desenvolvimento nos empurram para um Comissário Gordon, ou para gritar com Clark Kent; seria o caso de chamar um super herói? Não é uma solução simplória e covarde de um povo que ao invés de lutar por seus direitos, prefere a ajuda de um super herói? Alguém vai lutar por mim. Alguém irá às passeatas. Enquanto isso, prosseguirei votando errado, meramente por dinheiro, promessa de emprego, briguinhas paroquiais, irei? Em uma época de mídias sociais onde muitos emitem suas opiniões, enquanto outros são haters, há os que são pagos para disseminar mensagens deste ou daquele lado. Continuaremos a esperar por Batman e Super Homem? Estou muito bem informado. Tenho minhas opiniões. Atravessamos um período turbulento, mas democraticamente precioso. É preciso reconstruir o que deixamos ser destruído. Há muito a fazer. Esperar por um super herói que recoloque as coisas no lugar sem que tenhamos de suar, arregaçar mangas, discutir, participar, nos manterá como esses cordeiros que fomos até agora. Ética, honestidade. Sou otimista. Acho que algo muito bom sairá disso tudo. Meu primeiro super herói foi Capitão Marvel, inventado aqui no Brasil onde o SH não chegava ainda. Sua identidade secreta era Jimmy Olsen (se não me engano) e seu principal vilão era o Dr. Silvana. Bons tempos.


quinta-feira, 7 de abril de 2016

LIVROS S.A.

EDYR AUGUSTO – O MAESTRO E O BALÉ RUBRO


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Qual é a morada da violência? Resposta rápida: dentro de nós. Potencialmente, todo ser vivo pode ser “violento”. A diferença é que, nos animais ditos racionais, ela não é apenas instintiva, mas pode ser intencional. Até mesmo apreciada, por alguns. Praticada com desenvoltura e habilidade.

Mas a grande maioria de nós a evita, abomina e teme. Sequer têm coragem de procurá-la dentro de si, em seu próprio abismo. Como algo tão desconhecido pode ser tão presente? Como entendê-la, um pouco que seja, e àqueles que a abraçam sem culpa?

Além das ciências que a estudam, as artes podem nos revelar as muitas facetas da violência, e nos deixam observá-la, seguros (e isso diz muito sobre nós...). Mas poucos artistas conseguem retratá-la bem, sem apelação. Parece ser necessária certa intimidade.

Difícil apostar que um homem descrito como um pacato escritor paraense de 61 anos seja íntimo dela e consiga capta-la e conduzi-la para onde quer. Contudo, a obra literária de Edyr Augusto Proença dá testemunho de que ele conhece bem essa boa e velha senhora, e sabe expô-la na intensidade que escolher, como um de muitos ingredientes que utiliza para criar seus curtos romances – contundentes como facadas.

Após a leitura deles, tão logo se refaça do choque da estocada, algumas perguntas vêm à tona: como escrever assim? De que serve ler algo tão violento? Qual o valor destas obras?


Desfile e baile de gala

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Pssica (gíria paraense que significa “azar, maldição”) é o romance mais recente do autor (2015, Boitempo, 96 páginas). Uma garota de 14 anos faz sexo com o namorado, que filma com o celular. Ele publica a filmagem, e a vida dela vira um inferno. Escorraçada de sua casa em Belém, se envolve com uma jovem ligada à prostituição e ao tráfico de pessoas, e se torna uma mercadoria. Em paralelo, um imigrante angolano convive em paz com sua companheira por anos, até que uma quadrilha de bandidos, cujas histórias também vão sendo contadas, atravessa seu caminho, e trucidam sua mulher. Ele vai buscar vingança.

Os caminhos de todos estes desgraçados vão se cruzar lá na frente. Nesse meio tempo, a violência vai continuar desfilando, como se fosse uma miss num concurso: aparece nua e crua [trajes de banho], em assassinatos, mutilações e estupros, inclusive de homens. Quase elegante [vestido de gala], em orgias e crimes inevitáveis. Divertida [falando que ama crianças e que quer salvar o mundo], quando resta claro que ela sempre desemboca em si mesma, e vitima a todos, inclusive os violentos. Seu tchau de miss só chega na última palavra do romance. Quem permanecer vivo, que se dê por satisfeito. Ou não.

Edyr rege as ações num ritmo vertiginoso, e elas se desenrolam como numa coreografia intrincada: cada gesto dos personagens prepara e gera o passo seguinte, que cedo ou tarde recai na violência. Não que o livro a focalize, ou apenas force maneiras de expô-la, cruamente. Ela aparece porque gosta da música que Edyr toca, e porque calha de alguns personagens serem dançarinos exímios, sempre próximos e prontos a ela. Há algo de tarantinesco nisso.

Reunião de habilidades e autenticidade

O estilo preciso do escritor já é uma assinatura: Ação. Pouca descrição. Dinâmica. Personagens desgraçados e complexos. Sua escrita é ágil, ainda que a opção por não haver sinalização de diálogos por vezes trunque um pouco a leitura. Mas tudo se encadeia de maneira verossímil e acarreta consequências plausíveis.

Se fossem fundidos Jorge Amado e sua soberba construção de personagens, Patrícia Melo e sua capacidade de síntese, e, por fim, Rubem Fonseca em sua melhor forma escrevendo seus contos mais indigestos, esse “monstro de Frankenstein” literário escreveria de maneira muito semelhante a Edyr Augusto.

Ainda que se apontem semelhanças ao seu estilo, a obra de Edyr é antes de tudo autêntica. Sempre ambientada em Belém do Pará, que ele conhece e onde vive. São batizadas com termos locais, como Pssica e Moscow (romance anterior, passada na praia do Mosqueiro, chamada de “moscow” pelos moradores), e não se curva a ditames do “eixo literário” no Brasil (os estados mais ricos do sudeste), que costuma ignorar tudo que se produza fora de seus limites. Parece claro que Edyr não prioriza o sucesso editorial, mas sim escrever as histórias que quer contar.

Aliás, Moscow é até mais poderoso e impactante que Pssica. Já estava lá o estilo, o cortejo. Mais infelizes destroçando uns aos outros. Narrado em primeira pessoa por um maníaco, traz uma cena violentíssima já na primeira página, como uma espécie de boas-vindas: “veja aonde você se meteu”. Escrita hipnotizante, sem floreios, sem acréscimos inúteis. Apenas 68 páginas, cerca de uma hora lendo – e dias pensando a respeito.

Olhar o abismo. E se perguntar para que.

Notícias populares belenenses

A violência causa muitas reações. Asco, horror, medo. Compaixão pelas vítimas. Todas tendem a ser viscerais. Explorá-las em romances seria apelativo? Não. A violência que entremeia tudo não é invenção de uma mente doente, mas sim uma realidade useira e vezeira em páginas policiais paraenses, paulistas, parisienses e no mundo todo.

Não raro, o real assusta a ficção. Do tipo estupros coletivos e descarte das meninas violentadas como se fossem lixo, arremessadas de ribanceiras. Os monstros, ao constatarem que a queda não as matou, descem para jogar pedras nas cabeças delas. Há muitos outros exemplos, desnecessários de se enfileirar. E sangue inocente para encher oceanos.

Quem dera o choque se restringisse à ficção. Que fosse necessário fazer um exercício para entender a escrita de Edyr, nem desconfiando de onde ele tira as situações que aparecem em seus romances. Hoje em dia, talvez nem os muitos inocentes ou desinformados consigam fazer algo assim.

Lembrar a carne

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Porque a informação é cumulativa. Conhecer é um processo irreversível. E (quase) tudo se revela, conforme as escolhas dos veiculadores. Em que pese que estes critérios obedeçam quase sempre às lógicas comerciais, há outro critério bastante universal: divulgar aquilo que atraia a atenção. E a violência é uma campeã de audiência. Pulsão natural e animalesca do homem, que procura domá-la com códigos sociais.

Seja domesticada, seja editada, crua ou subliminar, o fato é que ela segue atraindo olhares (ou likes, ou views, ou o que seja). Mas já que está presente em todos os extratos e em todas as relações, e que as pessoas não gostam de encará-la nem fora nem dentro de si mesmas, por que alguém compraria um livro onde ela é uma das linhas mestras?

Pode-se especular a catarse, além da atração que a violência exerce por si. Também pela busca de uma redenção, que cria roteiros fáceis, do tipo “o/a mocinho/a vai triunfar no final e o bandido será punido” – algo que nem a realidade nem Edyr Augusto gostam muito de obedecer.

E, mais especulativo ainda, por dois tipos de alívio. O da ficção: porque, ao saber que o inferno passado pelos personagens não foi real, há algum alívio: “Ufa, isso não aconteceu de verdade!” Pode até fazer esquecer por um momento as pessoas reais que passaram por situações semelhantes ou piores. E, quando se recorda destas infelizes, vem o outro tipo: “alívio do sobrevivente” – aquele sentimento difuso que impele a olhar os acidentes e mortes, para relembrar que, embora tão carne e tão frágeis quanto aquelas vítimas, não fomos nós os vitimados desta vez.

Sinfonia em vermelho



Por último, mas não menos importante, porque a literatura é uma arte, e se basta. Um romance escrito com primor pode ter qualquer linha mestra, ou muitas delas, e valerá a pena ser lido. É o caso da obra de Edyr Augusto.

Ademais, a arte serve também para inquietar. A violência incomoda e assusta. E os elementos abordados na ficção do autor denunciam nosso mundo cão, porque diferem dele apenas na invenção (magistral) dos personagens. De fato, estes são tão possíveis e semelhantes aos desgraçados que cambaleiam nesse vale de lágrimas que não passam de reflexos. Dos desafortunados. Dos violentos. Dos assassinos. Dos psicopatas. E das incontáveis vítimas: violadas, mutiladas, mortas. Anônimas e esquecidas.

Então, se por acaso desconhece Edyr Augusto, e tenha interesse por obras que fujam daquele roteiro redentor e sejam cruéis como só a verdade, e de quebra mostrem como se encadeiam os pensamentos e motivações dos violentos, deverá gostar da premiada obra dele. Leia e comprove sua habilidade de orquestrar breves partituras onde a violência desfila e baila.

Convém tentar entender essa velha senhora e seu balé intrincado. Afinal, num dia ruim, você pode compor o corpo de dança, como agressor ou como vítima. Porque seja na ficção, seja na realidade, ela está o tempo todo à espreita, a escolher, aleatória como a sorte, os próximos dançarinos – que, após o show, terminarão modificados para sempre.

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Alberto Nannini é graduado em Letras, especialista em Linguística, e colaborador do blog.

sexta-feira, 1 de abril de 2016

O SUPER DAL

Adalberto Gomes, desde criança, gostou de ler gibis, principalmente com aventuras de super heróis. A facilidade veio por conta do pai, proprietário de banca de revistas em esquina de grande movimento. O pai envelheceu, o filho assumiu suas funções e freguesia. Entre uma venda e outra, Adalberto ou “Dal”, como era chamado, tinha muito tempo para conversar, seja com aqueles habitués que cercam toda banca, seja com clientes das mais variadas faixas de idade e finanças. Jovens hipnotizados pelas capas de revistas pornográficas, senhores que comentavam as notícias políticas, econômicas e policiais. Dal tinha uma predileção, depois dos gibis de super heróis, por páginas policiais. Ficava revoltado com os casos. Com a lentidão da Justiça. A falta de equipamento da Polícia. Jovem de corpo atlético, além do futebol de fim de semana, também malhava em Academia, variando entre corrida, boxe e jiu jitsu, chegando a conquistar alguns troféus. Havia uma motivação secreta, algo que lentamente foi ganhando corpo em sua mente, mas que tinha receio de externar por acreditar que podia ser mal compreendido. Algo que o convenceu a partir do momento em que alguns dos super heróis dos quais era fã nos gibis, tiveram aventuras transformadas em filmes de grande sucesso mundial. De todos, com seus super poderes, seu preferido foi justamente aquele que usava apenas poderes absolutamente humanos para resolver os casos: Batman. Dal sonhava em ser um super herói em Belém. Sim, uma coisa era o que estava nos gibis e telas e outra a vida real. Nem ele era o milionário Bruce Wayne, nem tinha mordomo. Dinheiro, bem contado, trabalho duro na banca. A vontade de defender a sociedade foi maior. Dal intensificou seus exercícios. Era importante estar absolutamente em forma. Também não podia usar armas. Seria complicado e suspeito tentar porte. Instalaria na banca um radio na frequencia da Polícia, que ouviria em fone de ouvido, para não chamar a atenção de ninguém. Também sabia que a maioria dos delitos realmente importantes acontecia à noite. Havia um auxiliar na banca, para as ocorrências diurnas. Bastaria inventar uma desculpa e sairia, voltando rápido. Mas como deslocar-se rapidamente, na direção dos acontecimentos? Tinha apenas um Palio, com mais de três anos de uso. Não era um batmóvel, mas quebrava um galho. Levou para um amigo ali na Marquês dar um grau. Gastaria mais combustível, mas seria rápido. Precisava pensar em outra possibilidade, um veículo mais ágil, uma motocicleta por exemplo. Suas finanças não permitiam altos vôos. Então comprou, para pagar a perder de vista, uma moto Dafra 6200 CG. Alugou, próximo à banca, uma kitnet e vaga de garagem. Já em plenos preparativos, terminou o namoro com Glaucirene. Foi duro, mas não podia deixar pistas, tampouco permitir que alguém sofresse qualquer consequencia de seus atos. Seu velho pai agora pouco ia à banca. A mãe morreu alguns anos atrás. Estava pronto para entrar em ação. E a roupa? Não, seria muito ridículo inventar essas fantasias de um Homem Aranha, Batman, Capitão America. Muito louco. Pena, porque tinha admiração pelos trajes. No fundo, talvez se imaginasse vestido daquela maneira, sendo recebido por autoridades, como Batman e o Comissário Gordon. Acorda, Dal, isso é Belém e sua tarefa, de grande importância e seriedade.
Madrugada de terça para quarta. Estava de vigília, ouvindo o radio da Polícia. Somente coisas de pouca monta. Não. Marginais assaltaram casal na Doca e estão fugindo na direção do Telégrafo. Num instante estava ao volante do Palio, cruzando ruas em velocidade, obedecendo as instruções que ouvia no radio. Estava quase chegando a uma distância de poder encontrá-los, passou pela Ferreira Pena feito bala e de repente, freios fortes. Uma blitz. Documentos do carro e do motorista. Seu guarda, tenho muita pressa. Aqui não tem pressa. Documentos. Dal aguardou enquanto o guarda analisava seus documentos. Por favor, encoste e saia do carro. O que foi? Ipva atrasado. O carro vai ficar retido. Olha o guincho aqui, por favor! Mas seu guarda. O senhor por favor desce do carro. Dal desceu. Todos ficaram surpresos com suas roupas. Gorro, camisa gola rolê escura, calça de couro colada e botas. É alguma fantasia? Não, senhor. O senhor vai desculpar, mas isso não é roupa de dia a dia. Dal pensou em dar uma ponta para o guarda. Não, não podia fazer isso. Era um heroi, um defensor da sociedade. Não podia começar subornando a autoridade. Então eles ouviram o radio da Polícia. Acho que o senhor vai ficar aqui e prestar esclarecimentos. Porra, mas vai logo esquecer de pagar o Ipva!
Aquela noite o deixou deprimido. Teve prejuízo em retirar o carro do curral, pagar o imposto e ainda se explicar com a Polícia, por conta do radio na frequencia. Felizmente tinha ficha limpa, endereço, local de trabalho e um delegado que naquela madrugada não estava muito interessado em encher o saco de ninguém. Mas a vontade de ajudar a sociedade não passou. Um dia ainda vão todos me agradecer.

Estava na banca, de bóba, chateado, quando veio o Femq, vendedor de filmes piratas se queixar do Birosca, que vivia pela Primeiro de Março traficando pasta de cocaína para pés de chinelo. O Birosca meteu a mão no Femq. Quebrou nariz, maxilar, fez o serviço. Dal achou que estava na hora de parar com as aventuras de Birosca. Seria um bom retorno às aventuras. À noite, fechou a banca, foi pro kitnet, vestiu sua roupa de combate e tirou a moto. No centro da cidade, ruas estreitas, melhor a moto. Estacionou próximo ao buraco da Palmeira. Sorrateiro, jogou-se atrás de um carro, quase por baixo e ficou olhando. O Birosca ali, naquele não faz nada, aguardando os clientes, arengando com as prostitutas. Birosca, vem cá. Eu te conheço? Não interessa. Acabou pra ti. Não quero ver mais a tua cara nessa rua, vendendo crack. Estás me ouvindo? E quem és tu? Puxa, ainda não havia pensado nisso. Como se chamaria? Super Dal? Não interessa o meu nome. Cara, tu sabes com quem estás falando? Birosca pôs à disposição do meio ambiente todo seu repertório de palavrões e insultos. Mas quando levantou a mão, Dal agiu, com um single leg, que aprendeu no wrestling. Surpreso, Birosca foi ao chão, imobilizado. Mermão, só saio daqui morto! Conseguiu um murro em Dal, que reagiu com outro, bem colocado. Perdeu, perdeu, outra voz dizia. Dal olhou. Um cara de moto. Aê Birosca, qual é, pegando porrada de qualquer um? Larga ele, vai, senão leva bala. Revolver em punho. Dal largou. Birosca aproveitou e lhe deu um tapão. Ardeu. Passa a grana. O cara era arrecadador apenas. E tu mermão, dá o fora. O Birosca é nosso, ninguém encosta. Um tiro. Dal sentiu próximo ao joelho. O cara errou por muito pouco. A moto saiu. Birosca ficou rindo. Levou um socão e dormiu. Mancando, Dal pegou a Dafra e foi atrás. O cara estacionou na 28, pouco depois do Importadora. Subiu. Esperou e foi atrás. O porteiro parou. Vou atrás desse cara. Ele me deve uma grana. Qual andar? Primeiro, cento e dois. Valeu. A calça empapada de sangue. Foi pela escada, suportando a dor. Ouviu a porta bater. Bateu discretamente na porta ao lado. Abriu uma senhora. É caso de vida ou morte, me deixe entrar. O senhor é ladrão? Tarado? E esse sangue. Melhor chamar a Polícia. Qualquer um sobe nesse prédio. Não tem condomínio mesmo! Quem mora aí do lado? Não sei, mas é um entra e sai danado. Cada cara de bandido terrível. Já me queixei, mas o senhor sabe, velho quando fala ninguém escuta. Eu posso ir até aquela sacada? Pode. Dava pra ouvir a conversa. Coisa grande. Drogas. Um grande primeiro caso. Tinha a bala na perna, mas afinal, era parte do risco. Era possível passar de uma sacada à outra. Não uma pessoa comum, mas ele, com seu preparo e agilidade. A velha dizia que não ia dar. Não vai dar. Ih, não disse? Não deu. Dal caiu. O pé da perna baleada não aguentou o peso. Acordou no Hospital da Ordem Terceira. À sua frente, o Birosca e o cara da moto. Na porta, um guarda. O que aconteceu? Doido, tu caíste do terceiro andar. Tua sorte foi que tua queda foi amortecida pela barraca do vendedor de cachorro quente. Só quebrou a perna direita. A esquerda, já estava baleada, mesmo. E o que é que vocês estão fazendo aqui? Tu não é o Dal, lá da banca? Não. Eu sou o Super Dal.