sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

OS EXILADOS DE MONTPARNASSE

Após a Primeira Grande Guerra, mais de duzentos artistas de língua inglesa foram viver em Paris e gozar do ambiente de liberdade da cidade, fugindo da censura e do puritanismo reinante nos Estados Unidos e Inglaterra, por exemplo. Quase todos morando em Montparnasse, frequentando a famosa livraria Shakespeare and Company, de Sylvia Beach e as reuniões na casa de Gertrude Stein. Foi um período, até a Segunda Guerra maravilhoso para o mundo, com a produção dessa turma maravilhosa. Woody Allen, em um de seus últimos filmes, colocou um personagem que em um delírio, retorna àquela época e contracena com alguns dos grandes nomes daquela Paris. Mas é que acabei de ler o livro, autoria de Jean Paul Caracalla, contando tudo sobre aqueles dias. Artistas maravilhosos foram chegando.
Gertrude é uma das primeiras, junto com o irmão, vindo de Ohio. Gay, instala-se em Montparnasse e mesmo sem fortuna, vai adquirindo obras de gente como Picasso, Modigliani, Jean Cocteau e Matisse, este, pintando seu retrato. Há também Adrienne Monnier, dona da livraria Casa dos Amigos dos Livros, onde reúne Aragon, Breton, Apollinaire, André Gide, Paul Valéry, imaginem só. Sylvia Beach, atrás de um livro, entra na Livraria e se apaixona por Adrienne. Adiante, abre a famosa Shakespeare and Company, especializada em literatura anglo saxã. Então, é Gertrude quem vai conhecer. Viram amigas. Ezra Pound também chega a Paris, após ser secretario de William Yeats, na Inglaterra. Diaghilev pede para Stravinsky surpreende-lo. Falam em surrealismo. Chega Hemingway, que treina box com Pound. Ele vive como correspondente de alguns jornais, mas escreve. Mostra para Gertrude e Adrienne. Para publicar nos EUA, mudou alguns termos, para não ser censurado. Quem o recomendou para Max Perkins, super editor, foi Scott FitzGerald. Ele e Ernest foram grandes amigos. Scott o ajudava. A bebida ainda não lhe tinha levado a consciência. Mostravam um ao outro seus trabalhos. Saíam por aí bebendo todas. Quando se conheceram, Scott já era o autor de três romances, entre eles, O Grande Gatsby. Ele e Zelda se instalaram na rue de Tilsitt. Após várias peripécias, Zelda é internada e Scott continua seu itinerário rumo ao fim, em Hollywood, sem conseguir escrever nada que sirva. Então, Sylvia Beach conhece Joyce, que chega com toda a família. Ele está escrevendo Ulisses. As tentativas de publicar trechos na América não têm sucesso. Censura. Puritanismo. Dubliners, por exemplo, chega a ser recusado por quarenta editores. Nora, sua mulher, não para de lhe espicaçar. Vive a escrevinhar e não leio uma linha sequer do que ele escreve! Queria ter casado com um banqueiro, até um trapeiro seria melhor. Mas todos já estão apaixonados pelo irlandês. Sylvia Beach decide edita-lo. Joyce passa a ocupar um espaço na livraria, onde escreve. A faz sofrer com milhares de exigências. Ela suporta. Mais tarde, sucesso nos EUA, ele a despreza.

E Nancy Cunard, rica, que resolve ser editora. Após várias aventuras, recebe, por baixo da porta, um envelope onde há um original de autoria de Samuel Beckett. O livro é Whoroscope. E há Henry Miller que chega com sua June no navio Paris. June cuida das finanças. Paris é um sonho para eles. Gastaram tudo. June volta para conseguir l’argent. Henry almoça e janta em mesas de amigos com dinheiro e que pagam suas refeições. Dorme aqui e ali. Até na rua. Conhece Anais Nin e tudo muda. Alguém lhe diz para escrever para si e não para os outros. Sai “Trópico de Cancer”. Não era uma época genial? Deve ter sido maravilhoso. Ainda hoje, ao passar por ali, sentimos uma atmosfera diferente.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

UM ARTISTA BRASILEIRO

Meu herói sempre foi Caetano Veloso, certamente por sua avidez pelo novo, diferente, sons, roupas, idéias. Sempre conheci Chico Buarque. Desde os primeiros movimentos. Mas quando surgiu, era como um novo Noel Rosa, enquanto que Caetano estava na guitarra. À medida em que o tempo foi passando, me dei conta da genialidade de Chico Buarque. Todo esse nariz de cera para dizer que acabei de assistir ao documentário “Chico, artista brasileiro”, de Miguel Faria Jr, lançado em bluray. Há entrevistas, depoimentos, artistas cantando, vídeos antigos. É curioso que os meus heróis tenham estado juntos várias vezes, no show Chico e Caetano, pouco depois de retornar do exílio, em programa da Tv Globo e vários outros momentos. Tão diferentes. Tão iguais.
Mas como não gostar de um cara que joga futebol e tem sempre piadas a contar? Ser seu amigo deve ser maravilhoso. O documentário mostra sua evolução, o terrível momento político, em que foi perseguido, dor que ainda não passou. Deploro os insultos que recebeu, recentemente, no Rio. Ele foi muito prejudicado. “Houve momento em que a pressão foi muito forte. Passei a compor com raiva. Hoje, há músicas que perderam a razão, ficaram sem chão. E também me pergunto se deixei de compor outras, que ficaram perdidas”. Edu Lobo diz que os maiores adversários de Chico, hoje, são seus adversários internos. Ele mesmo confessa demorar mais para compor. Tudo parece já ter sido feito. Toda criação é um risco, diz Edu. Nada mais correto. Chico também diz que sua turma é a música, não a literatura, algo muito solitário. Sei lá. Gosto mais de sua música, mas penso que é um escritor que compõe, tendo em vista sua capacidade de observação, de vestir a alma de outras pessoas, personagens. Estão aí suas músicas que mulheres apostam ter sido feitas com alma feminina. Miucha, Ruy Guerra, Vinícius, Nelson Cavaquinho entre outros, falam dele. Conta de sua timidez em receber de Tom uma música para colocar letra. Foi “Retrato em branco e preto”. E vieram muitas outras. “Às vezes Tom me dava várias e eu ficava ali, sem saber o que escrever”. Em retorno, Tom diz que nem dava tantas, “pra não chatear o cara, né?” Imaginem. Mpb4, Maria Bethania, Caetano e Mônica Salmaso, esta, brilhantemente cantando, são alguns dos números musicais. É muito curioso quando conta do erro da Censura ao liberar o “Apesar de Você” que tomou conta do Brasil. Também engraçado o “Vai Passar”, que compôs para a volta da democracia, e perceber que muitos trechos são perfeitamente atuais para o que vivemos hoje “dormia, a nossa pátria mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída, em tenebrosas transações”.

Chico conta de suas crises de composição. Em uma delas, decidiu escrever. Chegou a fazer psicanálise. Outra coisa interessante está em canções que anos mais tarde, percebeu que eram, claramente, reflexo de situações que viveu, mas na época, não teve coragem ou ímpeto de reagir, dizendo o que agora está nas letras. É a coisa do escritor que observa, sente, decifra as pessoas, criando personagens, vestindo outras vidas e a partir daí, pensando exatamente como elas. Acho que Chico, também, envelheceu melhor que meu Caetano. Mas meu amor pelos dois e o que representaram para a minha geração deixam de lado qualquer escolha. Me permitam dizer, ao final, que recentemente, soube que Chico leu “Pssica” e gostou muito. É a gloria.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

ONDE O MUNDO SE DIVIDE

Para mim, o mundo se divide na esquina da Tiradentes com a Quintino Bocaiúva. Ao menos, para os que usam a Tiradentes, em direção ao centro. Explico: o trânsito é forte e recebe carros da Antonio Barreto, bem como da Doca. É uma subida intensa, e desafia a habilidade dos motoristas em manter o carro embreado, mas parado. Quase chegando à tal esquina, uma faixa contínua avisa, segundo as Leis de Trânsito, que está proibida a ultrapassagem. Portanto, quem quiser dobrar à direita, para a Quintino, deve, bem antes, escolher o seu lado, bem como os que seguirão em frente. Mas aí é que está. Enquanto uma minoria, que seguirá em frente, obedece às instruções, a maioria, fiel à máxima de “sou brasileiro e tenho de levar vantagem em tudo”, aproveita-se e vem, lépida, esperta, alegre e saltitante, ultrapassando os “idiotas obedientes”, seguindo em frente, ganhando alguns metros, se tanto. Vale a pena se preocupar com isso? Bem, eu me preocupo. Infelizmente, para mim, vem de dentro uma espécie de espírito punitivo, talvez de outra encarnação em que posso ter sido um daqueles legionários que surrava escravos na galé onde estava Ben Hur, sei lá, pois vem de dentro, num crescendo, e preciso reagir. Acho que faço a minha parte.
Há motoristas de táxi, e me vem uma baba sagrada, por sabê-los interessados em qualquer nesga por onde possam levar vantagem. Há garotos em carros fantásticos, enormes, ansiosos para demonstrar sua ousadia e competência, em driblar os bobalhões, ali, na fila. Há estúpidos, sempre aborrecidos, que cometem o ato, meramente por grosseria. E mulheres com falso ar ingênuo, tentando levar vantagem. Eu gosto. Antevejo. Percebo sua chegada discreta, atabalhoada, dissimulada, agressiva. Vejo nisso, um quadro da nossa sociedade. Toda a má educação, a falta de cultura e civismo que nos assola, não interessa a marca e o ano do carro. Eles se aproximam, certos que no momento preciso, me cortarão a frente e ganharão os tais metros, saindo felizes, sorriso no rosto, pensando “mais um idiota para trás”. Só de pensar, me dá um arrepio. Eles vêm, com a certeza da impunidade. Não tem a ver com superioridade econômica, luta de classes, sei lá. É preciso boa noção de espaço, domínio do carro e do tempo. Sangue frio. Dissimulação. Estamos lado a lado. Com um discreto olhar, de relance, percebo sua intenção, a respiração do carro, com seu pé no acelerador, a posição em diagonal para realizar a manobra. Percebo sua intenção. Permaneço estático, como um leso, mais um leso a ser enganado, vencido. Fico ali, inerte. É preciso manter mínima distância do carro à frente, mesmo que seja uma subida. É agora. Uma pequena aceleração e o bico do meu automóvel toma a frente, para susto do oponente. Ué, o que aconteceu? Pior, a partir daquela esquina, a Tiradentes fica mais estreita, exatamente para a esquerda, de onde vêm os obedientes “idiotas”. Assim, com o bico do carro à frente, resta ao então confiante e panaca do outro carro, a calçada, a não ser que freie, repentinamente, inesperadamente, um corte nas suas certezas, e aguarde a próxima nesga, para, ainda assim, fazer valer sua manobra irregular.

Depois, é só olhar pelo retrovisor suas pragas, reclamações, como garotos apanhados em travessura. Alguns vêm atrás, ligam farol alto, querem vingar-se, mas a rua é estreita, não permitindo ultrapassagem e alguns metros adiante, a maioria cai em si e percebe que estava errada, deixando para lá. Já vi outros “colegas” fazendo a mesma coisa. Que bom não estar sozinho nesta guerra. Alivia o peito. Amansa o tal “espírito punitivo”. Mas antes de tudo, é um pedido a cada um, para que retornemos à civilização e suas leis. No mais simples ato, como esse, na esquina da Tiradentes com a Quintino, está resumido todo o nosso problema. O mundo se divide ali. De que lado você está?

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

UM FOLIÃO REPENTINO

Participei, como integrante do Grupo Cuíra, do desfile da Escola de Samba Piratas da Batucada, sábado passado, na Aldeia Cabana. O grupo foi homenageado, sendo sua história o enredo. Idéia do carnavalesco Jean Negrão que tem tudo a ver. Tal como o Teatro, as Escolas de Samba também sofrem com a estupidez do governo que há mais de vinte anos, tenta acabar com todas essas manifestações. Junto com integrantes do Cuíra, estivemos na sede dos Piratas. Conferimos a audácia, a tenacidade de sua diretoria, trabalhando sempre com o mínimo e a má vontade das autoridades. Assistimos ao ensaio da bateria, integrada por pessoas das mais variadas idades, inclusive crianças de no máximo, dez anos de idade. O porta estandarte, o casal mestre sala e porta bandeira, a rainha da bateria, a comissão de frente. É um absurdo que o desfile agora seja realizado uma semana antes do carnaval, certamente para não atrapalhar aqueles que vão sair da cidade e aproveitar o feriado. Um absurdo. O carnaval é atração para o povão, agora que não temos mais nem miados de uma Secretaria de Turismo. Essas autoridades têm uma jóia e deixam apodrecer. Na noite do desfile, toda aquela área estava com grande movimentação. Fomos escalados para desfilar no primeiro carro alegórico. Não somente o pessoal do Cuíra, mas meninos e meninas bonitas, drags, figuras da escola. O carro começou a ficar bem lotado. Havia um senhor tendo à frente um guidom. Pergunto se o carro vai aguentar todos aquele peso. Ele apenas balança a cabeça dizendo sim. E agora vai começar o desfile. O carro se movimenta. Vejo o motorista virar o volante em todas as direções e nada. A barra de direção quebrou. Soa a sirene. Todos os homens do carro têm de descer! Você, não! Você é homenageado. Ah, bom. A música é bem alta e agora começamos a dançar e a cantar. Empurradores levam o carro literalmente no muque, tentando mantê-lo sobre uma linha amarela que marca o centro da pista. É preciso muita força. Como esse pessoal sofre! A arquibancada está lotada. Ingressos grátis. Acho ótimo. O povão não tem diversão e hoje, o desfile é top. Estamos bem empolgados. Não é apenas o samba que nos faz dançar. Os esforços para manter o carro na linha fazem com que dancemos na tentativa de não cair. Treinamento contra terremoto. Esperei pelos gritos da plateia “Pedreira, Pedreira!”, mas não ouvi nada. Pena, não pude ver todas as fantasias. Estávamos bem à frente de toda a Escola. Mas fico pensando se houvesse um mínimo de profissionalismo e preparo técnico, tudo seria magnífico. Que tal um concurso de samba enredo uma semana antes, com a nota valendo para o desfile? Que tal um concurso de rainha da bateria? Que tal deixar o desfile começar mais cedo, com as agremiações de categoria inferior para mais tarde? Que tal promover uma exibição dos carros alegóricos após o desfile? É uma aberração jogar fora o trabalho incrível de artesãos, mostrado apenas em uma noite. No dia seguinte, vândalos, por puro prazer, destroem os carros. Ficariam em uma praça, um largo, sei lá, para serem admirados, mais tarde. Há tanto a ser feito e no entanto sobrevive o amor dessas pessoas, sua vontade de manter viva a Cultura Popular, não interessando a colocação. Meu Quem São Eles saiu bonito, nos seus 70 anos. Viva Luis Guilherme Pereira! Ainda lembro das grandes figuras da Cultura capinando e ajudando a sede na Wandenkolk. Também dos grandes desfiles. Dos sambas em que participei como letrista. Tomara que ganhe, mas os Piratas da Batucada ganharam meu coração.