sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

NUM SÁBADO MODORRENTO

Era um sábado comum. Depois da hora do almoço. Calor, modorra, bate papo furado. Atriz, ela estava em temporada. Naquela noite, o penúltimo espetáculo de grande sucesso. Trabalhador, ele fora ao comércio comprar dois terçados para sua lavoura. Ao invés de pegar o ônibus no começo da Presidente Vargas, pensou em ir até as Lojas Americanas, ver alguma coisa para a filha. Na Riachuelo, um casal começa uma briga. Ele, desses que toma conta de carros. Ela, prostituta. Têm filhos e boa relação com eles. Mas quando brigam, junta gente. Escutei o começo da discussão. Essa gente que mora na rua, fala muito alto, claro, a casa deles é o mundo. Fui até o pátio ver o que estava havendo. O casal se enfrentava em círculos. Acusações, respostas, um ou outro tapa. Os passantes incentivavam. Mas é que o trabalhador, com os terçados, resolveu intervir. Logo o casal esqueceu a briga e passou a discutir com o interventor. Chamei a atriz. Barulhão. Gritos. Buzinas. Ela não veio. Então os dois homens começaram a brigar. Caíram os terçados do pacote. A cena seguinte era na faixa de segurança de pedestres na Presidente Vargas. No melhor estilo capa espada, os dois duelavam com os terçados. Troquei de janela para ver melhor. No caminho, a atriz gritava de dor pegando o dedo mindinho. O que houve? Uma topada no pé do sofá, na pressa de ver o que estava acontecendo. O sinal abriu, nenhum carro avançou. Um dos terçados caiu no chão. O outro saiu correndo. As árvores me impediram de continuar assistindo. Ouço uma freada brusca. Meus amigos engraxates, taxistas, vendedores de balas, carimbo da sorte, traficantes, prostitutas, olhadores de carro, todos correram. Sem pensar, peguei o elevador e também desci. Foi na esquina com a Ó de Almeida, que na época tinha outra mão de tráfego. Um fusca vinha apressado. O trabalhador estava correndo. O outro atrás de terçado em riste. Atropelamento. Agora o fusca estava ofegante, saindo fumaça e o trabalhador estava no chão, morto. O motorista abriu a porta, mãos à cabeça, desesperado. Alguém chamava o Samu. O agressor sumiu em alguma esquina. A vida é um piscar d’olhos. A atriz louca de dor. Saco de gelo. Remédio. Tem espetáculo à noite? Tem, sim senhor. De sapato de bico fino e salto? Exatamente. Tudo aconteceu normalmente. A plateia foi ótima. Agradeceu, foi para os bastidores e largou o sapato no caminho. Sentou e uivou de dor. Ainda chegavam pessoas para cumprimentar. Só então o pé começou a inchar para valer. Na hora da cena, nem se pensa nisso e o corpo parece compreender a urgência do instante. Direto para o Pronto Socorro. Bate chapa. Mindinho quebrado. Doutor, eu tenho espetáculo amanhã. É a última noite. Preciso fazer. Minha senhora, não vai haver espetáculo. A senhora quebrou o dedo. Vai fazer uma proteção. Não põe gesso. A senhora é que sabe. Não houve espetáculo. No dia seguinte, inchou ainda mais. Voltou ao Pronto Socorro para engessar. Isso foi o de menos. Num sábado modorrento, perde-se a vida em poucos instantes, sem saber nem o nome da mulher que tentou socorrer e que, em seguida, também ficou contra si. Esse povo da rua é mesmo complicado. Na hora da confusão, é melhor ficar apenas observando. Eles têm códigos diferentes. Em um momento estão brigando como se fosse o fim do mundo e logo em seguida se abraçam, trocam baseados, petecas e vida que segue.

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